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LIRA SOFRE< SOFRE>>>
Donária Salomon

5 de abril de 1976

Quando bateram na porta, Lira pensou que fosse o seu irmão Antônio, não foi, era sua irmã por parte de pai, que atende pelo apelido de Filhinha. Tinha a idade de sua mãe. Agora a abraça e chora numa mistura de alegria e sofrimento. A mais velha não sabia da situação em que o pai se encontrava, sentiu-se culpada na demora em poder visitá-lo. Lira foi logo dizendo:
_Ele não esquece. Roda vira ,mexe, fala em você.
Enquanto Filhinha chorava e abraçava o pai, que misturava riso, choro, fala e pigarro, Lira providenciava a carona no Fusca do genro da irmã, para que o levasse ao hospital. Com tudo acertado, acordou o irmão:
_ Vamos, Zoca. Acorda!
O que é?
_ Vamos, tem um carro. Vamos levar papai.
_ Já vou. De quem é o carro?
_ De Benedito, genro de Filhinha.
_ E Sílvio?
_ Está dormindo e é melhor que ele fique, está com a garganta inflamada. Levanta, vai lavar a cara que não temos muito tempo a perder.
Foi falar com o marido:
_ Estou indo com papai.
Ele tentou impedir argumentando:
_ Pra quê?
_ Porque não dá mais para esperar, ele está mal e eu vou aproveitar a carona. Se deixar pra noite vai ser pior; vamos que Antônio não venha aqui hoje?
_ Você é quem sabe... Vai sozinha?
_ Já chamei Zoca. Vou dar as ordens a Thereza pra cuidar das crianças e fazer companhia para Filhinha.
Voltando para junto do pai, deu a notícia de que ia levá-lo ao hospital.
_ Antônio chegou com a Kombi?
_ Não, papai, vamos de carro com Dito. Está bem assim?
Filhinha interferiu:
_ Eu vou também.
_ Não, Filhinha, eu prefiro que você fique. Lá é muito cansativo. Desculpe-me, pode deixar que eu ligo para dar notícias. Infelizmente tenho que tira-lo de perto de você, logo agora, depois de tanto tempo que ele esperou por sua visita.
_ Mas papai está bem...
_ Sinto muito, minha irmã, mas tenho que leva-lo. À noite, sem carro, será mais difícil. Finca sua raiz como a mais velha que eu, a folha mais nova desse jacarandá, tenho que correr...

Parecia que ninguém via em que gravidade estava à vida do pai. Só ela pressentia que tudo poderia acabar a qualquer momento, e por isso, na dura circunstância da vida tinha que atender a esse chamado de urgência, sabia o que era não estar bem e com muita disposição ia acompanhá-lo mais uma vez até o hospital.
Depois de acomodá-lo no banco do carona, sentou-se no banco de trás com Zoca a seu lado, e com mão no ombro do pai dava-lhe esperanças de que tudo correria bem após a chegada ao hospital. As palavras firmes saíam numa comunicação perfeita, embora sua mente retorcesse, desfigurando as palavras que soavam receosas, naquele momento.
O Sinai fechado obrigava-na a conter-se. O que poderia fazer? Apenas manter-se calada, sufocando a angústia. O pai dorme e arfa. O irmão mantém a imobilidade. A dura reflexão: Se pudesse retardaria a vida para que o fogo humano não se desfizesse. Mas, como isso seria possível? As estações do ano passaram, os cabelos branquearam, as lembranças tomaram conta de sua cabeça...
E, neste momento de devaneio, o pai está junto do fogão de lenha, o cheiro de banana assada enche a casa, o cachimbo na boca soltando baforadas em plena madrugada, cheiro de café coado, pisadas pelo chão de barro batido da cozinha... Olhada no tempo, mais baforada na soleira da porta saldando e admirando a onipotência dos primeiros raios de Sol.
Ela não percebe a que velocidade está o carro, nem a interessa mais, o que importa é que está indo a busca de socorro e que há alguns anos, ainda era uma menina não tinha pressa de crescer, o pai lhe comprou uma boneca que fazia xixi. Fez roupas para a boneca: Vestidos, combinações, anáguas e maiôs, com meias usadas, não fazia calcinha, pois essa sempre a incomodou , sempre que saia com o pai a calcinha voltava no bolso dele...
“Pai, o rio está cheio!”.
A maré cheia, com pequenas ondulações que batiam e rebatiam no barranco do Paraíba do Sul.
“É bom que esteja cheio filha. È sinal de peixe”.
Baforada da fumaça do cachimbo, escorregão no barro mole da beira do rio, com classe corrige a roda da tarrafa e ela aplaina no ar. E lá vêm tainhas, lagostas, caximbaus, traíras... Enche a quiçamba, joga nas costas, desce Lira da pedra: “Eu não disse e estava bom?”.



