INTRODUÇÃO
Tendo me aposentado em 2007 resolvi utilizar o tempo que me restava fazendo coisas para as quais eu, durante a minha vida profissional, não tinha tido oportunidade, seja porque requeriam maior dedicação e porque na ativa eu era excessivamente absorvido por tarefas de curto prazo, seja por medo de me expor demais. Fiz uma longa lista de trabalhos pelos quais tinha interesse, que imaginava iam me causar prazer e para as quais acreditava ter aptidão. Entre estas tarefas não havia nenhuma que lembrasse nem de longe uma autobiografia.
É comum, quando se atinge certa idade, surgir o interesse em escrever suas memórias. Finda a etapa da vida em que a atividade profissional ocupa o centro, os filhos já criados, vida amorosa estabilizada, é normal que o interesse, ou, a libido, ou melhor, o que resta dela, voltem-se para fazer uma retrospectiva, um balanço da vida que passou. Procura-se com as memórias chegar a uma síntese, fazer um resumo do que se fez.
Devo dizer que isto não passou pela minha cabeça. Não que eu não tenha vivido uma vida plena de episódios de interesse, mas, em minha opinião, foram tão somente episódios, ou seja, coisas pontuais. A minha vida como um todo, dentro de uma visão ampla e geral, foi uma vida normal e comum. Fui um homem comum, e, dentro de certa ótica, que não é a minha, fui um homem medíocre. Nada de feitos retumbantes, jamais recebi prêmio algum, nenhuma carreira meteórica, nenhum grande reconhecimento, nenhuma grande obra e as alegrias que tive, muitas, foram as do dia-a-dia.
Para pessoas com certo nível de auto-estima, e me considero pertencente a este seleto grupo, deve ser triste chegar à conclusão que a sua vida não vale a estima que se tem por ela. Deve baixar a auto-estima, diria até que deve acabar com ela. No meu caso, o que me salvou, foi ter chegado à conclusão que, se, de fato, a minha vida não valia a pena ser relatada, havia sim, algo da minha vida que o valia.
Passei por dificuldades, crises existenciais, dor e sofrimento, como todo homem normal, como todo ser humano comum. O que ocasionou este sofrimento não vale muito a pena ser contado, a menos que seja para ilustrar, para tornar concreto e palpável o sentimento. Foram frustrações profissionais, uma briga com um amigo, desilusões amorosas, um rompimento com um parente, uma morte, um acidente, etc. do tipo que acomete a maioria dos homens normais e dos seres humanos comuns. A dor do sofrimento, no entanto, não guarda relação nenhuma com o normal e o comum, ou seja, não é pelo fato do agente imediato causador do sofrimento ser normal e comum, que a dor é maior ou menor. Dor é dor, não importa se o motivo que a causou é bobo, leviano ou, até mesmo, ridículo.
Se o fato imediato que originou o sofrimento não vale a pena ser relatado, a menos que seja a título de ilustração, o que, em minha opinião, vale sim ser relatado, é o método que usei para lidar com ele. Face às dificuldades encontradas, o que eu fazia era pegar lápis ou caneta, colocando no papel tudo o que me vinha à cabeça, sem grande sistematização, nem elaboração ou reflexão. A maior parte deste material são garranchos, quase ininteligíveis e o primeiro destes manuscritos disponível, data de 1976. Certamente existem escritos anteriores, mas estão perdidos entre a minha papelada, no meio dos diários, cartas para amigos e parentes.
De uma maneira muito sintética e muito superficial, condizente com esta introdução, a finalidade desta, chamemo-la auto-análise, era dupla. De um lado visava ajudar a desconstruir fantasmas. Chamo de fantasmas todos aqueles medos aparentemente sem sentido, sem razão e sem fundamento, pelos quais, frequentemente somos assaltados. Na medida em que se põe o medo no papel, cria-se um distanciamento, pois o medo sai do sujeito, o eu, e vira objeto, o papel. Além disso, a própria confrontação com a luz da realidade e da racionalidade, ajuda a desconstruir aquilo que vive e se alimenta de trevas e fantasias.
