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Ad locum tuum
ANIBAL BENÉVOLO BONORINO

AD LOCUM TUUM



“Vamos até lá fora fazer um lanche “ foi a deixa para meu grupo ,de quatro ou cinco, abandonar com alívio a capela.

Atravessamos a rua e logo ali; na esquina, encontramos aquele bar. Construção portuguesa do século dezenove. Duas portas na face sul e mais duas, na leste, com distância mínima entre si. Caso as juntássemos, o prédio viria abaixo. Ao que parece, nossos antepassados viviam num “entra e sai intenso”, ou estabeleciam que cada pessoa era exclusividade de uma daquelas aberturas. Ai daquele que entrasse pela porta errada, ou saísse.

Entramos, dois por uma e os outros, dois ou três, por outra. Essa entrada era de, no máximo, passo e meio. Abruptamente encontrava-se o balcão, igual a todos os outros. A parte de cima ,em vidro, permitia que os incautos avistassem as iguarias. Ovos cozidos cobertos de farinha, parecendo granadas, salsichas chamadas de recheadas, mas que na verdade eram recheio, coxinhas imitando seios , restos mortais de porcos, nadando em óleo diesel, pastéis murchos e outros menos votados..

O espetáculo, no entanto, ficava por conta das moscas. Não eram poucas. Desciam, como cortinas, em vôos rasantes, aliás pousantes já que patinavam sobre o glacê sem-vergonha, que cobria as malfadadas fatias de bolos de fubá. Onde já se viu, glacê sobre fubá ?.

Eu até me arriscaria a comer um sanduíche, embora a mortadela apresentada não parecesse nem um pouco sadia, mas aquela multidão de insetos, só exaltada por Olavo Bilac, funcionou como um breve contra o apetite.   Quando perguntaram “ o que vai ser “ balancei a cabeça negativamente, com medo de que a boca aberta fosse um convite para uma daquelas desprezíveis criaturas visitar minhas amígdalas

E como outros argumentos, para eu sentenciar “me tira desse convescote”, havia a proximidade do cemitério - uma intoxicação alimentar serviria de pretexto para o pessoal me manter por ali - a desestimulante aparência do bigodudo, que nos atendia, e a abordagem sobrenatural do meu anjo da guarda sussurando : “Não se atreva “.

Meu primo mais velho apelidado de Nera ( corruptela da expressão “quem sai aos seus não degenera”) já entrara, literalmente, em luta corporal com as nojentinhas voadoras. Foi um desperdício de tapas no vazio, exceto aquele que acertou o quadrinho que apregoava : “Deus te dê em dobro...”. O proprietário ficou puto da cara e pronto a exigir uma indenização de um milhão de dólares, caso vivêssemos nos “States”. Ficou tudo por alguns trocados a serem acrescentados ao total da conta.

Parece mentira, mas sobrevivemos todos à tragédia do banquete. Alguém pagou as despesas e voltamos à capela. Eu continuava com fome e algum remorso. Refeição não era coisa para se pensar naquelas circunstãncias. Embora não tivesse uma relação afetiva com o defunto, tratava-se de um tio. E tio, naquela época, era coisa pra se suportar calado e em posição de sentido. Vejo, agora, que tive muitos, mas só gostei realmente de dois. Tias, também, mas aí a estatística é mais generosa. Gostei de quatro.

O pessoal conversava sobre diversos assuntos, pouquíssimos ligados àquele evento fúnebre. Realizei que eu era um conservador, um rapazinho antiquado, que achava imbecilmente que em velório se deve ter um comportamento discreto e silencioso.   Afinal de contas alguém partira , apenas com o bilhete de ida. E hipoteticamente esse alguém deixaria saudades, além de viúvas, dívidas, órfãos e, quem sabe, um seguro de vida. Neste último caso, o silêncio seria desnecessário. Poderia até ensaiar-se um grito de gol. Gol contra, o tio não tinha nem onde cair morto, mas caiu.

Esses pensamentos disputavam um campeonato em minha cabeça. Acho que corei ao imaginar que alguém pudesse ler as mensagens do meu cérebro. Imaginação é o que não me falta, mas às vezes me acredito de uma burrice indesculpável. Se corei antes fico, então, rubro de raiva..