O carro passa pelo portão de entrada e estaciona em frente à grande porta. A noite chegou para render à tarde; não era um anoitecer com os pique - esconde, nem o passar do anel sentada na calçada. Com toda certeza esse anoitecer não era como os de outrora. Estava triste e silencioso. Agora barulho de macas, os passos nos corredores, médicos e enfermeiras entravam e saíam das portas que se abriam e fechavam. Cheiro de éter, tilintar de telefones, voz forte e grossa do chefe médico, olhares compenetrados nas ações das enfermeiras empunhando aparelhos de medir pressão, injeções, oxigênio no nariz. Pronto! Agora sim, o socorro está garantido!
Deitado na cama de cabeceira alta parecia embriagado, os olhos cansados, enevoados. Queria se levantar, mas a cabeça tonta parecia um bêbedo de uma boa talagada de caninha pura da roça. A filha se aproxima. Os olhos mesmo entreabertos e sem foco a reconheceram e pediu para ela que o levasse para casa. Ela diz: “Logo que tomar injeção”. Ele balbucia que já tomou; abaixa as pálpebras lentamente... Descansa.
Ela o observa. O cheiro de éter, na sua mente é substituído por cheiro de terra molhada pelas chuvas de verão. Aguça as narinas para inalar o vento que trás todos os cheiros da sua infância: Sente o sabor do pão quente e a banana d’água que deixa seu caldo pingar na chapa do fogão de lenha. Lentamente funga o nariz para disfarçar o olfato invadido pelas lembranças. Recobra os sentidos e então tenta sorrir quando entra a enfermeira com mais injeção.
Depois que a enfermeira sai, volta a ajeitá-lo na cama. Está macia, mas gostaria de vê-lo deitado mesmo era na tarimba, onde sim, estaria bem, como quando se espichava para descansar de um longo dia de labuta.

Um vômito. Ele se assusta. Ela o tranqüiliza amparando com a ponta do lençol as golfadas encardidas, amareladas... Havia lhe dado água fresquinha, clara igual a do poço onde tantas vezes o viu arregaçar as calças, ajoelhar-se na beira com a caneca de alumínio, afastar os girinos, e beber... Deixando escorrer pelo peito vermelho como a crista do galo que passeava, em pose, pelo quintal. Sorrir e dizer: “Água boa! Tem gosto de vida!”.
Mas, essa agora escorre pelo seu queixo e amarelece todo o lençol, que instantes antes era alvo. Lira limpa seu queixo. As lágrimas embaçam seus olhos, a garganta tranca. Sai, corre para o corredor em busca de socorro. Fala alto e sua voz ecoa no silêncio da noite: “Meu pai está ruim! Venham vê-lo, pelo amor de Deus!”.
Sente atrás dos seus passos o deslizar dos sapatos de solados de borracha. Quando ela entrou no quarto teve esperança quando ele perguntou:
_ O que foi?
_ Nada meu pai, está tudo bem. Fica tranqüilo que logo, logo, vamos para casa.
Enquanto fixa os olhos enevoados pôde ver um sorriso no seu rosto. A impressão que tem é que ainda é uma menina diante dele. Seu raciocínio se torna inútil, não compreende esse momento. Tenta entender: “Será que foi a vitamina? Pêra com leite? Não. Só se fosse o café forte. Também não pode ser! O velho torresmo de barriga de porco com farinha? Talvez o tutu de feijão; o abacaxi? O abacate com açúcar... Ah! Galinha caipira ao molho pardo...”.
Nessas alturas o melhor mesmo era colocar a culpa do seu estado em tudo aquilo que saboreava com o maior prazer, do que admitir que tivesse chegado o fim.
A sua mão rolou de cima da cama, sem energia. Ela amparou-a e contemplou aquela mão que um dia a conduziu pelos caminhos ensolarados e nas noites enluaradas quando um outro céu se espalha pelo chão.
Adormeceu. A sua infância também morria. O silêncio. Não mais importa. Ele pode descansar. Não tem nas mãos o peso da enxada do lavrador, nem nas costas o pesado feixe de lenha, tampouco na cabeça o peso do balaio do pescador destemido que nem sabia nadar, aventurando-se nas madrugadas de lua cheia, que iluminava o caminho que o levava ao Rio Paraíba do Sul onde suas águas agora entram nas reentrâncias do barranco produzindo um ruído monótono. Ele era conhecedor dos ventos, das chuvas e das luas... Agora dorme pesado.



