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Minha morte.
Rafael Dias

Trabalho próximo a um cemitério. Não coincidentemente há várias funerárias próximas dele. Deve ser por causa da antiga lei da oferta e da procura. Se eu quero um recipiente para colocar alguém que está morto penso logo em um lugar perto do cemitério. Mas não é sobre isso que quero falar.
       Antigamente eu evitava olhar para dentro das funerárias. Tinha um certo medo de imaginar algum ente querido dentro daquelas caixas horripilantes. Não sei por quê esse temor. É uma possibilidade. O pior é que é uma possibilidade que, inexoravelmente, se realizará. Hoje não tenho tanto medo. Me convenço de que não sentirei nada quando minha alma não habitar mais esse corpo. Só me dá um pouco de agonia pensar que ela pode demorar muito de sair. Nesse caso sentirei os primeiros vermes comendo a minha carne. E o pior de tudo, temo estar consciente naquele lugar escuro e apertado que deve ser um caixão. E se me der uma coceirinha embaixo do braço enquanto um bichinho, daqueles que eu tenho tanto nojo quando vejo no lixo, estiver penetrando o meu corpo com a sua boca quase invisível? Será um desespero só. Ainda bem que esta última hipótese é uma possibilidade remota.
       Também penso na Morte. Não no ato de morrer, mas na entidade. Um leito de hospital ou chão de uma estrada. Eu lá deitado sentido as forças se esvaírem enquanto avisto um ser com aquele tradicional manto preto com capuz segurando uma foice. Na verdade acho essa imagem da morte meio cafona. Uma entidade tão peculiar deveria estar com um figurino mais sofisticado. Acho aquela foice o “Ó do Borogodó”, como costuma dizer um amigo meu. Independentemente da roupa, o fato é que é uma visita muito inconveniente que traz uma intimação nefasta: “ Acabou o seu tempo. Vim te buscar”. Ao receber essa mensagem talvez me fizesse de desentendido:
       -Não lhe conheço.”   
       - Mas sabe quem sou. Vamos!
       Não há outra saída. Só resta lamentar aquilo que se deixou de fazer. O tempo é tão caro quando é curto. Mas quando sabemos que o temos de sobra normalmente não damos muita bola para ele. A resposta dele é o silêncio. Mudo, parece dizer: “Me aguarde”. Tão banalizado. Tão mal aproveitado. Será que é preciso a morte se anunciar para lembrarmos dele?
       Meu primeiro encontro com a morte se deu aos onze anos. Até ali nunca havia pensado mais seriamente nela. Eu estudava na Escola Alegria do Povo, em Barra de Caravelas, no extremo sul da Bahia. Ao lado da escola ficavam a igreja e o cemitério. Ambos bem pequenos. Existia uma estranha diversão entre os garotos da minha idade no local. Subiam no muro para ver “Arroz Doce”, o coveiro do povoado, fazer o seu desditoso ofício. Até aquele dia eu não sabia que a mesma cova era reutilizada várias vezes. Quando fui convidado a assistir clandestinamente o sinistro acontecimento pensei que ia ver um homem retirando areia de um buraco. Tive um choque imenso quando apareceram os primeiros ossos. Era um fêmur. Estava enegrecido. Arroz Doce não se incomodou. Pegou uma picareta e puxou com uma espantosa naturalidade. Parecia até que ia plantar alguma coisa naquele solo. A pior parte ainda estava por vir. O crânio foi o que mais me impressionou. Entendi porque a caveira é o símbolo da morte. Tentei imaginar um rosto naquele lugar. Me vi. Vi o que restará de mim um dia. Vi o destino que o tempo me reserva. Aliás, reserva a todo nós. Ao bom e ao mau. Ao humilde e ao vaidoso. Ao rei e ao súdito. Aí está uma coisa que sobre a qual se pode afirmar sem receio: a morte é para todos, portanto, é democrática.
       Passei o resto do dia e mais alguns subseqüentes com a imagem daquela caveira me assombrando. Quando eu pensava que já tinha esquecido, ela fazia questão de reaparecer justamente na hora em que eu ia dormir.
       Quando cheguei em casa, brinquei com meu irmão como se fosse a última vez. Nem fiquei chateado quando minha madrasta reclamou pela centésima vez por eu ter deixado meu tênis no meio da sala. Também dei um abraço bem apertado em meu pai quando ele chegou do trabalho. Naquele dia me dei conta de que essa pequenas coisas precisam ser aproveitadas. Vai chegar um tempo em que não poderemos mais repeti-las.
       Por enquanto não quero pensar muito em minha morte. Inevitavelmente o faço as vezes, quando essas incômodas funerárias atravessam o meu caminho. Ou melhor, elas estão no mesmo lugar. Eu é que passo na frente delas.
       Aprendi que não se deve temer o inevitável. O tempo que nos arrasta certamente desembocará nesse mar de mistério. Então só me resta aproveitar a viagem. Não sei se na próxima curva do rio a foz estará me esperando.
       
        Ps: “Se quiser ler mais textos meus, é só acessar o meu blogger: www.amigodesophia.blogspot.com
        Um abraço! Aguardo a visita de vocês!

        Rafael Dias.


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