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Trecho 4 de O Homem Sem Desejos
André Claro

A garrafa estava gelada, mais gelada do que o vinho dentro. Era possível isso? Era natural isso? Ou o vinho esquentava imediatamente ao ser posto em meu copo? Copo que estava à temperatura ambiente. Temperatura que estava bem mais quente do que o líquido. Líquido que estivera repousando na geladeira. Ou o líquido estava mais gelado?
Eu já estava bêbado depois do primeiro e único copo de vi-nho. Não gostava mais de beber. Transar passara a ser mesmo apenas uma necessidade fisiológica que estava no mesmo pata-mar de defecar ou urinar. E de tanto repetir está se tornando ou por estar se tornando tanto se repete, Yves?
Ficava fazendo essas reflexões ébrias, ao passo que Kurt ficava me ouvindo como um analista veterano, deixando o analisando se livrar da própria forca ou se enforcar com a corda do outro. Olhava para a janela de quando em quando. Semana retrasada mesmo, eu ainda refletia: tinha medo de deixar Kurt sozinho ou simplesmente transferia o meu medo do abandono para o meu gato?
A discussão no carro naquele dia me veio subitamente à cabeça. Acabei rindo sozinho. Ri destemidamente nervoso. Entretanto, se eu não queria nada, a não ser ficar ali tomando água, por que negava o medo? Não o negava? Então, por qual motivo a cena do carro veio à superfície? Para tomar o lugar do meu medo de sequer pensar em ser abandonado? Medo que era configurado descaradamente em temor de deixar Kurt só? Eu perdera as lembranças de tanto tudo negar? Eu mentia para mim? Tinha arrumado uma desculpa para não enfrentar as coisas como todo mundo enfrentava? Havia caído em minha própria armadilha? Tanto criticava, de antemão, os outros para que, quando me apontassem o dedo, estivessem previamente condicionados à mesma posição minha?
Mas eu via que, pelo menos, agora minha inércia não vinha de uma negação do querer, vinha de não mais precisar querer. O que, consequentemente, fazia-me supor que não havia em mim medo de espécie alguma, nem mesmo da morte. Havia o medo de a felicidade ser encontrada definitivamente, justamente agora que não a desejava. Isso seria a morte, pois o que eu faria depois disso?
Voltemos à questão da janela. Pular dela funcionara como uma espécie de dogma. Pular da janela fora visto por mim como um meio de visitar a sensação de própria morte. Essa sensação, por ora, não passava de satisfazer algo inelidível, mas que só poderia ser consentida uma vez. Consentida uma única vez, não por eu não sobreviver para poder repeti-la, mas por não querer repeti-la por ela inevitavelmente se revelar insossa.
Resolvi tocar violão. Depois de uma ou outra canção, eu começava a olhar ao redor e ver que nada demais acontecia em minha vida. Mesmo que acontecesse, não faria o menor sentido. Nem para o bem, nem para o mal. E, até bem recentemente, as coisas só haviam feito sentido para o mal. Antigamente, bem mais do que presentemente, de vez em quando, eu pesquisava na internet sobre transtornos do humor, depressão maior, transtornos de personalidade e, pelas esparsas lembranças, já havia me identificado com isso ou aquilo, dependendo do dia. A intensidade ia do irritadiço ao explosivo, do apático, que passava pelo melancólico até ao neurastênico. O problema era que eu agora via esses comportamentos de fora de mim. “Você sabe muito sobre você, Yves. Ainda sabe. Ainda bem?”
Abandonei o violão e decidi ligar para aquela atendente da padaria, para a atendente de uma padaria próxima. Não podia deixá-la passar despercebidamente. Não me lembrava do seu nome, só tinha o número de um celular que eu supunha ser dela. Liguei. Esperava que qualquer outra pessoa atendesse, mas foi ela quem disse alô. Ou achava que fosse ela, uma vez que eu não sabia quem ela era.
— Você é a moça da padaria aqui perto? Na Arcoverde?