6 de abril de1976
De onde estava sentada, olhando a fenda podia ver o túmulo. Estava morto e por isso tinha que ser sepultado. Então ela contesta de um lado a outro do recinto. Dinheiro não teve, bem que tentou a loteria de natal e a fezinha no jogo do bicho.
Os deveres escritos chegaram. Tudo estava consumado, começaram a chegar mais filhos, netos, bisnetos, afilhados e vizinhos. Com os olhos cheios de dor tenta consolar a irmã: “Mana, a vida é assim mesmo; quem nasce um dia, um dia tem que morrer tem-se apenas momentos de alegria e encantamento nesta vida, você ainda viveu com ele quarenta e sete anos e eu que tenho que me contentar em tê-lo por apenas vinte e sete? Você há de convir, foram oitenta primaveras, só a lucidez estava em plena forma, seu corpo fraco e seus passos lentos estavam entristecendo-o por demais. Deixe-o descansar em paz”. Fala com a convicção de quem o conhecia como a si mesma, não lembra de sermão recebido, surra ou castigo, Lembra que ele esteve na escola, apenas trinta noites, e vai guardar na memória o cheiro da terra, a tarimba, a água que lhe pedia todas as noites quando acabava de deitar, do chapéu e do cachimbo que sentava para fumar e matutar. A cerimônia continuava como tinha de ser, bancos em silêncio, apenas ruídos e suspiros, lamentos, recordações, choros, abraços... Ninguém julga o viajante, só na consciência avaliam o passageiro da longa viagem, talvez infinita, ninguém sabe onde é a ultima estação. A filha está ali, velando o homem que lhe deu a vida; que a fizera temer as coisas ruins do mundo, recuar diante do perigo, amar as rosas e os espinhos de cada experiência.
Mas a serpente o levou; convenceu-se, quando encarou o formato do móvel onde o pai encontrava-se deitado era igual ao que estava em sua mente há dezessete anos atrás. Nele nitidamente via a forma da cabeça dela na madeira entalhada, As alças, só um disfarce, tinha certeza eram as pernas da cobra que não deixa ninguém ver e quem vê morre.
Lira ficou convicta que a caixa, que transporta gente foi esculpida à imagem e semelhança da cabeça escabrosa da serpente que o homem entalhou, pra dentro dela na terra entrar.
Fecharam o caixão. Todos seguiram... Ao jogar a cal, ela pede a Deus que cuide bem dele e a terra nesse momento deitar sobre ele pra descansar, a terra que ele pisou, plantou, fincou casa, furou poços, criou filhos, netos, bisnetos e tetranetos. Livro não escreveu, mas deixa uma existência que daria pra escrever milhares de livros.


Biografia:
Ainda não tenho.
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