AS MÃOS SUJAS DO PROLETARIADO
(ONZE TESES SOBRE A CLASSE TRABALHADORA)
Arturo Gouveia
1. O mito da classe trabalhadora como uma classe revolucionária, criado no século dezenove, vem ruindo há muitas décadas, pelo menos desde 1914. A eclosão da guerra na Europa, em agosto de 14, foi festejada pelos maiores sindicatos do continente. O mesmo se deu nos Estados Unidos, com sua entrada na guerra em 1917. Foi o fim da Segunda Internacional, cujas orientações mais progressistas retrocederam ante um nacionalismo tacanho e imbecil. A ascensão do nazismo, no entre-guerras, seria impossível sem os industriais e os banqueiros que jogaram suas esperanças em Hitler. Mas também seria impossível sem a adesão de uma classe trabalhadora que delegou seus sonhos a Hitler. O imediatismo do fim da hiperinflação foi mais importante do que um projeto realmente revolucionário. Desde então, este tem sido o comportamento da classe trabalhadora: imediatismo, inoperância, medo.
2. Atravessamos o século vinte com a letargia da classe trabalhadora. A luta de classes é o motor da história, mas a classe trabalhadora vem sendo protagonista passiva desse processo. Nas diversas revoluções socialistas, a classe trabalhadora foi manipulada por castas burocráticas e pelo culto à personalidade. Como um todo, ela não consegue sair desse paradoxo: por um lado, ela quer melhores salários, paz, vida decente; por outro, não deixa de fabricar as tecnologias e as armas que a estão destruindo.
3. A classe trabalhadora está no Canto XIII do Inferno, terceto treze. Uomini fummo, e or siam fatti sterpi. Quando Dante se aproxima de umas árvores que gemem e quer saber quem são, elas dizem: “Homens fomos, e agora somos lenho”. A classe trabalhadora perdeu completamente – se é que algum dia já teve – duas noções fundamentais da filosofia marxista: ruptura e emancipação. Suas lutas são contingentes, insignificantes, de reivindicações conjunturais e ínfimas, que não afetam a periferia do sistema. O que ela mais quer é se integrar ao sistema, não rompê-lo; ela quer se deleitar com o consumo desenfreado, com a obsessão panótica e panfágica da mídia, não transcender essa reificação. Por isso, sua alma foi atirada por Minos no Sétimo Círculo, onde germina em forma de tronco bronco.
4. Entre 1918 e 1919, pouco antes de ser atingida na cabeça por uma bala fabricada pela classe trabalhadora, Rosa Luxemburgo gritou ao mundo: “Socialismo ou barbárie!” Essa declaração premonitória da Liga Spartacus merece duas ponderações: a) O socialismo, em várias experiências, transformado em Estados totalitários que nunca foram controlados pela classe trabalhadora, foi pura barbárie; b) A classe trabalhadora, a bela mão-de-obra da guerra fria e da maior indústria bélica do mundo, está completamente imersa na barbárie. Se os americanos resolvessem suspender a indústria bélica, eles teriam o maior desemprego da história. O imperialismo republicano-democrata não pode viver sem guerras, pois tem que escoar sua bela produção de armamentos. Onde está a consciência da classe trabalhadora para contestar isso? Ela vai contestar o seu próprio ganha-pão? Ou o pão da classe trabalhadora americana não tem o gostinho de crianças mortas em Bagdá? A exemplo do que ocorreu com o Projeto Manhattan, a classe trabalhadora ainda não descobriu que se tornou genocida? É necessário esperar um mensageiro de Corinto para anunciar que Édipo, o salvador de Tebas, é o destruidor de Tebas?
5. Um soldado americano pode ter Síndrome da Guerra do Golfo. Sejamos justos: dez soldados americanos podem ter Síndrome da Guerra do Golfo. Sejamos mais justos: cem soldados americanos podem ter Síndrome da Guerra do Golfo. Mas meio milhão de crianças mortas em Bagdá não podem. Onde está a classe trabalhadora norte-americana para romper essa disparidade? Onde está a classe trabalhadora iraquiana para suplantar esse terror? Onde está a classe trabalhadora mundial para agir contra isso? Agir? No máximo, fazem alguns protestos efêmeros que logo se transformam em reportagens, em filmes e em livros para uma minoria ver.