Aproximei-me mais dos mais próximos ao tio, tais como mãe, irmãos, viúva, filhos e cheguei à conclusão que se tratava de um cretino, um assassino, estuprador, ladrão de jóias e de galinhas (refiro-me às mulheres que dão adoidado), um usurpador, o anti-Cristo, um pentelho colado profundamente no sabonete..

Enquanto ouvia o festival de acusações, olhei para o caixão e fiquei fascinado pelos pés do defunto, aliás pelos sapatos. Seguramente não eram dele, mas de algum jogador de basquete. Apontavam para o alto e me lembraram aquelas babaquices de “ pelas escarpas da vida aos píncaros da glória”. De ”glória” lembrei do Hotel e daí para “Carnaval no fogo”, Eliana, Anselmo Duarte, Oscarito e Grande Otelo foi um pulo.

Quando me dei conta do absurdo de minhas lembranças inoportunas, já havia alguns participantes ensaiando sobrancelhas caídas, bocas franzidas e lágrimas secas. A viúva, depois de descansar o prendedor do cabelo em cima do cadáver , com aquele gesto característico segurou as lindas madeixas com a mão esquerda e com a direita recolocou-as no lugar. O rabo de cavalo triunfou. Aliás, fiquei pensando se aquilo era rabo de cavalo ou mula manca .

Pois bem, continuemos. Fazia calor e sepultamento à luz do sol não me parecia adequado. Como me criei vendo filmes americanos, para mim, enterro tinha que ter caixão deslizando suavemente para baixo. Geralmente acontecia sob chuva e todas as pessoas vestindo roupas escuras. Aquilo ali estava mais para o encerramento de um churrasco de fim de semana. Todo mundo de barriga e saco cheios porque a cerveja acabara antes da hora.

Por mais que eu tentasse colocar meus pensamentos em outras áreas, não conseguia. Era necessário situar-me em sítios clássicos: bibliotecas, igrejas, hospitais, para evitar o turbilhão na minha memória. Carnaval, futebol, praia, namoro no escuro , por favor vade retro.


A tampa do caixão já havia sido colocada e o cortejo seguia lento. Minha imaginação, no entanto, jurava que a extremidade inferior da urna estava entreaberta. Não conseguiram, é claro, amassar os sapatos gigantescos. Como não ouvi nenhum comentário a respeito resolvi ficar calado.

Meu pensamento rolou logo para as vítimas de acidentes graves. Vinha depois o doloroso reconhecimento dos corpos. Para os mais difíceis se apelava para as arcadas dentárias. Surgiu um dentista, um dos meus. Enquanto martelava meus dentes, contou-me que em uma de suas viagens à Europa ou aos States, não lembro bem, foi ao teatro. Em um dos atos, a protagonista deitada em sua cama, balançava os pés para a platéia. Divinos pés, inesquecíveis, eróticos, memoráveis pés. Eram os pés de Ingrid Bergman.

Quem estava ao meu lado cutucou-me com o cotovelo. ”Que é isso cara, para de sorrir que vai pegar mal.” Não houve tempo para a explicação. O caixão desceu rapidamente para o jazigo perpétuo da família, pois já havia outro caixão por baixo. O negócio parecia ter sido feito sob medida. Não havia espaço para mais nada, nem dos lados , nem para cima ou para baixo. Cheguei a ouvir o ruído do fecho-eclair A pesada tampa de granito escuro foi devidamente ajustada, como para evitar alguma inusitada fuga.

A procissão de volta foi rapidíssima. Houve gente que saiu, literalmente, correndo. Todos tinham alguma coisa urgente a fazer. Alguns jantares e almoços foram combinados para nunca acontecer e todos repetiam que deveriam se encontrar em situação menos catacúmbica. Cheguei a ouvir, até, uma tijucana besta combinando um “five o’clock tea”.

E no meio dessa procissão de ré, “feliniana” (tenho cada idéia), desvencilhei-me dos demais e voltei ao local da nova residência do tio. Ao chegar junto à tumba, quase morri de susto. A tampa, tão bem ajustada anteriormente, estava levantada na região inferior por cerca de dez centímetros.

18/11/2006


Biografia:
Nasci em Itaqui, no Rio Grande do Sul e resido no Rio de Janeiro desde o final de 1958. Nunca publiquei nada do que escrevo, por que sempre o fiz para consumo próprio e, principalmente, por falta de talento. Agora, acho que perdi a vergonha. Gostaria imensamente de receber as críticas dos meus eventuais leitores peoo e.mail anibalbonorino@superig.com.br.
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