A segunda finalidade da análise era a ordenação das idéias, inseri-las em um contexto e dar-lhes forma. Talvez isto me seja muito particular, talvez seja estranho à maioria das pessoas, mas tenho pavor de desorganização . A ordem permite prever e planejar, preparar-se para o inesperado e elaborar uma reação para os fatos que ocorrem, o que tranqüiliza e reconforta. Por outro lado, a necessidade de prever e planejar pode também sinalizar insegurança, e, ordem, costuma se opor a movimento e a uma transformação mais radical da realidade. Neste sentido, ordem pode ser associada a uma perspectiva conservadora, o que nem sempre é positivo. Como resolver este impasse? Como veremos, a saída foi desordenar a ordenação através da dialética.
Mas, vamos por partes! Estou me antecipando. O livro do qual estou aqui escrevendo a introdução trata de todos estes temas. Nele examino porque o entendimento, ou seja, a análise de certa problemática pode ajudar a minorar dor e sofrimento. Mais, procuro verificar o que significa o entendimento e no que consiste a sua essência da qual certamente a dialética, a transformação e o movimento, ocupam papeis centrais.
Voltando novamente para o breve histórico das origens deste livro, o que eu dizia era que face às dificuldades encontradas, seja no campo profissional, seja no campo emocional ou afetivo, o método por mim utilizado para tentar superar medos, angústias e preocupações, consistia em fazer uma auto-análise escrita. Isto me acalmava, fazia-me reconhecer que muitos dos medos ou preocupações estavam recebendo uma dimensão exagerada. Permitia também, como já disse, ordenar os pensamentos e colocá-los dentro de um contexto. Tornava possível, além disso, separar aquilo que é possível mudar, daquilo que a gente simplesmente tem que aceitar . Sempre oscilei entre estes dois pólos, ou seja, de um lado, o ativismo e a laboriosidade ocidentais, e do outro lado, uma atitude mais contemplativa, mais oriental, que tenta aceitar o mundo do jeito que ele é .
Como resultado de todos estes anos de auto-análise, colocando as coisas no papel, tentando ordenar os pensamentos e enquadrá-los dentro de um fluxo, não digo normal, mas, ao menos, viável, o fluxo ganhou corpo, materializou-se, concretizou-se. Ou seja, como resultado de análise e reflexão, cristalizou-se uma via, um caminho que inclui e dá sentido à minha vida e tudo o mais que a cerca. O pensamento deu corpo a uma visão de mundo (cosmovisão ou Weltanschauung) que será também objeto da presente exposição de idéias .
Já deve ter ficado claro pelos parágrafos anteriores, que, dentro da minha visão, terapia, isto é, a resolução de problemas psicológicos, e cosmovisão andam de mãos dadas . Ou seja, através do entendimento do problema e da sua inserção em um contexto mais amplo, dá-se um primeiro passo na redução de angústia e dor. De uma maneira simplificada eu diria que quanto mais amplo o entendimento e mais completa a inserção, maior é a redução da dor. Uma fundamentação mais sólida para esta afirmação será dada mais adiante.
A temática central do presente livro, portanto, é terapia e cosmovisão, ou seja, trata-se de expor uma cosmovisão terapêutica, onde dor e sofrimento tenham o seu lugar e se expliquem, ou melhor, sejam explicados, de forma a se ordenar dentro de um fluxo coerente, harmônico e equilibrado . Feita esta afirmação cabem algumas ressalvas. Evidentemente a visão aqui exposta pode servir de terapia para pessoas assoladas por pequenos medos, preocupações e dúvidas. Dificilmente, no entanto, terá alguma serventia para o doente grave, em crise existencial.
Uma segunda ressalva diz respeito à identificação entre terapia e cosmovisão. Na verdade, a terapia aqui proposta é mais do que só cosmovisão. O caminho sugerido inclui também uma etapa de aprendizado. Explico melhor esta questão nos parágrafos que se seguem.
