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A ENCHENTE
Parte II
Juarez Fragata

Desde pequeno Hipólito se preocupava mais com os outros do que consigo mesmo. O seu altruísmo o fizera buscar formação para ser padre, pois, acreditava que exercendo o sacerdócio poderia socorrer os aflitos e necessitados de modo integral, e não esporadicamente. Uma vez ordenado o mesmo assumira a paróquia do povoado Saltinho.
Todos os grandes centros são pontos que convergem para um ponto maior. É para este ponto que migram aqueles que têm uma visão ampla, universal, e desejam exercer influência. O ponto de convergência funciona como um receptor de informações e influência, e ao mesmo tempo um emissor destas informações e influência que abrangem os demais pontos de modo quase instantâneo. Já os habitantes dos pequenos povoados se limitam a uma microrregião. Os agrupamentos de municípios limítrofes também funcionam como emissores de informações e influência aos seus distritos, e aos lugarejos de menor expressão. No entanto, estes pontos de recepções ignoram quase todo o contingente de informações e influência que chegam a eles. Estes pontos são como universos miniaturas, com seus próprios costumes e hábitos, fazendo com que as mentes de seus habitantes fiquem focadas naquilo que circula dentro de seus limites. Este conjunto de fatores fizera com que o jovem padre se sentisse preso numa pequena sela com a chave na mão, e tentara se conformar com esse sentimento.

Com o intuito de enturmar-se com os moradores do lugar o jovem clérigo fora algumas vezes ao armazém do Armando, e até se ariscara num joguinho de canastra com os mais velhos. Isso sem falar do futebolzinho com os mais jovens no campinho que tinha mais terra do que grama. No entanto, todo o seu esforço fora em vão. Padre Hipólito não conseguia conectar-se com o povo.
Na verdade o seu único ponto de conectividade era Nivaldo, filho do velho Bergenthal. Nivaldo cursava direito em Passo Fundo, e somente ia para casa nos finais de semana. Surgira tão grande amizade entre eles que, quando o futuro advogado chegava ao povoado, antes mesmo de ir ver os pais ia ter com o jovem padre. A ligação entre os dois era tanta que começara levantar suspeita, e essa suspeita aumentara depois que Nivaldo terminara o noivado com Vânia, filha do seu Emídio. Nem mesmo Vânia garantindo que Nivaldo era macho à desconfiança diminuíra.
Em tempo passado era tido como gay aquele que se colocava na condição de passivo, sendo que o ativo continuava incluído na categoria de homem com “h” maiúsculo. Porém, agora, em tempos modernos os especialistas haviam decretado que, o homem que tem relações sexuais com outro homem, não importa se é de funcionalidade ativa, é incluído na categoria gay. Os mais velhos acataram o decreto, e diziam uns aos outros que esse tipo de relação era como rede elétrica: havia um positivo e outro negativo.
Sempre que podiam os mais jovens os corrigiam. Não é negativo e positivo, mas sim ativo e passivo. O passivo é aquele que perde a guerra com alegria. O ativo é quem finca o pau na merda.

O menos preocupado nesta história era o senhor Bergenthal, uma vez que o seu filho mais velho Normando, o havia preparado para esse tipo de situação.
Ao constatar que os jovens da idade de Normando andavam como touros desembestados correndo atrás das mocinhas, enquanto o filho parecia alheio aos namoricos, o alemão começara a colocar em dúvida a masculinidade do mesmo. A desconfiança fizera com que Bergenthal convidasse o filho para ir com ele a cidade de Planalto. Seu objetivo era levá-lo a zona da cidade. Uma vez dentro da casa de prostituição suas dúvidas aumentaram ao perceber que Normando não mostrara interesse por nenhuma das mulheres que estava no recinto, porém, quando uma mulatinha adentrara os seus olhos brilharam.
-Eu posso transar com a mulher de pele escura? – perguntou ao pai.
-É claro que sim, filho – respondeu o alemão não se contendo de alegria. Afinal, Normando não era aquilo que o mesmo suspeitava. O filho era um jovem que tinha atração por mulheres de pele escura, por isso, as moças do Saltinho não eram de seu interesse.