Senti-me um idiota, pois quantas padarias existiam naquela rua imensa?
— Quem fala?
— Um cliente, conversamos sobre música, Arcade Fire. Eu também toco vio...
— Ah, o Ipsis, o do gato?
Era eu.
— Yves.
— Isso. E, aí?
— Onde você está?
— Num bar com um rolo meu.
— Ah, tá. Desculpa. Falou, então.
— Falou.
Aquela minha frieza me surpreendia e me trazia paz, mas uma paz que, para se perpetrar, tinha que ser beligerante, de modo que eu precisava andar. Não queria, mas precisava ver se aquela imprecisão quanto a fatos passados era clarificada, saber do que se tratava aquela letargia sobre pessoas e coisas no presente. Queria evitar que elas se tornassem uma espécie de liturgia. Beijei Kurt e fui.
Antes de alcançar a rua, passei por um rapaz de regata, ber-muda e tênis de cano alto. Ele baixou a cabeça, desviou o seu olhar do meu. Então, pude perceber que o vi naquela escada em várias outras oportunidades. Poderia ser o mesmo de outro dia num ônibus, pois, com o perfumado com quem me encontrara dias antes, ali mesmo – ou mesmo com o do bar –, não havia semelhança. Mais uma dúvida pairou: como eu era capaz de distinguir aquele rapaz de outro rapaz, mas não conseguia diferenciar Barbra de um desconhecido? Qual era a diferença entre Sil e um desconhecido? Seria pelo fato de que eu ainda não ha-via dado algum grau de importância aos meus suspeitos? De modo que eles permaneciam desconhecidos, o que poderia significar que dos conhecidos eu queria dissipar qualquer importância para torná-los todos exatamente iguais – nem acima nem abaixo de mim? Você está se perdendo em seu próprio labirinto, Yves. Cuidado para não terem que o encontrar morto.

Entrei num boteco da Rua 21 de abril ou da 25 de março; não discerni, só sabia que era fevereiro, que o boteco era imundo, fétido. Não, não era tão sujo e fedido assim, mas eu o percebia desse modo.
— Me vê uma água com gás, por favor — pedi.
— Pois não, amigo. E o calor?
— Pois é, muito quente.
Além da dor e do prazer desaparecerem da minha vida, confirmei naquele momento que tanto fazia aquele calor de 38 graus ou uma geada. Eu, que detestava calor, agora parecia que experimentaria uma única estação. Ele me trouxe a garrafinha d’água. Ele não era o Sil para saber que eu queria, preferia a de um litro. Deixei para lá. Não estava com sede, estava arrumando pretexto para não ficar em casa. Tentava, ali, desvendar o que acontecia comigo. Nesse instante, uma moça entrou no bar. Percebi que estava ligeiramente bêbada e sem tomar banho há algum tempo. Calculei que estava no sexto mês de gravidez.
— Lindiomara, Lindiomara — censurou o rapaz ao balcão. — Tomando umas cangibrinas, mesmo grávida, Lindiomara. Cria vergonha, mulher.
— Ah, se liga. Tô grávida, mas num tô doente — olhou para mim. — Né, moço?
Não respondi. Ela tirou um cigarro do sutiã. Evitou nos olhar e meteu o cigarro na boca. Com destreza, pegou o isqueiro preso à cordinha no balcão e o acendeu.
— Quer comer alguma coisa? — perguntei.
— Quero, mas depois eu vô ter que te dá?
— Dar?
— É, eu como o lanche que você me dá. Depois, você me come — riu-se.
— Não. Prefiro que, em troca do lanche, você não fume.
Ela me olhou hesitante por um momento. Deu uma tragada rápida, apagou o cigarro e o jogou no lixo.
— Quero um lanche de pernil, caprichado, Dornelles — ela falou ao rapaz e virou-se para mim novamente —, posso pegar um sorvete de sobremesa? — apontou para o freezer horizontal de uma marca desconhecida, mas muito vendida atualmente.
