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ANIBAL BENÉVOLO BONORINO




O BALCÃO DA LOJA DE TECIDOS

             Anibal Bonorino



Depois do incêndio, que destruiu quase todo o quarteirão, só a família de Bernardo não tinha para onde ir naquela cidade. Os demais buscaram os parentes em outros bairros, que os acolheram, mais pelas aparências do que por solidariedade. Bernardo mandou a mulher e dois filhos para a casa da sogra, que residia em Barrancas. E permaneceu em Jade Negro, sabe-se lá para fazer o quê, pois o emprego perdido, dificilmente seria recuperado naquela cidade. O filho mais velho já não morava   com a família, mas numa cidade grande , trabalhando numa fábrica de peças para automóveis. O terceiro permaneceu próximo ao local da tragédia, hospedado na casa de um amigo contrabandista.

Barrancas era uma cidade suja pela poeira das ruas sem calçamento. E a chegada da mãe, com os dois salvados do incêndio, não provocou nenhuma festividade no local. O sol de dezembro era cruel e o povo se aninhava nas sombras das peças centrais das casas. O silêncio era mal-humorado.
Na estação do trem, o marido de uma das tias os aguardava. Recebeu a trinca com apertos de mãos suadas e aquelas perguntinhas de praxe. E deve ter pensado : “ pelo amor de Deus, e ainda trouxeram um cachorro”.

Chegaram à casa de muitos quartos, de uma divisão infame, a mãe e o filho mais moço. Pelo caminho deixaram a irmã na residência de uma tia rica. Estaria lá para fazer companhia a uma prima um pouco mais jovem e, também, para não pesar no orçamento da casa da avó.

Foram de poucos meses as estadas naquelas casas. Estranho como pareceram tão longas. Talvez a atitude mesquinha das tias tenha marcado mais do que deveria. Mas o tempo se encarregou de perdoar os dois lados. Ambos erraram. Os acontecimentos foram desprezíveis e, por isso, não merecem ser relatados. Principalmente em memória da avó, cega e paralítica. Mulher amada por Celso, que demonstrava seu carinho, acariciando as mãos pálidas da velha, enquanto cantava as canções, que a ela agradavam e aquelas que aprendera há pouco.

Corria , perto da casa. um rio. Não um riozinho, mas uma respeitável e bela serpente de águas cristalinas na superfície, mas pardas na realidade de suas entranhas. Era a alegria das férias da juventude do local, que escolhia em que parte da margem iria se banhar naquele verão. Às vezes rio abaixo, outras, rio acima. Celso amava aquelas tardes que passava com os amigos, longe dos problemas familiares.

Do outro lado do rio o idioma era diferente, como diferentes eram o país e os hábitos. Celso nunca atravessou as águas, nem de barco, nem a nado. Para barco não tinha dinheiro, para nado não tinha fôlego. Faltou-lhe, também, um pouco de curiosidade. Apesar disso, ninguém lhe cobrava o fato de ser o único a não conhecer o outro lado.

Depois de poucos meses, Celso e a irmã já estavam reunidos nas casas de outros parentes , onde passaram a ter a certeza de não se sentirem intrusos .

Dona Cecília, a mãe, já havia partido para Fortaleza para encontrar-se com o marido, agora reintegrado em suas funções de funcionário público. Permaneceriam no nordeste por tempo indeterminado e para lá carregaram o filho, que havia permanecido em Jade Negro.

Celso e a irmã não pareciam, e realmente não estavam, magoados pelo fato de ficarem entregues aos tios.   Essa situação, examinada mais tarde na maturidade dos implicados, era comovente. Celso
lembrava que nunca antes havia recebido tanta demonstração de amor, mas na época não dava muita importância a isso. A irmã ganhou uma nova mãe na mulher do tio, que morava ao lado – as casas ficavam muito próximas e não havia muro que as separasse. Embora não percebida, ou proclamada,   a ausência de limites de separação era uma alegoria à união, ao amor.

Celso sofreu demais nos primeiros meses em Barrancas. Sua indomável timidez o impedia de procurar os jovens , de sua idade, para se relacionar. Sua forma monossilábica de responder a quem o procurava, afastava qualquer um que pretendesse aproximar-se para travar nova amizade.
Viveu esse tormento até o início das aulas.   Embora o tempo, naquela época, parecesse se arrastar chegou enfim a hora de começar a viver sem solidão.