O hábito, aqui normalmente referenciado como padrão comportamental, ocupa um papel fundamental no presente trabalho. O que entendo por hábito é um comportamento, um padrão, um gesto ou até mesmo um pensamento, um sentimento, uma fantasia ou percepção que é repetida durante algum tempo. Padrões são incutidos na nossa vida em função da intensidade da experiência que os originou e em função da repetição, ou seja, do número de vezes em que o padrão é repetido. Assim, a repetição é uma dimensão essencial na formação de um hábito. O hábito representa a componente inercial da nossa vida, dando-lhe estabilidade e constância. Ele é uma ferramenta fundamental na consolidação da nossa personalidade. Nós somos aquilo que os nossos padrões de comportamento, nossa forma de pensar, vestir e agir, os gestos e a postura, definem que nós somos. Se é o hábito que define a nossa personalidade ou se, ao contrário, é a nossa personalidade que define o hábito, isto é uma discussão inteiramente estéril do tipo que discute a precedência do ovo ou da galinha. Ovo e galinha, hábito e personalidade estão de tal forma e tão intimamente ligados, que qualquer separação mais rígida como aquela definida pela relação de precedência é artificial.
Voltando para a questão da importância do aprendizado, é importante ressaltar que qualquer insight promovido pelo entendimento dificilmente será suficiente para alterar um padrão considerado indesejável, caso este já tenha sido incorporado à nossa personalidade através de uma repetição frequente e por um tempo considerável. Para isto, é necessário um processo de reeducação ou aprendizado.
Portanto, terapia no presente trabalho não é só entendimento, isto é, a inserção do problema dentro de uma cosmovisão, mas é também aprendizado. Trata-se de aprender novos padrões de comportamento. Evidentemente que no âmbito deste trabalho não existe espaço para transmissão de noções de aprendizado específico relativos a um determinado problema particular. O que será dado aqui são algumas noções gerais sobre princípios que devem reger este aprendizado. Por exemplo, muito espaço será dedicado ao querer. O querer mudar é fundamental em qualquer tentativa de mudança de um padrão comportamental. E, no entanto, o querer é um dos seus maiores obstáculos, é um dos mais sérios entraves à mudança. No decorrer do presente trabalho será explicado que o querer também bloqueia a mudança porque ele implica em cisão e fracionamento entre a parte do eu que quer e a parte do eu que não quer, isto é, que resiste ao processo de mudança. Vinculado ao querer está também a tensão que dificulta o processo de aprendizado. Também isto será examinado, bem como o papel desempenhado pela auto-sugestão.
Nos parágrafos que se seguem pretendo dar uma idéia muito resumida da minha cosmovisão. Ao mesmo tempo, pretendo esboçar um pouco das suas origens, isto é, quais foram as principais influências que sofri.
Em primeiro lugar cabe ressaltar a racionalidade, o que, no entanto, não significa o reconhecimento do poder absoluto da razão, ou seja, não significa achar que com puro raciocínio, seja lá o que isto for, se consiga chegar ao conhecimento. Raciocínio ou racionalidade trazem sempre implícitos uma realidade, apercebida através dos sentidos. Razão e percepção caminham juntas. A realidade forma a racionalidade, ao mesmo tempo em que é por ela formada, ou seja, racionalidade e realidade são entidades inseparáveis . O fato de realidade implicar em racionalidade significa que a realidade é racional não podendo ser compreendida e apercebida fora do contexto da racionalidade. O fato de racionalidade implicar em realidade significa que racionalidade é realidade, ou seja, que o racional se reflete no real . Afirmações da racionalidade são sempre afirmações sobre a realidade .
Das idéias acima já fica clara a perspectiva materialista do presente trabalho. Embora realidade pudesse, em princípio, incluir a metafísica aqui se identifica realidade com matéria. Em minha opinião nada existe no mundo fora da matéria . O pensamento é um impulso elétrico que atravessa o cérebro, o mesmo acontecendo com sentimentos e sensações; sonhos são baseados em acontecimentos reais e nenhuma imaginação existe que não seja baseada em vivências reais, sejam interiores ou exteriores .
