Olhando assim tão de perto
Você até parece um homem
Dos olhos exalam medo, as maneiras são cordiais
Tomem cuidado os que estão desavisados
Que por seus difusos gestos são enganados
Pois esses olhos não escondem alma alguma
Pobre essa gente
Que por um descuido do destino cruza o seu caminho
Lhes vêem enfraquecido, tombado na calçada
E em um acesso de humanidade lhe oferecem a mão
Um copo d'água (o sol castiga e nessa rua não há sombra)
E quando lhe viram as costas para buscar ajuda
Sentem a aguda navalha penetrar a carne
E o sopro de vida expirar
Seria tamanha maldade a sua uma artimanha do diabo?
Às vezes me custa crer que até aquele
Que por alguns detalhes discutiu com o criador
Seria sádico a ponto criar tão vil ser
Ah, a ironia que foi
Te considerei meu igual, e quando pálido te vi
Jogado na esquina, com o corpo torturado
Procurei água, gritei por alguém
E na minha primeira distração
Eu, que estava preocupado com o seu estado de saúde
Senti entrando a faca pela minhas costas
Ouvi sua respiração, imaginei o sorriso postado no seu rosto
Devagar, a arma saiu da carne
Cai na rua, inundado em meu próprio sangue
Chamaram meu pai, minhas avós, amantes, amigos e parentes distantes para o meu velório
Mas um último fio de vida insistiu em ficar
Milagre! Chamaram de santo o médico!
Fizemos festa, a música tomou a rua, os bêbados quebravam para a esquina
Comemos mais do que aguentávamos, relembramos canções antigas até há pouco esquecidas
Sacrificamos tantos bichos que sobrou pasto por três anos
Mas ironia, ah a ironia, senhora do nosso tempo
Pois eu, o único sobrevivente entre as suas vítimas
Quedei-me com um medo de viver
Penso te ver a cada esquina, imagino você em todos com que convivo
E já jurei, mesmo sem saber
Que somente voltaria a apreciar a música
Quando visse o seu sangue derramado escorrendo pela rua
E visse a vida expirando em seu corpo
Meu deus! Eu me tornei um mostro
Igual a você
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