Vinha de uma cidade maior, já residira na capital do país, estudara em melhor escola e era aluno acima da média. Passou a ser conhecido pelos professores e também pelos colegas de turma

Em pouco tempo não havia quem não o indicasse como referência: um exemplo a seguir ou alguém a ser superado..

Celso não se importava com isso.   Tudo o que queria, na realidade, era ser amado. Pelos parentes, pelos amigos, pelas pessoas comuns que andavam pelas ruas e que nem o conheciam.

Conseguiu em parte. Alguns, porém, o detestavam, mas ele não percebia. E , também, que importância teriam se eram tão poucos.

Nas tardes, após o almoço seguia para o centro da cidade e encontrava um de seus amigos, que tinha uma loja de tecidos ( do pai) e ali ficavam a conversar.   Eram os momentos de maior felicidade da vida de Celso. A loja tinha um enorme balcão para as vendas, embora a Celso parecesse que jamais
aquele tamanho tivesse sido necessário para o atendimento aos clientes. Nunca deveriam ter sido tantos.    Mas tudo bem, antes sobrar do que faltar.

Esses momentos seriam, para sempre, o que Celso poderia definir como saudade. A única que iria sentir. E nela não incluiria ninguém, nem o amigo nem a si mesmo. Era a saudade indescritível de uma sensação que lhe eletrizava a alma, uma gargalhada em momentos anônimos, uma injustificável felicidade .

A magia daqueles verões não deveria ser o prólogo de nenhuma tragédia e Celso partiu para uma nova vida. Agora, na cidade grande era um desconhecido, o que não o atormentava. Também não eram referências a sua inteligência , beleza ou pobreza medianas. Era aquele ponto que se move no meio da multidão indiferente, que freqüentava os cinemas e os bares nos finais de semana.

Combatia o tédio de sua passagem inglória pelo tempo, escrevendo cartas à namorada que deixara em Barrancas, mas sofria o desgosto extremo ao encontrar-se ao anoitecer com a embriaguês de seu pai .

Fez , por ali, pouquíssimos amigos, que como ele queriam ser artistas de cinema, cantores, médicos, milionários , grandes amantes, ou frequentadores da alta sociedade, já que naquela época não era tão importante ser jogador de futebol. Aliás, para este caso as mães visivelmente aflitas diriam: “ não fica bem ...”

O outono e o inverno são as estações mais longas de nossas vidas. E quando soou o aviso de que as perdas se iniciariam, perdeu-se nas lembranças dos dramas e comédias das vidas de cada um daqueles com os quais tivera algum tipo de convivência.

O melhor de sua infância suicidou-se com aquele adorável amigo pouco inteligente e, por isso, inconseqüente, que partiu sem nenhum adeus ou justificativa..

Vitório perdeu um pé do sapato na água que corria rápida, pela canaleta, até a roda do moinho da fábrica de biscoito. Felizmente tinha dois pares iguais , o que o livrou de explicações em casa.

Uma prima de sua mãe mudou-se , com o marido , para outra cidade, sem deixar o endereço para ninguém. Lá permaneceu por alguns anos e voltou com uma filha nos braços, que muitos afirmavam ser adotada.

Coisas graves ou sem importância preenchiam os labirintos de sua cabeça.

Celso ficou cansado. Arrumou a mala com poucas coisas. O maior acervo carregava na memória. Pegou a estrada e dias após estava nas poeiras de Barrancas, cinqüenta anos mais velha.

Foi ao centro e encontrou a loja de tecidos com as portas fechadas. Abriu-as com um rápido empurrão O balcão não lhe pareceu tão grande. Grande mesmo era a solidão aprisionada naquele espaço.

A poeira do tempo diria que ali era a residência do vazio.

Juraria ter ouvido o fantasma do amigo perguntar-lhe “ por que demorou tanto?”
E em resposta Celso afirmou ; -Meu caro, mal te lembro o nome, o que me trouxe aqui foi a inútil procura de reviver uma sensação que há muito me abandonou.”

Lá fora a magia do verão ainda era a mesma.


Rio, 17/09/2010


Biografia:
Nasci em Itaqui, no Rio Grande do Sul e resido no Rio de Janeiro desde o final de 1958. Nunca publiquei nada do que escrevo, por que sempre o fiz para consumo próprio e, principalmente, por falta de talento. Agora, acho que perdi a vergonha. Gostaria imensamente de receber as críticas dos meus eventuais leitores peoo e.mail anibalbonorino@superig.com.br.
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