— Pode pegar de sobremesa, de morango, de creme — brinquei. — Se, ao menos, me prometer que não vai beber mais por hoje.
— Tô de resseca, moço. Prometo, viu?
Dei uma golada e fiz que sim com a cabeça. A única coisa que cortou o silêncio por um tempo foi o pernil fritando na chapa, o cheiro de gordura temperada no ar. Precisava saber o que acontecia comigo, se bem que eu recaía no dilema: não sabia bem a diferença caso eu tivesse realmente encontrado com a Barbra, tivesse tido com o Sil em vez de com aquela moça. Não havia sentimento produzido por mim, mesmo numa ocasião como a que verdadeiramente e – espontaneamente? – desenrolava-se ali. E, da mesma forma, em outras situações, tirando a possibilidade de a pessoa se assustar e não ser possível levar uma conversa adiante, não havia uma perda para mim, não havia uma cumplicidade com eles. Conversa, para mim, era aquele diálogo de solilóquio, o que me levava a crer que seria o mesmo tipo de conversa que teria com algum velho conhecido, já que eu estava apático, senão sofrendo de anedonia, não mais conseguia manter vínculos afetivos.
Voltei a mim, muito depois, com a moça me falando:
— Que delícia — ela mordia o lanche. — Fazia tempo que não comia assim.
— Fico feliz — eu disse.
Mas não sabia por que eu lhe dera o lanche. Faria aquilo por qualquer pessoa, ainda que não fosse isso ou aquilo meu, agia do mesmo modo que agiria se se tratasse de um amigo ou parente. Ao contrário de antes, quando precisava haver uma troca, um ganho para mim também.
— Não esquece o sorvete.
— Não, o Dornelles não vai esquecer, né, Dornelles?
Ele anuiu com a cabeça sem se desviar da TV, ligada depois de muito insistir com o velho controle remoto, que estava enrolado com fita isolante. Passava um programa de auditório, pro-grama para a massa alienada, o que reativou algo dentro de mim. Eu, que tanto repudiara a TV, estava num boteco tendo como único entretenimento um programa para a massa. Condenara quem os assistisse, julgara-os inferiores intelectualmente, visto que não havia esforço para se refletir, tornar alguma coisa melhor, desfazer-se de algo ruim, fosse na vida pessoal, profissional ou mesmo social. Não havia como criticar algo por meio daquele programa, apenas se prender a ele e deixar o tempo ruir, fingir fazer parte daquilo e aquilo fazer parte de si mesmo. Por outro lado, as coisas só se movimentavam inanimadas naquele cenário televisivo bólido e óbvio. Isso quando não se acabava por consumir produtos atrelados a ele, ter como meta o padrão de beleza das pessoas que se anunciavam – ou se denunciavam – por meio dele.
E quem disse que ele era produzido com a finalidade de nos fazer pensar? Eu que me desse aos cafés filosóficos da vida, grupos de estudo fora da área acadêmica, pois nem as universidades escapavam da produção de imbecis; não apenas pela instituição, mas também – e muito mais – pelos próprios universitários. Naquele momento, confirmei que ainda havia um resquício de inconformismo dentro de mim, mas, independentemente disso, era duro ver as coisas com lucidez, que nem tudo deveria ser como se duvidava.
A despeito disso, absorvi-me do apresentador sem medo de ser depreciado, castigado por mim mesmo, ou ainda flagrado por alguém astuto que o execrava com motivos cabíveis. E isso me deu leveza, desprendimento. Não deveria concordar com tudo, mas discordar o tempo todo do que havia para se viver era cansativo, inútil e próprio de uma vaidade utópica.
— Filho é um saco né, moço? — indagou a moça.
— Depende.
— Quem vai querer fazer programa comigo com esse barrigão? E, depois, com quem vou deixar a criança? Vou é perder meu ponto.
— É, vendo por esse lado, é ruim. Já fez ultrassom pra saber como está ele? Ou ela.
