"Há um quê de charme e de ousadia em muitos criminosos que entraram para a história da humanidade. E muito por causa disso é até compreensível que alguns deles sejam vistos, pelo menos por determinados setores da sociedade, como celebridades instantâneas". Recorro à esta citação, encontrada num dos meus cadernos de anotações da época da faculdade, cheios de informações subtraídas de palestras, cursos e seminários do qual participei, para elucidar aos meus leitores a minha relação com o que costumamos chamar de banditismo.
Quanto mais idade vou adquirindo, mais entendo o quanto criminosos são figuras complexas, que vivem a sua própria moral, não se submetendo de forma alguma ao sistema como o conhecemos. Eles são transgressores por natureza e, no final das contas, não passa de perda de tempo da parte moralista da sociedade querer adequá-los a algum tipo de comportamento, digamos, ético.
Esta semana deparei-me com uma joia do cinema argentino contemporâneo que trata justamente de questões como essas abordadas nos parágrafos anteriores. Trata-se de O anjo, de Luis Ortega (que tem produção de, entre outros, o extraordinário Pedro Almodóvar). E assim que os primeiros créditos começam a surgir na tela após o final da sessão, pego-me pensando: "por que o cinema hollywoodiano não consegue, na maioria das vezes, esmiuçar o mesmo assunto com tamanha maestria, sem deixar de lado os tiroteios, os efeitos especiais e o sensacionalismo?
O anjo conta a história de Carlos Brown (vivido pelo excelente ator Lorenzo Ferro em seu primeiro trabalho para o cinema). Por trás de seus olhos sedutores e pueris e o corpo de um adolescente em formação há um marginal especialista no que os americanos costumam chamar de breaking and entering (ou, como conhecemos em nossa língua natal: invasão de domicílio). E ele exerce sua "arte" - pelo menos, ele trata seu ofício como se fosse uma - com uma naturalidade gigantesca.
Contudo, sua vida esbarra com a do também jovem Ramón Peralta (Chino Darín) e sua família criminosa. E é a partir desse convívio e do seu afastamento cada vez mais recorrente de casa que ele começa a se desdobrar num pilantra profissional. Desde o simples ato de aprender a atirar até a facilidade com que consegue invadir lojas de armas, joalherias e residências particulares, Carlos vai mostrando com extrema minúcia para os espectadores a reconstrução de seu caráter (já ambíguo), sofisticando-o com práticas mais e mais subversivas.
Elucidando os fatos de outra maneira: Carlos é o modelo típico de transgressor, daquele que não se submete a nenhum tipo de ordem social e faz de sua própria personalidade um desafio a ser decifrado pelos demais. Sempre com um sorrisinho sardônico no rosto e opiniões que incomodam aos mais conservadores, ele segue importunando a sociedade com seu temperamento fora do tom. E deixando todos - inclusive seus próprios pais - perplexos.
Adorei a ideia da trilha sonora rock n' roll aparecendo em momentos pontuais do longa, em que os personagens se deparam com as decisões mais difíceis e agressivas de suas vidas. E também achei extremamente inteligente da parte do diretor o uso dos closes nos lábios do protagonista toda vez em que ele se defrontava com imagens e pessoas capazes de provocar a sua libido (e nesse momento, é fácil de entender porque Almodóvar aceitou produzir o projeto).
Há um forte apelo em Carlos que me fez lembrar de Louis Bloom, personagem do ator Jake Gyllenhaal em O abutre, filme do diretor Dan Gilroy. A diferença é que lá o personagem utilizava-se da indústria midiática e sua eterna relação de devoção com a tragédia e o mórbido para produzir suas artimanhas. Já aqui, a motivação do protagonista é mais pessoal e não voltada para algum tipo de projeção social ou ostentacionismo.
No passado pessoas como Carlos seriam rotuladas facilmente como rebeldes sem causa. Pelo contrário. Ele é um rebelde COM causa. O problema é que sua causa é justamente a de não pertencer ou ser subserviente a um sistema de ideias, mas sim subvertê-las e isso sempre irá incomodar a parte mais conservadora da sociedade (portanto, ela nunca conseguirá entendê-lo completamente).
Termino de ver a película num misto de alegria e apreensão. Alegria pelo fato de estar diante de uma das melhores realizações cinematográficas com que me deparei neste ano e apreensão por sentir que daqui para frente a sofisticação entre o mundo criminoso vem crescendo tanto que daqui para frente teremos enorme dificuldade de distinguir cidadãos de bem de bandidos (tamanho o charme que envolve os membros da segunda categoria). E isso é muito grave.
E refém de minha dúvida entre aplaudir e ficar temeroso sobre o futuro da humanidade, chego à conclusão óbvia: mais uma vez a sétima arte fez um gol de placa, pois ela também transgrediu a ordem natural dos fatos de forma tremendamente elegante.
Logo, uma salva de palmas para ela!
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