6. O jovem Alexandre conquistou a Índia. César derrotou os gauleses. Eles não tinham ao menos um trabalhador fabricando armas para eles? Quem fabricou as armas da Tebas de sete portões? Nos livros constam nomes de reis. Os reis arrastariam sozinhos esteiras de armas? Quem fabricou o Enola Gay? Que dedos podres construíram as bombas V1 e V2? Apenas o gênio de Von Braum? Quem construiu os laboratórios de Mengele? Quem ergueu as guaritas do Gulag? Quem poliu as lâminas e as pás de Hiroíto utilizadas em Nanquim? Que mãos empacotaram o napalm de Saigon? Perguntas como essas o trabalhador não faz nem lê. Hitler, o belo vegetariano, conquistou a Europa. Hitler não tinha um cozinheiro consigo? Onde estava a consciência da classe trabalhadora quando estava exterminando a classe trabalhadora? Auschwitz foi montado apenas com as plantas de Speer e os gases da I. G. Farben? E os operários não fabricaram todo o papel das plantas, as fundações, os arames farpados, os chuveiros e os gases? E os trabalhadores dos memorandos, dos documentos, das ordens? O trabalho alienado matou setenta milhões de pessoas nas duas guerras mundiais. Trabalho alienado não é trabalho de quintal, mas serial, industrial, com as mãos sujas do proletariado. A classe trabalhadora, cada vez mais domesticada, conseguiu inverter a metamorfose de Narciso: passou de flor a puerilidade egoísta. Esse egoísmo é a absoluta falta de solidariedade entre trabalhadores que se espelham não em águas diáfanas, mas na mais pura lama do capital.
7. No conto “La Casa de Asterión”, Jorge Luis Borges cria um Minotauro muito singular: o monstro tem medo de sair de seu labirinto, de infinitas portas abertas, por causa do terror que o rosto da plebe lhe infunde. Hoje, uma pessoa que queira ter uma experiência própria de individuação tem que se manter longe dos gostos da plebe. Em sua grande maioria, a classe trabalhadora tem gostos culturais monstruosos. Há quem replique que às vezes ela ouve Strauss e Vivaldi ou simplesmente não tem oportunidade de uma cultura melhor. Mas, se ela é revolucionária, tem que romper com a indústria cultural que procede à sacralização da imbecilidade. Está ocorrendo o contrário: a indústria cultural é fabricada pela ação irreflexa da classe trabalhadora.
8. O dia Primeiro de Maio deve ser festejado como o Dia do Capital. A classe trabalhadora deve vestir a farda de George Washington e desfilar na Quinta Avenida, Arco do Triunfo, Avenida Paulista, Praça Vermelha, Praça da Paz Celestial. No fim do desfile, encharcada de calor, deve tomar um banho de coca-cola. Depois, comer um sanduíche, um lanche padronizado, para dormir com tranqüilidade e não sonhar com as ossadas dos tútsis. Sem esse alívio, a classe trabalhadora, na manhã seguinte, não terá energias para fabricar mais armas.
9. O Anjo de Paul Klee está dando as costas para o presente: as ruínas da classe trabalhadora. A consciência da classe trabalhadora é a consciência da mercadoria. A classe trabalhadora, extremamente ativa na indústria bélica, extremamente passiva na indústria bélica, está irmanando as impossibilidades. Em sua inércia autodespótica, a classe trabalhadora está esperando o Messias surgir de Wall Street para redimi-la. Um emprego qualquer é a meta teleológico-redentora do proletariado. É a imploração da exploração. Como na legendária Atlântida, os trabalhadores estão sendo engolidos pela maior lama da história e vociferando pelo emprego escravo.
10. As resistências da classe trabalhadora à opressão capitalista não têm sido significativas. Adorno foi perspicaz em apontar, na Minima moralia, a ausência de um novo sujeito histórico capaz de abrir alternativas à lógica monopolista do capital e à destruição da alteridade. Sua Dialética negativa é o imperativo categórico da impotência da classe trabalhadora. Se Marx ressuscitasse hoje, no século vinte e um, e insistisse na tese da classe trabalhadora como esperança da história, isso seria a robinsonada de Marx, ou seja, a miséria da sua filosofia.
11. Trabalhadores de todos os países, uni-vos em um coro de réquiem.
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