Eu disse acima que ao mesmo tempo em que pretendo dar uma breve idéia da minha cosmovisão, pretendo também fazer conexões com possíveis influências que sofri. Evidentemente falo aqui tão somente daquilo que me é consciente. Muitas outras influências inconscientes existirão. Como o leitor notará ao longo do trabalho, faço poucas referências bibliográficas, o que não quer dizer, de forma alguma, que a maioria das idéias aqui apresentadas é nova. Pelo contrário, a maioria do material aqui apresentado é velho, velhíssimo. Só que está tudo de tal forma misturado, inclusive misturado com idéias minhas, que achei que não valia a pena o trabalho de cirurgião, de destrinchar as diversas linhas de pensamento, identificar as várias vertentes das idéias apresentadas, mesmo porque isto não tem a menor importância no que é essencial que é a compreensão do pensamento. As influências que atuam sobre nós, se relevantes, misturam-se com o sangue, penetram a nossa mente de uma forma tal, que a posterior análise, separação e identificação é artificial e acaba tão somente a serviço da propriedade intelectual que tanto mal tem feito à nossa cultura. Aqui simplesmente identificarei algumas grandes linhas de pensamentos que me influenciaram, sem entrar em detalhes.
Visando fazer a ponte entre a cosmovisão e passagens da minha vida, devo dizer que desde a juventude, filosofia e psicologia me fascinam. Se decidi fazer engenharia o foi por pressão familiar o que não lamento, porque me deu uma base lógica que, como se verá, me é muito cara. No entanto, o objeto de estudo das engenharias, isto é, máquinas e geringonças, apesar do fascínio da lógica e da estrutura nelas embutida, nunca me pareceram, por si só, valerem maior esforço e dedicação.
Foi por esta razão que, após o término do curso de engenharia, decidi estudar filosofia na Alemanha. O plano, acalentado com carinho e cuidado, consistia em me candidatar a um doutorado em exatas, ganhar uma bolsa de estudos, e depois, uma vez lá, me transferir para a filosofia. O projeto, como muitos, não funcionou, por inúmeras razões. Entre elas eu diria que faltou coragem para uma mudança mais radical da minha vida.
Mas existe outra razão que vale a pena ser contada para o fracasso dos meus planos. Ela joga alguma luz sobre os meus interesses, e dá também detalhes sobre as influências que sofri. Na hora da matrícula no curso de filosofia na Alemanha que, na época, deixava o estudante totalmente livre, ou seja, perdido na escolha das disciplinas, era comum o aluno procurar conselho junto a colegas mais velhos que ficavam reunidos numa sala para dar orientação a quem pedisse. Foi o que fiz. Quando perguntaram pelas minhas preferências eu disse que queria algo prático, que queria estudar algo que me ajudasse a compreender melhor o sentido da vida, os porquês e os comos, que me auxiliasse a encontrar o meu caminho. Os meus colegas se entreolharam, esboçaram sorrisos irônicos, desnorteados pela ingenuidade e imaturidade da proposta. Fez-se um longo e embaraçoso silêncio e depois de alguma hesitação, consultas e cochichos, mandaram-me estudar marxismo.
Não fiz nenhum curso de marxismo na Alemanha, mesmo porque acho que, se havia, era dado por antimarxistas que faziam uma série de condições, exigências e pré-requisitos. O que acabei fazendo foi um curso sobre Hegel. Entretanto, quem me ensinou dialética, e aí, sim, de forma prática, lidando com questões palpáveis e concretas do dia a dia, foi Bertolt Brecht. Foi com ele que aprendi que tudo muda, tudo está em constante transformação e que realidade é movimento. Foi com ele que aprendi que qualquer separação rígida em categorias é pura metafísica, porque a realidade é dinâmica e não se deixa separar. Assim, por exemplo, não existe fronteira clara entre teoria e prática, a boa teoria visa a prática e boa prática não é possível sem teoria. Foram estes fatos que me levaram a uma noção bastante radical da dialética. Exagerando um pouco eu diria que ao se fazer uma afirmação sobre a realidade, é preciso, imediatamente, olhá-la pela perspectiva oposta à afirmação feita. Isto não é só por conta da intensa dinâmica como também pelo fato da afirmação mudar a realidade, ao menos a percepção desta, e aquilo que era verdade, pode, por ação da verdade, não o ser mais.
