Chega setembro. E as semanas passam sem nada de novo. E chegamos a última semana. E duas informações passam pela minha cabeça nesse mês (e que dizem respeito mais especificamente aos cinéfilos): o ano cinematográfico acabou e tudo que deveria ter sido apresentado aos fãs já foi? E quando é que o melhor do cinema mundial irá começar a aparecer em meio a tantas produções babacas que só se escoram no uso abusivo de efeitos especiais e fórmulas gastas, como atores lindos em excesso e cenas de ação em stop motion?
Para minha alegria (e dos fãs da boa sétima arte), o diretor Darren Aronofsky - de clássicos como Réquiem para um sonho, Pi e Cisne Negro e que devia ao seu público um bom filme depois do calamitoso e exagerado Noé - guardou o melhor do ano para o segundo semestre e nos entrega aquele que eu considero o melhor (e mais polêmico) longa de 2017 até agora. Querem apostar? Então vejam! Mas, por favor, vejam de mente aberta.
Mãe!, nova produção Aronofskiana, tem todos os elementos necessários para agredir o público em todos os sentidos possíveis e imagináveis. Para começo de conversa: trata-se de uma alegoria bíblica contada aos olhos da sociedade contemporânea (um colega meu chegou a chamá-lo de Bíblia - versão 2.0). Que seja! Se puder realçar ainda mais a polêmica necessária para narrar esta história macabra (sim, ela é macabra; só não o filme de terror básico que os fãs mais alucinados e fanáticos estavam esperando), eu assino embaixo. Segundo: o filme foi sonoramente vaiado por parte da plateia que o assistiu na edição deste ano do Festival de Veneza. Mais: foi chamado de blasfêmia e crime religioso. Menos, my friends, menos! E finalmente: não é nem de longe o filme comercial que os adoradores da Marvel, da DC, da Pixar, da Hasbro e outros conglomerados de mídia tanto gostam e querem ver na tela.
Afugentei todos os leitores? Não? Que bom! Então vamos aos fatos...
Mãe! conta a história do casal vivido pelos atores Jennifer Lawrence (a it girl mais famosa da hollywood atual) e Javier Bardem (numa atuação louvável e quase mística) que moram numa casa em plena reforma após um incêndio recém-ocorrido. A residência encontra-se isolada do mundo e a mãe (uma clara alusão a mãe natureza) espera com a reforma solidificar o amor que tem pelo marido. Já ele, um poeta que parece ter perdido a capacidade de criar, transparece toda sua angústia e desinteresse pela esposa. Até o momento em que reebe a visita de um misterioso homem (Ed Harris) a quem pedem para que passe a noite, pois está demasiado tarde para que ele volte sozinho para casa. Do momento em que aquele homem coloca os pés dentro da morada do casal, começa uma série de infortúnios os mais diversos (envolvendo a chegada da mulher, dos filhos, um assassinato violentíssimo e um funeral repleto de amigos da família).
A mulher, desorientada, não consegue entender a razão porque o marido simplesmente não enxota os convidados e à medida que o tempo vai passando a família abusada começa a praticar as mais insolentes artimanhas para desestabilizá-la. Quando finalmente conseguem se livrar dos indesejados visitantes, o casal reencontra o amor entre eles e a mãe engravida. Por outro lado, o poeta consegue enfim voltar a escrever e cria uma pequena jóia literária que vira motivo de orgulho e interesse de milhares de fãs, que passam a aparecer misteriosamente em sua casa. Começa aqui o segundo ato de um catarse irracional envolvendo fé, fanatismo e ostentação.
Parece confuso à princípio, eu sei, porém mais do que a conotação religiosa que a história tomou na boca de críticos e resenhistas na internet (procure no you tube e vocês se depararão com as mais diferentes opiniões e analogias envolvendo o longametragem), Mãe! fala aberta - e agressivamente - sobre o colapso da humanidade.
Como uma tragédia de proporções cabalísticas, a vida do jovem casal - o criador e a mãe natureza - é invadida pelos sentimentos mais sórdidos, pessimistas e arrebatadores da nossa chamada civilização (que a cada dia que passa parece mais e mais distante dessa classificação). Abuso de autoridade, a busca pela fama, o celebritismo vazio por trás de fatos e situações que deveriam permanecer menores, inveja, desejo, claustrofobia, disputa por herança, fruto proibido, Caim matando Abel, criação de feudos e seitas religiosas, a dicotomia por trás do conceito de compartilhamento (o bíblico e o mais recente e vazio, das redes sociais), a eterna mania dos que são ajudados em sempre querer mais e mais, chegando a um ponto em que os que oferecem auxílio acabam precisando ser ajudados, intolerância, falta de solidariedade.... Ufa!
Mãe! é um grande manual de más intenções visando explicar a que ponto chegamos como sociedade e o quanto não nos damos conta disso por causa de pequenas vaidades e interesses escusos.
Vi todos os tipos de reações envolvendo o público da sessão que eu estava assistindo: de repúdio à náusea, passando por incredulidade e deboche. E, nesse sentido, é preciso agradecer à Aronofsky. Ele entregou um filme que em nenhum momento é isento de debates (mesmo que eles pareçam covardes e desmedidos). Sentados na filera à minha frente, um casal ria escancaradamente ao final da projeção. Disseram de maneira rasteira: "Que babaca esse diretor! Deve ser um ateu repugnante!" e logo a seguir teceram elogios a certo pastor evangélico, hoje multimilionário e dono de uma emissora de TV, como exemplo de caráter. Pensei comigo: "Meu Deus! Quanta ignorância e indignação seletiva!". Duas senhoras de mais idade saíram no meio da sessão, amendrotadas, provavelmente chamando tudo de monstruosidade. Enfim... Mãe! é tudo isso, para melhor ou para pior, e mais um pouco.
Disse no segundo parágrafo (lembram-se?) ser este, até agora o melhor filme do ano. E que me perdoem os detratores de Aronofsky, que já havia sido caçado pelos puristas quando lançou Noé, mas é. E disparado. Independente de suas crenças (ou ausências) religiosas, ele entrega um dos filmes mais coesos e diretos sobre os tempos sombrios em que vivemos. Digo mais: coloco-o numa lista de obras-primas contemporâneas, ao lado de Dogville, O Filho da esperança e A Paixão de Cristo. O problema: o de sempre. A eterna mania social de preferirmos a hipocrisia a enxergarmos com nossos próprios olhos.
Chegamos a um extremo mundial em que a brutalidade diária vem ganhando contornos de poesia marginal, de forma tão natural que amendontra os poucos lúcidos sobreviventes na face da terra. Certa ocasião o diretor José Padilha, do hoje cultuado Tropa de elite, disse numa entrevista para um jornal que "nós, como sociedade, perdemos a sensibilidade do absurdo". O longa de Aronofsky esmiuça isso de forma tão gritante, que é meramente impossível não sair da sala de projeção se perguntando: "onde foi que eu errei e contribuí para que tudo isso acontecesse?".
Em meu titúlo pergunto se ainda somos humanos. E pergunto isso ciente de estar imerso numa dúvida assustadora. O século XXI sequer completou sua quinta parte e o mundo vem se mostrando um lugar ardiloso e a cada momento mais perigoso para se viver. Aronofsky maluco? Ateu? Prefiro sábio. Ou corajoso. E qualquer ato de coragem no mundo de hoje - por menor que seja - é mais válido do que o silêncio dos covardes, daqueles cujo único talento é o de difamar os outros.
Vejam. Enquanto o moralismo castrador cotidiano ainda não boicotou essa grande lição de vida disfarçada de cinema...
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