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Inadequada
(Eu, Tonya e os ídolos fabricados)
Roberto Queiroz

Como se define um ídolo? Ao pesquisar o significado da palavra no dicionário Aurélio da língua portuguesa, deparo com as seguintes definições: 1. imagem de falsa divindade que é objeto de culto; 2. objeto de grande paixão. E ao ruminar a respeito da segunda definição presente para o verbete, a princípio fico mudo, logo a seguir intrigado e finalmente perplexo.

Nunca fui um grande fã de absolutamente nada. Não acredito em idolatria. Pelo contrário: a considero perigosíssima na medida em que o fã torna-se escravo da vontade, dos desejos e até mesmo do delírio de seus ídolos (em outras palavras: há muito de escravidão em toda relação de idolatria). Por isso, passo. Mas - e é imprescindível que eu exerça o meu direito a um mas aqui nesse artigo - isso não significa que eu não goste de assistir no cinema à grandes histórias envolvendo ídolos do que quer que seja (nas artes, nos esportes, na política, etc) e da grande paranóia que é o mundo que os rodeia.

Pois bem: essa semana fui ao cinema conferir Eu, Tonya, do diretor Craig Gillespie, e me conscientizei de uma vez por todas que, nos Estados Unidos (sim, aquele país da América do norte que se vende para o resto do mundo como "terra das oportunidades"), o ídolo, o famoso, a celebridade, não passam de imagens bem construídas de um país interesseiro, que gosta de angariar a sua, a minha, a nossa simpatia, para depois ser engolido pelo sórdido mundo real. E quando isso acontece, o resultado final é um castelo de cartas desabando sofrivelmente.

Eu, Tonya é a história de Tonya Harding (vivida pela atriz Margot Robbie, que aqui incorpora algumas expressões e olhares sarcásticos de sua personagem, até então, mais famosa: a Arlequina do blockbuster Esquadrão Suicida), uma patinadora que teve tudo para ser a maior da história dos EUA em todos os tempos, não fosse a criação e as influências destrutivas que a acompanharam ao longo de toda a vida.

Fruto de um lar disfuncional, com uma mãe que mais parece um personagem satânico extraído de um best-seller de Stephen King (nem mesmo o pai aguentou a desvairice e loucura da esposa, e acabou metendo o pé de casa) e um irmão devasso, ela encontra na patinação e posteriormente no namorado - e depois marido - Jeff Gillooly (Sebastian Stan) fugas necessárias para obter a glória que almejava para sua vida. Resultado de suas escolhas? Um casamento abusivo, entre tapas e beijos, e uma relação terrível com os juízes nas competições por onde passou.

Fato: Tonya Harding não era, nunca foi, o ídolo que a América desejava vender. Ela não tinha o corpo ideal, muito menos a família ou a conta bancária necessária para agradar àqueles que decidem quem deve vencer ou não. Sua luta estava muito além do que fazia na pista (e olha que ela foi a primeira mulher a ver um axel triplo durante um torneio!). Ela era o alvo a ser atingido, precisava ser afastada daquele meio "impecavelmente perfeito" o quanto antes. Pergunte a qualquer sponsor (patrocinador) da época e certamente, hipócritas até a medula que são, eles negariam, mas... Tonya era a persona non grata do esporte. Ponto.

Como pano de fundo à tragédia no gelo: idas e vindas numa relação autodestrutiva, entre tapas e beijos, um plano sórdido para amedrontar sua principal concorrente (que é retratado como "mero incidente" por aqueles que o perpetraram) a legítima sensação de que ela viera ao mundo para ser usada como exemplo do que existe de pior.

Dois aspectos do longametragem de Gillespie me agradaram muito: 1) a maneira como a trilha sonora (ZZ Top, Supertramp, Siouxsie and the banshees, Dire Straits, Chicago, Fleetwood Mac, certamente a melhor playlist que eu ouvi esse ano até agora!) ilustra as ascensões e quedas de Tonya. Há momentos em que o espectador percebe nitidamente, através da música, que a protagonista está sendo empurrada para a glória e automaticamente o seu tapete é puxado logo a seguir, com uma canção mais lenta; e 2) a decisão do diretor de contar a história a partir dos depoimentos de quem conheceu Tonya Harding (dando ao filme um caráter quase documental). Não fosse essa mistura eu provavelmente não estaria aqui escrevendo esta crítica.

Eu, Tonya, não é simplesmente um filme sobre as alegrias e os deslizes de uma superatleta (até porque Harding nunca se tornou campeã olímpica). Ele é, principalmente nas entrelinhas, um ensaio sobre a hipocrisia que reina no mundo das celebridades, façam lá o que elas façam para viver.

Através de um meio sórdido, canalha e desigual como o do mundo da patinação, é possível nos depararmos com o que tem real valor para a cultura americana. Trata-se de uma nação - aquela que se vende como "a maior nação da história da humanidade" (fala sério!) - que fabrica pessoas e eventos extraordinários para depois posar de grande descobridora de talentos. O problema é que quando esses ídolos, essas personalidades, não atendem à demanda, eles/elas são descartados com a maior naturalidade, e há quem se deixe vender para depois alardear aos quatro ventos (leia-se: a mídia) que "a história não foi bem essa".

Ficou visível o porquê da não indicação a melhor filme no Oscar desse ano (é um filme que incomoda demagogos e politicamente corretos). E por isso fica aqui a minha indicação. Precisamos acordar para a realidade enquanto ainda é possível. Antes que sejamos engolidos de vez por essa indústria da crença e da falácia mercadológica.


Biografia:
Crítico cultural, morador da Leopoldina, amante do cinema, da literatura, do teatro e da música e sempre cheio de novas ideias.
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