Visando complementar a minha cosmovisão, cabe mencionar um elemento que até agora não recebeu o destaque merecido. Trata-se do todo que ocupa um lugar central dentro da visão de mundo aqui apresentada. O todo é simplesmente a soma de tudo que existe. Como tudo o que existe é real e material então o todo também é real e material .
Dentro da minha ótica o todo é paz e isto talvez possa ser explicado pelo fato dele ser ausência de movimento. Se o todo inclui tudo, ele inclui também todas as possíveis mudanças e transformações. Parece então razoável supor que ele próprio, o todo, seja imutável . Ora, mudança e movimento representam transitoriedade, portanto, morte e finitude, consequentemente, sofrimento e dor. Como o todo é ausência de movimento, ele é ausência de sofrimento e dor e, portanto, é paz . Cabe ressaltar que, apesar de tudo que foi dito acima, o todo não é uma mera abstração. Ele é uma experiência concreta e real de paz. Isto será esclarecido nos parágrafos que seguem.
A justificativa de que o todo é paz pode, dentro da cosmovisão aqui apresentada, ser respaldada considerando-se as duas forças básicas que movem o ser humano: união e cisão. Ambas resultam, quando levadas às ultimas consequência, no todo, ou no seu complementar, o nada . O todo e o nada significam paz. Para ver isto mais claramente basta imaginar o iogue e sua tentativa de abolir as fronteiras entre sujeito e objeto. A imersão completa em si mesmo, em particular, no seu corpo, equivale à supressão da identidade, em particular, a mente. A mente ou o pensamento é justamente aquilo que discrimina. Discriminar envolve separar sujeito de objeto sendo, portanto, um movimento de cisão . Ao eliminar a raiz da cisão o iogue atua no sentido da união e daí resulta paz. A imersão completa em si mesmo, equivale à imersão no mundo, no todo. Ou seja, a supressão da identidade, o nada, equivale ao todo. Ambos representam paz.
A idéia do todo como paz também está presente no Gênesis onde o sofrimento do homem começa com o rompimento de uma unidade que havia no paraíso. O movimento de cisão é representado pelo surgimento da vontade, símbolo de liberdade e independência. Algumas religiões colocam a paz também como meta final. O judaísmo, por exemplo, considera que o fim do sofrimento, ou seja, a paz, virá com a vinda do Messias. Visão messiânica semelhante foi apresentada por Marx com a sua meta final de uma sociedade sem classes e sem estado.
Assim, o todo que é paz é a origem primeira e o destino último para o qual tendem ambas as forças básicas de união e cisão. Este raciocínio, no entanto, considera meramente situações extremas. Na prática, no dia a dia, alternamos entre os movimentos de união e cisão e, frequentemente, em um mesmo ato, as duas tendências encontram-se presentes. No caso de adultério, por exemplo, existe um movimento de união em relação à nova conquista, mas existe um movimento de cisão em relação ao relacionamento antigo. Aos movimentos de união e cisão estão respectivamente associados sentimentos de prazer e dor. No cômputo geral, o que vai prevalecer depende fundamentalmente das dimensões espaço e tempo nas quais tudo se situa, ou seja, espaço e tempo é que vão determinar quão intensos e extensos serão os sentimentos de prazer e dor, e o que prevalecerá não somente em termos individuais, como também em termos mais gerais. A visão integradora faz parte da perspectiva de todo defendida no presente texto. Para o exemplo dado acima isto significa considerar sempre todos os elementos envolvidos na questão. Uma visão parcial representa um movimento de cisão ao qual estão associados dor e sofrimento.
