Há anos, estava eu caminhando pelas estreitas ruas do Cemitério do Gavião. Havia muitas dúvidas em minha mente. Era impossível viver aquele momento. Parentes, amigos e conhecidos caminhavam juntos e a expressão de tristeza era notada nos rostos e gestos daquela gente. Meu irmão caçulo caminhava cabisbaixo; que pensamentos passavam pelas veias daquela alma? Não era somente a esposa que havia morrido, era – também – Deus e toda a sua corte celestial. A felicidade de estar casado durara pouco. Tive pena de meu irmão e a revolta me assombrava o coração, entretanto, a esperança de que tudo aquilo era um sonho e que a qualquer momento eu acordaria, me alimentava o espírito, diminuía a angústia, o desalento.
Hoje volto a caminhar pelo mesmo logradouro, agora sozinho, sem qualquer pessoa para testemunhar minha dor. Será que realmente aconteceu? Será? Pergunto-me – ainda. Sento sobre a sepultura e acendo velas brancas, a priori parece que um rio de lágrimas irá desaguar, entretanto, algo começa a me envolver, tomar meus sentidos e ponho os olhos no tempo e no espaço fora das dimensões do homem.
- Minha cunhada, que Deus a ilumine onde você estiver. Talvez você esteja dormindo o sonho do esquecimento, não lembras mais de mim, assim como, eu não lembro mais donde venho. Talvez quando as pessoas morrem elas esqueçam tudo que viveram aqui conosco; não lembram as tristezas e felicidades vividas, e despertam para outra vida sem nenhuma lembrança da vida anterior. Será que tu sabes que deixastes uma filha com um mês de nascida? Será que te recordas da nossa convivência familiar? Dos passeios? Das intrigas envoltas da mesa de discórdia? Aquela mesa onde nos reuníamos nos domingos e dias de festa na Casa dos Leites.
Acredito que quando morremos esquecemos os acontecimentos desta vida. O que não são apagados pela força do tempo e do espaço são os sentimentos. Estes são eternos, possuem energias que vibram no universo da luz e das sombras, está alem da constituição atômica. Os sentimentos geram energias que ficam envolvendo e perpassando a essência de cada ser humano, passam a ser parte desse ser, eternamente.
- Minha cunhada, mesmo em seu sono eterno que meus sentimentos possam de alcançar, que possam te dizer o quanto os teus familiares te amaram, falam da tua importância, do valor do teu sorriso. Para mim, tu deixaste uma sobrinha linda, a continuação do meu pai e de minha mãe, do meu irmão e, assim, Nós – os Leites – ficamos eternos. Nosso sangue, carne, família continuarão. Em algum momento do tempo espiritual – talvez (eu não sei); nos encontraremos, nos reconheceremos. O tempo, aqui, passa e pouco a pouca vai tornando você numa lembrança distante, daqui a alguns anos, uns se lembrarão de você, outros já terão te esquecido. Tua filha não reconhecerá sua fisionomia, alguns amigos e familiares estarão – também- dormindo o sono da morte.
- Se for verdade que as pessoas voltam em outras vidas, talvez eu te encontre em outro corpo, com novo invólucro. Eu já serei outro, não mais teu cunhado, talvez apenas nos encontre numa esquina qualquer de São Luís, talvez você me veja passar indo à escola aprender as primeiras letras. Pode ser que sejamos parentes novamente; irmãos, primos, ou apenas amigos de escola ou do trabalho.
Há tantos “talvez”, nenhuma certeza, entretanto, uma coisa é certa, possível: a força dos sentimentos que nos uniram que nos tornaram familiar, irá manifestar-se, fortemente. Não precisaremos lembrar do passado, de outras vidas; de algum modo a energia desses sentimentos nos ligará novamente, nem que seja por um breve instante, porque o amor é eterno, indestrutível, é imutável (eu sei), é cimento das almas.
Talvez a sabedoria de Deus esteja exatamente nessa temporalidade atômica, associada a laços eternos que ligam as almas vivas e as mortas; lembranças fortes se tornando recordações esporádicas, até serem esquecidas e as várias idas e voltas atômicas vão preenchendo a nossa eternidade.
Saí do Campo do Pó com o coração aliviado, espero que tenha sido o sopro de Deus na minha mente e no meu coração, ou – talvez - foi um delírio provocado pelo sol causticante...
(Homenagem a minha cunhada Cleydianne Leite).
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