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Vendendo a alma
(Suspiria: uma desconstrução sobrenatural do mercado corporativo)
Roberto Queiroz

Imagine uma empresa bem sucedida, de renome (uma Coca-cola, Rede Globo, Apple, IBM, McDonald's, etc), com uma folha de pagamento majestosa, funcionários felizes, realizados, certificados de responsabilidade ambiental, ações na bolsa de valores, o melhor dos mundos. Agora pense a respeito do que você NÃO CONHECE acerca dessas mesmas empresas, suas negociatas sujas, aquilo que não fornece de informação para a mídia, os escândalos e processos abafados na surdina... Imaginou a cena?

Pois bem: por incrível que pareça o filme nos últimos anos que melhor delineou essa realidade ambígua do corporativismo empresarial foi um longametragem de cunho sobrenatural. Estou falando do remake de Suspiria, do diretor italiano Luca Guadagnino.

O cenário do longa - a escola de dança Markos - nada mais é do que uma metáfora para muitas dessas corporações que se escondem atrás da fama de seus nomes e seus falsos engajamentos sociais. Não vejo diferença alguma entre a professora Madame Blanc (Tilda Swinton) e muitos dos executivos casca-grossa do chamado Vale do Silício, epicentro da tecnologia mundial hoje. E mesmo a jovem Susie (Dakota Johnson) não é o exemplo de profissional promissora que muitas empresas desejam ter em seus quadros, mas sim o gatilho catalisador de todas as desavenças que costumam ocorrer em qualquer organização administra.

Contudo, há todo um clima surrealista, soturno, diabólico na maneira como Gaudagnino constrói sua narrativa. E isso é proposital. Ele força a mão em muitos momentos, pois quer mostrar o quanto esse animal (que chamamos corriqueiramente de ser humano) é tão complexo e autodestrutivo.

O objetivo (ou meta, como costuma chamar o mercado corporativo) é montar o espetáculo Volk. Entretanto, trata-se de uma jornada árdua que custou o abandono de muitas dançarinas, exauridas tanto pelo processo de ensaiar, quanto pela rigidez da responsável por montar o espetáculo. Entretanto, a pergunta que me fica é: até que ponto abandonamos de fato uma empresa dessa envergadura?

Conheci tempos atrás dentro do metrô uma moça, ex-funcionária da Infoglobo, uma das subsidiárias das organizações Globo, que me disse nunca ter conseguido virar a página após sua demissão. E mais: teve dificuldade de voltar ao mercado de trabalho e mesmo de conseguir uma carta de referência da empresa.

Assim na vida, assim na ficção. As dançarinas começam a desaparecer e o diretor entrelaça seus sumiços com o jogo de corpos aprendendo a coreografia do espetáculo, que mais parecem engrenagens trabalhando em série como no Tempos modernos, de Charles Chaplin. E essa correlação não é acidental. Todas ali são peças descartáveis num mercado que descarta seres humanos com uma facilidade cada vez mais impressionante.

Porém, como nem tudo na vida é sempre preto no branco, o diretor precisa inserir obstáculos e subtramas obscuras para confundir o espectador, deixá-lo à primeira vista perdido. Daí toda a crítica feita ao estado como mantenedor da ordem (o pano de fundo envolvendo o sequestro perpetrado pelo grupo terrorista Baader-Meinhoff é, no mínimo, um tanto melindroso), à sexualidade como via de escape para lidar com os problemas usuais da sociedade e mesmo à fé, artigo cada vez mais polêmico na atual conjuntura social vigente.

E esmiuçada toda esta trama sórdida, o espectador se depara com uma grande desconstrução sobrenatural (dark mesmo) do que costumamos chamar de mercado de trabalho. Na verdade, estamos virando mecanismos de um esquema torpe que transforma homens em reles objetos de curta duração, logo substituíveis por outros mais jovens.

Alguns mais afeitos à idolatria ao sistema chamarão isso de "a vida como ela é". Já outros, que preferem encarar de frente a dureza dos fatos e não perdem tempo acreditando em sorte, destino ou determinismos biológicos, sairão da sessão um tanto amargurados e ainda mais descrentes com a realidade cotidiana.

Mesmo assim, recomendo Suspiria com orgulho. Quando soube do lançamento deste projeto a princípio fiquei temoroso pelo resultado, pois adoro o longa original de Dario Argento (de 1977) que foca mais no aspecto horror. Mas acabei admirando a nova versão por sua ousadia. Tanto que me propus a repensar o projeto à luz dos tempos atuais.

E se por acaso não entendi nada da proposta atual e não passo de um louco que enxerguei demais onde não devia, mesmo como loucura minha reflexão me deixou um tanto satisfeito.

E tudo isso através de um filme de terror... Quem diria!


Biografia:
Crítico cultural, morador da Leopoldina, amante do cinema, da literatura, do teatro e da música e sempre cheio de novas ideias.
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