Outro exemplo para esta alternância entre união e cisão pode ser dado pelo ventre materno ao qual costuma estar associada a idéia de união e paz. E, no entanto, o parto certamente é resultado de uma crise que resulta em cisão. A vida, num sentido extremamente amplo, talvez nada mais seja do que uma tentativa de voltar à paz original do ventre materno e talvez isto seja possível através de um movimento de união que se sobreponha à cisão originada pelo parto . Num sentido ainda mais amplo esta idéia poderia também se repetir para a mãe terra, ou seja, o aperfeiçoamento que resulta da evolução das espécies, seria uma tentativa de voltar à paz original do nada de onde tudo surgiu.
Poder-se-ia ainda fazer a associação das forças de união e cisão com os conceitos Freudianos da pulsão de vida (Eros) e da pulsão de morte (Tânatos), mas a noção de todo modifica o contexto em que estes conceitos são usados. Por exemplo, para o caso do adultério Eros pode levar a Tânatos, ou seja, amor pode resultar em morte e destruição. Com os conceitos de união e cisão procura-se dar uma abrangência maior aos conceitos de Eros e Tânatos.
Ao invés da visão abrangente dos parágrafos acima talvez seja melhor restringir-se a aspectos mais concretos. Sentimentos de prazer e dor, união e cisão, se alternam, sendo que frequentemente um momento de prazer é a origem da dor que costuma vir depois. Ao lado da montanha existe normalmente um vale e quanto mais alta a montanha, mais profundo costuma ser o vale, ou seja, prazeres intensos podem e costumam vir acompanhados de momentos de grande dor e sofrimento. Este fato, no entanto, não deve dar origem a sentimentos niilistas, pois está em nosso poder aplainar estas diferenças e o resultado não necessariamente tem que ser um deserto estéril e inóspito ou uma planície monótona, mas pode também ser o esplendor de um altiplano. Talvez, de fato, em prol de uma paz suave e duradoura, alguns dos prazeres mais intensos e fugazes da vida estejam sendo excluídos.
No que diz respeito às forças de união e cisão, devo dizer que nos capítulos que se seguem, poucas vezes estas idéias serão usadas de uma forma tão geral e abstrata como aqui. Na maioria das vezes o seu uso se dará dentro de um contexto específico. Imagino que este fato ajude a precisar e esclarecer melhor o seu significado. Por exemplo, frequentemente será mencionada a cisão interna do ser em cabeça (ou mente) e corpo. Esta cisão interna será identificada como uma das principais fontes de dor e sofrimento. Ela reflete também uma cisão externa, pois mente costuma estar associado ao humano enquanto que o corpo costuma caracterizar o nosso vínculo com a natureza .
Mencionadas as principais idéias e conceitos que serão utilizados neste livro quero fazer conexões e associações visando identificar algumas influências que sofri. Também isto faz parte da visão holística que orienta o presente trabalho . Em primeiro lugar quero reconhecer a influência do judaísmo que com o monoteísmo traz embutida a visão holística. Partindo da idéia de que Deus é o espelho que reflete o homem , ou seja, que a visão que se tem de Deus, reflete a visão que se tem do mundo, há que reconhecer que a criação de um único Deus muito contribuiu para um monismo, isto é para uma visão unificada do mundo. Atrás da visão do todo está a idéia de que existe uma base comum que é justamente o que vai permitir a união de tudo. Ou seja, o monismo, de certa forma está por trás da idéia do todo.
Dentro da tradição judaica temos o filósofo Baruch Spinoza cujo panteísmo certamente tem elementos comuns com a visão que orienta o presente trabalho. Em comum com Spinoza temos também o racionalismo bem como certa preocupação com o lado prático da filosofia (Spinoza dedicou boa parte da sua vida à formulação de uma Ética). A filosofia de Spinoza, no entanto, está por demais impregnada de uma metafísica (o mesmo se aplica a Hegel) que, como veremos, é incompatível com o materialismo que predomina no presente texto.
Spinoza é um homem do século XVII o que explica e justifica um pouco as suas concepções. Mais perto da atualidade, está Erich Fromm que através do destaque dado à idéia de união, certamente me influenciou. Seu livro Psicanálise da Sociedade Contemporânea foi um marco na minha formação intelectual. Lembro da minha identificação com a crítica feita por ele à sociedade atual, o consumismo, a coisificação (reificação) e a alienação. O que achei mais fraco no livro foi a parte propositiva, excessivamente idealizada, vaga e indefinida.
