|
COISAS DA INFÂNCIA
O que torna um menino num homem? Serão os pêlos pubianos? Será a voz roca e a barba no rosto? Quando criança tinha medo de crescer, ficar homem, ter que sair de minha casa, do convívio familiar, cuidar da minha própria vida. Poucas vezes desejei crescer, somente quando apanhava uma surra de minha mãe ou do meu pai. Este, diga-se de passagem, pouco levantou as mãos para me agredir.
Hoje sou pai de dois belos varões e vejo como minha infância foi feliz, tínhamos em casa poucas coisas. A palafita onde morávamos era pequena, mas, na época, parecia-me um palácio. Aos seis anos incompletos mudamos da Madre Deus para o Bairro do Matadouro (depois veio a ser chamada de Bairro da Liberdade). Lembrou-me da mudança num caminhão, da chegada à nova residência. A palafita era toda de tabuas, era firme e parecia segura, o quintal dava para o mar, havia muita areia e mangues de um verde oliva encantador, como já estava acostumado com as vindas e idas das marés, aquele local me parecia um éden.
Tempos depois os meus pais começaram a entulhar a palafita, eram comprada carradas de piçarra, outras vezes era de barro arenoso. Eu com grande esforço carregava os entulhos em baldes, era um serviço muito penoso, ficava com as mãos doloridas, bem como, os pés. Esta pelejá era na maioria das vezes pela noite, já que o material chegava a minha casa no final da tarde e tínhamos que retirá-lo da rua para não gerar problemas para os vizinhos e para a maré não carrear, já que essa, diariamente banhava a rua. À hora do estudo era a mais prazerosa – sempre fui dedicado a leitura, embora - praticamente - não tenha estudado em livros porque meus pais não tinham condições financeiras para comprá-los. Copiava a lição num caderno, chamávamos de “copiar o ponto”. Algumas vezes o governo distribuía livros aos estudantes, nessa oportunidade eu podia ver as gravuras coloridas. Estas aguçavam minha mente e despertava minha fantasia. Ate hoje me lembro da imagem de um texto chamado “meu pé de ipê” – tinha uma menina e um pé de ipê amarelo. Outra imagem eterna em minha memória foi a de um sapo verde conversando com um inseto pequeno na beira de uma lagoa.
Dormia na sala em uma rede de fio, eu ficava assistindo a televisão, os desenhos animados: Perna Longa, Tom e Jerry, gostava do Batmam e Robin que era exibido às 16h. Lembro-me quando pela primeira vez assisti a transmissão ao vivo do Jornal Nacional, direto da emissora no Rio de Janeiro. As cores, os apresentadores tudo de um efeito plástico fantástico. Nas noites quentes eu ficava me embalando na rede ate o sono chegar. Uma vez que fiquei doente, tive uma febre, minha mãe me deu um chá de ervas e adormeci, de repente acordei com a presença de uma pessoa ao lado da rede. Era uma pessoa com a minha aparência, fiquei assustado, mas não parei de olhar aquela pessoa que pouco a pouco foi desaparendo.
Os banhos nas marés de lua eram prazer e risco, algumas vezes a profundidade das águas verdes e salgadas obrigava-nos a ficar segurando os paus que sustentavam as palafitas. Os meninos mais fortes, tanto no corpo com na coragem, subiam nas pontes de madeiras e se jogavam dentro da água dando cambalhotas circenses – achava aquilo fabuloso, mas nunca tentei fazer tal proeza, reservava-me o direito de nadar e mergulhar, diga-se, de passagem, que até hoje acho que nado bem.
Não raro compartilhávamos as águas quentes das marés com dejetos humanos que boiavam ao sabor das correntes marítimas e eram devorados pelos peixes chamados papista. Os banheiros das casas eram feito sobre o areal que com o passar do tempo foi sendo substituído, naturalmente, pela lama, à medida que iam sendo construídas mais casas. Dependendo da lua a maré tinha uma altura, às vezes eu ficava horas sentado no quintal esperando vê-la subi e assim poder banhar, entretanto, ela vinha minguada, mal dava para cobrir a lama e carrear os dejetos dos banheiros. Em outros momentos as fezes ficavam ressequidas, escuras, cheias de bichos e a maré não voltava, o cheiro fétido invadia as residências e a volta das marés altas era esperada com grande apreso.
Lembro-me, certa vez, de que um dos meus irmãos foi tomar banho na maré e ao mergulhar cortou o joelho. Primeiro, uma surra no coitado, minha mãe deu e depois colocou, no ferimento, açúcar com café. Escorrendo pela perna do menino o sangue continuou, obrigando a genitora a levá-lo ao hospital. Fomos proibidos, terminantemente, a voltarmos a banhar na maré. Não lembro por quanto tempo a proibição foi temida.
No final da tarde minha mãe preparada à janta. Às vezes eram “borrachos” (filhotes de pombos), ou sopa com o resto da carne e arroz do almoço, não raro, comíamos bofe cozido ou frito, nessas ocasiões o alimento era batido com a faca de forma cuidadosa para que os vizinhos não escutassem o som. Era motivo de vergonha, símbolo de pobreza absoluta comer esse alimento que quando feito com toucinho ficava saboroso.
Naqueles tempos não conhecia a morte, a exceção a do meu avô que morrerá quando eu tinha cinco anos. Tudo era alegria, correr na rua à noite, principalmente, quando a lua recheava o céu de luz prata acinzentada. Ainda não conhecia a fome das terras dos Campos do Pó que devoram a carne das pessoas que amamos, deixando-nos cheio de interrogações, descrente do pão e do vinho. Flores pra mim eram apenas usadas na enfeitar as portas das casas que eram feito de pau ou papelão e coberta de palha ou pra serem colocadas nas igrejas para homenagear santos.
O bairro da Liberdade me traz recordações gostosas como se fosse doce de buriti que meu papai comprava no Mercado Central. O que ontem foi momentos da minha meninice, hoje é poesia.
Helio Teixeira Leite
Novembro de 2011.
|