Todos os finais de semana, e algumas vezes no meio da semana, Normando ia à cidade de Planalto ter com a prostituta de pele escura. Diante das suas constantes visitas a meretriz seu Bergenthal o chamara a sala, e num tom de advertência lhe disse:
-Filho, eu acho que você está se envolvendo além da conta com aquela vadia. Já está mais que na hora de você afastar-se dela!
Normando fora incisivo na resposta:
-Pai, eu a amo, e pretendo assumi-la como esposa!
Subitamente o alemão é tomado pela raiva, e já num tom de voz alterado afirma:
-Filho meu jamais se casará com uma dacu! Ouviu? Jamais!
A senhora Bergenthal assustara-se, com a alteração no tom de voz do marido, visto que o mesmo não tinha por hábito se alterar. Em mais de vinte e cinco anos de casados ela poderia contar nos dedos às vezes que tinha visto- o enfurecer-se, por isso, adentrara a sala correndo, e assim que se deparara com os dois perguntou:
-O quê está acontecendo aqui?
-É este teu filho que está querendo envergonhar o nome da família!
-Você quer dizer nosso filho?
Normando aproveitara a discussão dos pais, e saíra de fininho, somente aparecendo no outro dia de manhazinha.

Bergenthal acreditava que o filho estava prestes a cometer uma besteira sem tamanho, por isso, resolvera entrar em ação e acabar com o intento do seu primogênito. A prostituta de pele escura sumira da zona de Planalto levando consigo uma boa soma em dinheiro. Esse montando fora o que ela recebera para sair das vistas de seu filho.

Como forma de amortizar a falta da prostituta de pele escura Normando começara a planejar uma viagem aos países africanos que falavam língua portuguesa, e acabar-se trepando com mulheres da raça negra, porém, o seu plano caíra no esquecimento quando começara ouvir os relatos de pessoas que retornavam da capital.
Vez por outra a prefeitura de Rodeio Bonito mandava uma ambulância com os pacientes que os médicos do município não mais tinham recursos para tratá-los. Como Saltinho era um dos distritos, automaticamente, os habitantes do lugarejo em estado de saúda precário eram enviados a Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre.
Na maioria das vezes os convalescentes regressavam em estado de perplexidade, declarando que a capital tinha tantas pessoas de pele escura que em certas ocasiões dava a nítida impressão de estar-se num país africano.
Depois de colher algumas informações, Normando fizera as trochas, deixara um bilhete aos pais, e se mandara para a capital, e lá chegando tratara logo de casar-se com uma mulher da raça negra, que já tinha dois filhos, fruto do primeiro casamento.


Ao ficar sabendo do burburinho padre Hipólito começara a cuspir marimbondo. O mesmo não conseguiu mais comer, nem dormir, e uma terrível dor de estômago passara a fazê-lo contorcer-se. A raiva lhe mandava ir de casa em casa e dizer umas boas verdades, enquanto que a razão pedia para ele aguardar até a missa de domingo de manhã, e entre este embate de força acabara prevalecendo à razão.
Praticamente todos os moradores do povoado estavam no recinto sagrado.
O jovem padre subira ao púlpito, e sem delongas disse:
-Eu sei o que vocês andam falando ao meu respeito, e fiquem vocês sabendo que tanto Nivaldo, assim como eu somos homens, e muito. A nossa ligação é decorrente de nossa compatibilidade em assuntos diversos!
Até então padre Hipólito havia conseguido manter a compostura, mas de súbito a raiva assumira o controle.
-Pra dizer a verdade Nivaldo é o único sujeito neste lugar com qual se pode ter um diálogo construtivo. Os demais são todos uns bandos de dentes cariados que quando abrem a boca só sai besteira e mau-hálito!
Ao dar-se conta que tinha pegado pesado demais o padre tentara amenizar um pouco a patada.
-Estou tentando convencer o Nivaldo a se lançar na política como representante do Saltinho!...
-E eu padre – interrompeu o vereador Geovani ajeitando as farripas pintadas de preta para combinar com o bigode que mais parecia uma taturana.
-Me desculpa Geovani, mas você não tem condições de continuar como representante do Saltinho!
-Posso saber por quê?
-Ora, Geovani, o seu único projeto aprovado foi arrancar uma plantação de soja para construir um campo de futebol, e a liberação de uma verba para comprar o uniforme do time!..
-O que o senhor tem contra o futebol padre?
-Nada, apenas acho que tem coisa muito mais importante do que o futebol!
-Seu padreco vestido de urubu, marxista fã de stalin – gritou Geovani dando um banho de saliva nas pessoas que estavam sentadas em sua frente.
Ao ouvir falar de Stalin seu Xerxes levantou-se e disse:
-Puxa padre, eu não sabia que o senhor também é fã do Gordo e o Magro!
-Meu nobre eleitor, eu não estou falando do Gordo e o Magro, mas...
-Então o vereador está falando do Sylvester Stallone. Eu adoro o Rambo. Aquela faca serrote, e aquelas frechas com pontas exprosiva são demais!
-Meu caro eleitor, eu estou falando é de Josef Stalin, e não do Sylvester Stallone!
-Esse ator eu não conheço – respondeu seu Xerxes, fazendo com que a discussão entre o religioso e o político ficasse em segundo plano.