Finalmente devo mencionar a influência oriental. A idéia de paz não como abstração, mas como uma experiência física, concreta e real, certamente é fruto desta influência, assim como a idéia de união e equilíbrio interno de corpo e mente, bem como externo de homem e natureza. A origem da influência oriental remonta possivelmente ao início dos anos setenta quando eu me encontrava fazendo o doutorado na Alemanha. Uma crise existencial fruto da solidão, do inverno e das agruras dos estudos, me conduziu à Ioga da qual eu nunca mais me afastei. Mas talvez o primeiro contato que tive com o lado oriental tenha sido a leitura do livro Momento em Pequim de Lin Yutang, no início da minha adolescência. O livro me marcou muito. Apresentava um mundo onde a busca de um equilibro pessoal era peça essencial. Eu continuo acreditando que a procura de uma harmonia interna, dentro do eu, é tão importante quanto a procura da harmonia externa, do eu com a sociedade e com o meio ambiente. Ambos os equilíbrios se complementam e não pode haver um sem o outro, ou melhor, a ausência de um equilíbrio acaba se refletindo na ausência do outro .
Eu não tenho certeza, mas acho que é de Lin Yutang a frase que ficou marcada na minha memória, como delimitadora das diferenças entre a mentalidade oriental e ocidental: o ocidental casa a mulher que ama e o oriental ama a mulher que casa. Na época em que li o livro, a questão não me ocorreu, mas hoje, já mais maduro, eu tenderia a perguntar se não seriam possíveis as duas coisas, isto é, casar-se com a mulher (homem) que se ama e, posteriormente, amar-se a mulher (homem) que se casa. Talvez a proposta deste livro seja responder afirmativamente a esta pergunta, ou seja, mostrar que é possível trilhar ambas as vias, não com respeito ao casamento, que aqui ocupa um lugar secundário, mas com respeito aos caminhos ocidental e oriental.
Tendo dado uma idéia da minha cosmovisão e de algumas influências sofridas, passo a relatar o processo utilizado para a elaboração deste livro, na certeza de que fins e meios não se deixam separar . Ou seja, o processo utilizado para a elaboração do livro certamente influenciou os seus resultados, merecendo, portanto, ser relatado.
Como já disse no inicio desta introdução, as minhas primeiras análises escritas datam de 1976, mas certamente existem outras anotações anteriores, perdidas no meio da minha papelada. Este material é todo manuscrito e o nível de elaboração e aprofundamento é muito ruim. A partir da minha aposentadoria em 2007 e já com a idéia de escrever o livro, resolvi fazer estas auto-análises de forma mais apurada, redigir textos no computador, fazer releituras, revisões e reflexões mais cuidadosas.
Ao tentar começar a redação do livro em 2007 o sentimento que me veio foi de completo desnorteio. Eu estava completamente perdido, sem saber por onde começar. Tinha a mais absoluta certeza do que queria dizer e, no entanto, não o conseguia. As coisas estavam na minha cabeça, (e também no meu corpo, quer dizer, eu sentia o que queria dizer) mas eu não conseguia botar para fora, dar forma aos pensamentos. Faltava a ponte entre o dentro e o fora, faltava construir uma ligação entre a mente e o papel. Faltava também uma visão ampla e geral de todo o material.
O todo e a parte guardam uma relação dialética que é fundamental no processo criativo . Nunca fui escultor, mas imagino que para esculpir uma mão o artista tenha que ter noção da figura completa à qual a mão pertence . Ou seja, ao mesmo tempo em que é a parte, ou melhor, a soma das partes, que vai definir o todo, sem a noção do todo não é possível trabalhar na parte. Para resolver este impasse o método utilizado costuma ser o das aproximações sucessivas, ou seja, o artista primeiramente faz um esboço rudimentar da figura completa que ele quer representar . Assim ele cria intimidade com o todo, o que vai lhe possibilitar, aqui e ali, algum detalhamento, normalmente, mãos, pés e rosto. Depois, vem novo desenho, já mais detalhado, da figura completa, numa versão mais elaborada, seguido de novos detalhamentos e assim sucessivamente.
