Se eu fosse um rio
criaria peixes dentro dos meus olhos,
pintaria cada escama com giz de cera,
renunciaria aos navios afundados,
seus dotes e dons confiscados,
faria um jardim de heras
perto da margem onde pescam,
daria voz ao ramos que seguram folhas,
faria um telefone d'água
para conversas submersas...
Se eu fosse um seco rio
que enterrou suas águas sob os olhos do sol
deixaria à mostra as costelas de pássaros afogados,
abriria em leque os dez poemas mais lidos,
do chão rachado retiraria o diamante mais bruto,
dos meus lábios ressequidos cairiam versos podres
para a frutificação da terra que, quase morta,
abre seu ventre para sementes de árvores longínquas,
mesmo que abandonado pelo Ocidente,
mesmo que esquecido pelo Oriente...
Não sou um rio,
sou apenas um número dentro do caderno,
uma hora que a eternidade deixou cair do bolso,
mas nem por isso jejuo aos sábados,
nem por isso compro mentiras nas bancas,
nem por isso calculo e metrifico os sentidos,
nem por isso morro de medo ou me assusto,
nem por isso escrevo poesia sem feridas,
nem por isso escapo de ser recortado,
nem por isso como sementes e cuspo folhas...
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