Agora que ficou sacramentado de uma vez por todas que o show comemorativo dos 50 anos do Festival de Woodstock não acontecerá mais (e, na boa, não acho que tenha sido uma decisão equivocada, pois a sociedade contemporânea é por demais violenta e desequilibrada para sequer entender o significado do que aquele momento representou para a geração que o viveu), cabem a nós - e refiro-me à geração a qual pertenço, posterior ao evento, e também a quem por lá esteve - relembrar do festival original dentro do possível.
Para isso, tive a sorte de me deparar acidentalmente com o dvd do documentário Woodstock - 3 dias de paz, amor e música, do diretor Michael Wadleigh (e que traz nos créditos como assistente de direção nada mais nada menos do que o cineasta Martin Scorsese) dando sopa num sebo do centro da cidade. Eis que rapidamente me apoderei da relíquia e levei-a para casa, para reassistí-la (pois já havia assistido o documentário uns cinco anos atrás).
E a impressão que me ficou - mais uma vez - após assistir as mais de três horas de película foi a de que se trata de um evento único, ímpar, que dificilmente se repetirá ao redor do mundo (até porque o mundo não possui mais as mesmas qualidades daquele tempo e anda conservador em excesso).
Woodstock não foi simplesmente um festival de rock. Enganam-se aqueles que assim o enxergam! Foi, isso sim, uma grande catarse, um evento quase mediúnico (ou bíblico, como se referiu recentemente num artigo o diretor de teatro Gerald Thomas). Pessoas passeando nuas e mantendo relações sexuais ao ar livre, a inexistência de banheiros que suprissem as necessidades mais básicas dessas pessoas, um nó tático imposto a uma cidade que decididamente não estava preparada para receber um evento daquela magnitude, até mesmo a chuva torrencial que precisou parar as apresentações, pois poderia danificar de uma vez por todas os aparelhos e instrumentos. Em suma: uma prova de fogo e resistência apenas para fanáticos pelo rock n'roll e sobreviventes de grandes batalhas épicas.
Eu sei, eu sei... Você quer saber dos shows! E nesse quesito é como chover no molhado em termos de genialidade musical. Joe Cocker cantando (melhor: uivando) enquanto recita os versos de "with a little help from my friends", dos Beatles. Detalhe indispensável: ouçam o setlist inteiro de Cocker, disponível no you tube. Em uma palavra? Magnífico! A anarquia sonora, latina - e impecável - de mestre Santana (que depois apareceu por aqui em 1991, no Rock in Rio II, e me tornou fã de sua obra para o resto da vida). A guitarra alucinógena de Jimi Hendrix, dedilhando "star spangled banner", um libelo contra a Guerra do Vietnã que assombrava os EUA naquela época. A poesia intimista e adorável de Joan Baez, grávida de seis meses em cima do palco. O rock visceral de Canned Heat, The Who, Credence Clearwater Revival, The Band e, claro, Janis Joplin (musa eterna dos roqueiros mais nostálgicos). E isso só para começar a história.
Entretanto, o filme de Wadleigh é muito mais do que música e exaltação à contracultura. É preciso que o espectador entenda a proposta além dos gritos frenéticos e dos riffs fabulosos de guitarra. Woodstock é, antes de tudo, um fenômeno social e transgressor que ditou costumes, modismos e regras que se desdobraram em múltiplas tendências com o passar das décadas.
Infelizmente, como tudo muda assim também acontece com a humanidade que, de tempos em tempos, piora - e muito. Prova viva disso foi a comemoração dos 30 anos do festival em 1999 que rendeu muitas polêmicas e confusões (só para se ter uma ligeira ideia teve tiroteio e tudo naquela ocasião!). E acredito piamente que a catastrófica celebração pesou como fator decisório para a não realização desta nova data comemorativa. Ou seja: os tempos de liberdade, paz, amor e música deram lugar a uma turbulenta era cheia de rivalidades e fanáticos religiosos pagando de reserva moral ao mundo.
Talvez um dia o mundo tome vergonha na cara e entenda que aquilo que costumamos chamar corriqueiramente de sociedade ou de "nova ordem mundial" não deveria estar sujeito à pregações inúteis, ostentacionismos sórdidos e uma eterna devoção ao capitalismo usurário do dia-a-dia. Até lá, fica a tristeza de não poder relembrar de um período magnífico que entrou para a história justamente por romper barreiras que se acreditavam intransponíveis.
Ou resumindo em poucas (e irônicas) palavras: Woodstock completa 50 anos. Parabéns a ele e muitos anos de vida! A humanidade completou só na era cristã mais de 2000 anos e ainda não aprendeu a melhorar coletivamente e parece bem longe de sequer arranhar essa estrutura. Precisa dizer mais alguma coisa?
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