Foi mais ou menos este o método que utilizei. Comecei tentando dar uma idéia geral da minha cosmovisão, mas depois achei melhor trabalhar em cima de problemas específicos. De vez em quando voltava para a visão geral, alternando esta com a análise de questões mais concretas. Foi assim que nestes sete anos consegui juntar uma quantidade grande de material ao qual, no entanto, faltava dar acabamento, homogeneidade, maior clareza, organizar, eliminar redundâncias, detalhar aqui e resumir acolá. A partir de 2014 resolvi trabalhar nesta síntese e sistematização.
No que diz respeito aos problemas específicos abordados a partir de 2007 ressaltam-se quatro grandes conjuntos de temas: sexo, postura, tensão e hipertensão, velhice e morte. Por razões óbvias, neste livro, retirei o sexo do conjunto de temas abordados, porque me expõe demais e expõe terceiros que não necessariamente gostariam de se ver envolvidos no presente projeto. Evidentemente, como não poderia deixar de ser, o tema sexo está presente em todo o livro. Simplesmente, resolvi não lhe dedicar um capítulo exclusivo.
O livro se compõe de duas partes, um capítulo fazendo a ligação e a presente introdução. Cada parte é constituída de três capítulos. A primeira parte, onde eu introduzo as peças básicas da minha cosmovisão, é constituída do capítulo 1 onde apresento a ideia do Holismo e o todo, o capítulo 2 expondo os conceitos de racionalidade, realidade e matéria e finalmente o capítulo 3 sobre dialética. Juntando cosmovisão com terapia temos o capítulo 4 sobre aprendizado. Na verdade, este capítulo não chega a ser uma ponte entre as duas partes do livro, mas como ele não faz parte da base, nem chega a ser um problema específico, achei que o melhor lugar seria no meio. A última parte do livro, intitulada terapia, é constituída pelos capítulos 5, 6 e 7 enfocando os três temas mencionados no parágrafo anterior, ou seja, postura, tensão/hipertensão e velhice/morte. Por postura entendo a maneira de manter o corpo, ou seja, a forma de posicionar-se fisicamente. Tensão e hipertensão tenta mostrar como problemas físicos e psíquicos podem estar interligados. Velhice e morte fala do fim da vida, ou melhor, da continuidade desta. Gostaria de ressaltar que estes temas visam meramente ilustrar o método proposto, ou seja, eles não foram escolhidos pela relevância que têm, mas tão somente pelo fato de me interessarem particularmente e serem temas de abrangência suficiente para, imagino eu, interessarem a uma gama mais ampla de pessoas.
Na verdade, como não poderia deixar de ser, em virtude da perspectiva holística, existe superposição entre tudo o que será apresentado, ou seja, tudo se inter-relaciona, todos os capítulos do livro têm partes comuns e a divisão em partes e capítulos, representa meramente um artifício de exposição que tenta (mas não consegue) abordar uma realidade una e complexa.
A título de aviso e advertência, devo também acrescentar que o texto aqui apresentado não é um trabalho acadêmico. Trata-se de uma síntese pessoal das experiências que fiz. Isto significa que na maioria das vezes abro mão de um maior rigor científico.
A proposta aqui é prática, é mostrar um caminho, o caminho que eu segui. Deixo bem claro que não se trata de uma opção fácil. O todo, central para a compreensão do método proposto, não é algo aonde se chega, mas é algo do qual se aproxima. A cosmovisão que proponho, assim como a visão do todo que a orienta, é como o Norte de uma bússola, servindo de orientação, mas de difícil concretização ou materialização . Assim, de certa forma, entre a materialidade do todo e a dificuldade da sua materialização, estar-se-ia aqui tentando uma síntese, aparentemente impossível, entre materialismo e idealismo.
Claudio Thomás Bornstein
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