Num instante de raiva padre Hipólito havia chamado à população do Saltinho de bandos de dentes cariados. Quando abriam a boca só saia besteira e mau-hálito, e o povo de modo geral acreditara em suas palavras. Por isso na segundo feira lotaram os consultórios odontológicos de Ametista do Sul e do Rodeio Bonito.
O vereador Geovani aproveitara o ensejo para espalhar o boato de que o padre era comunista, e que tinha feito um acordo com os dentistas da Ametista e do Rodeio, e que por isso tinha dito aquelas palavras, para fazer com que todos fossem aos consultórios odontológicos, levando-o, a receber uma pomposa comissão.
O boato do vereador fizera com que acontecesse um racha entre os moradores. A parte mais abastada ficara do lado do político, enquanto que aqueles com menor poder aquisitivo se colocaram debaixo da tutela do jovem padre, tendo-o, a partir de então como líder máximo do Saltinho.

Agora mais do que nunca padre Hipólito precisava exercer sua capacidade de liderança. Uma enchente estava castigando o povoado, e a todo o momento mais e mais famílias desabrigadas chegavam ao salão de festas da igreja, e já não tinha mais como satisfazer as necessidades mais básicas daquelas pessoas.
O jovem padre correra os olhos no salão, e por um curto período de tempo sentira-se completamente impotente diante daquela situação caótica.
Armando adentrara o salão, e dirigiu-se ao padre.
-Padre, será que o senhor poderia pedir para algumas pessoas me ajudar a descarregar as coisas que trouxe para ajudar as famílias desabrigadas?
Fora como se o dono do armazém aplicasse uma injeção de ânimo em padre Hipólito. Agora alegria e tristeza se misturavam em seu íntimo. O ato de bondade de Armando era o responsável pela a alegria, e a tristeza era decorrente do fato de Armando estar sendo prejudicado tanto quanto os desabrigados, e com certeza aquilo que estava doando iria lhe fazer falta.
-Isso não vai lhe fazer falta Armando? – perguntou o padre um tanto sem jeito.
-Falta com certeza me fará – começou o dono do armazém -, mas me desculpe à expressão padre, o que é um peito pra quem já está todo borrado?
-Não se preocupe que eu vou retribuir este favor Armando!
-Não se preocupe padre, não se preocupe!
Aos poucos as águas foram baixando, e as famílias voltando para suas casas, até que tudo voltara ao normal. Para ajudar Armando o padre Hipólito destinara todo o lucro da festa anual ao mesmo, sendo que ele conseguira quitar todas as dívidas, e ainda sobrara algum para repor a mercadoria.















Biografia:
Evangelista e músico! Livros publicados mediante demanda:Mecânica Quântica e a Bíblia, As Pedras Grandes e Benai Elohim e Nephilim
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