— Fiz nada, nasce na hora que quiser, nasce homem ou mu-lher. Do jeito que vim, veio.
— Claro.
Ela ficou me olhando.
— Você é esquisito.
— Cada um faz o que pode. Você faz programa, ele tem um bar. E eu? Eu sou esquisito.
Ela riu um pouco entre mordidas. Terminei a água, paguei e saí.
Detive-me por um instante à porta antes de ir caminhando com meus trinta anos nas costas, olhando meu reflexo esguio nos vidros das lojas, a barba rala sempre por fazer, os olhos verdes num semblante perversamente tolo, como o de um político sorrindo para angariar votos. Contemplava o vazio de todos na-quela São Paulo que fedia a esgoto, observava a inerente poluição pesada no ar. Atravessei a Ipiranga e entrei na Praça da República.
De repente, uma coisa distante me chamou atenção: um rapaz vindo em minha direção. O caminhar parecia com o de meu pai, o rosto baixo, centrado em si mesmo. Mais de perto, a impressão que tive era a de que usava calça e tênis iguais aos meus. Embora parecesse mais velho, tinha muita semelhança comigo – ao mesmo tempo que tinha muita semelhança com meu pai. Parou diante de mim.
— Como está sua namorada? — perguntou num riso fino.
— Não tenho namorada, você é quem?
— Seu filho, como está?
— Bom, acredito que, oficialmente, não tenha filhos.
Ele ficou me olhando e eu o adverti:
— Está me confundindo, senhor.
— Falo filho, mas entenda seu gato.
Agora eu fiquei olhando para ele.
— Mora na Vila Madalena, não é?
Arrependi-me de ter afirmado:
— É.
O sorriso dele desapareceu, seu tom de voz ficou grave:
— Por que está fazendo isso, João Pedro?
Demorei a responder:
— João Pedro? Está me confundindo.
— Estou preocupado com você.
— Licença — determinei.
— Por que está fazendo isso?
E fui andando. Alguns passos mais e, sem parar nem me virar, neguei veementemente:
— Não, não sou João Pedro.
Ele retrucou, procurando ser polido:
— Não é mesmo, não é esse o Yves que criei.
Criou? Por um momento, tive a impressão de falar comigo e de mim.
— Não! — gritei girando o meu corpo em seu próprio eixo. — Não sabe quem eu sou, está me confundindo.
Fiquei olhando de vez em quando para trás, até ele se tornar um pequeno ponto na praça.
Era só o que me faltava. Devia ser alguém da turma de amigos de Barbra com quem me encontrara em certa ocasião. Aquele homem me confundira com um colega dela ou outro, a história de algum deles com a minha. Mas ele disse: Yves. Ou era um dos que me vigiava? Mas de onde ele escarafunchara o João Pedro? No fundo, está gostando disso, não é, Yves?
Tinha que concordar que, ultimamente, a sensação de estar sendo vigiado me sobrevinha frequentemente, e não era apenas por causa das câmeras de segurança espalhadas pelas ruas e den-tro dos estabelecimentos. Havia o rapaz – ou rapazes, pois eu acreditava não se tratar sempre da mesma pessoa – da escada. Por outro lado, provavelmente fossem sempre os mesmos que me observavam numa ocasião ou outra.
Isso era menos que preocupante, pois, apesar de tudo, isso me fazia sentir como se eu estivesse sendo requisitado, quisessem me consumir como um produto escasso, raro e de grande valor. Teria eu matado alguém e roubado aquele dinheiro que estava em minha conta? Aquele era um investigador? Alguém querendo se certificar de quem eu era e com isso me matar? Eu pegara dinheiro emprestado com algum agiota e não pagara?


Biografia:
Por um período, entre 1999 e 2001, fui repórter, não antes de ser escritor. Foi, pois, publicando um velho conto — no primeiro jornal no qual trabalharia — que me tornei repórter. Julguei que pagaria pela publicação, mas, além de não a pagar, ela simplesmente me valeu um emprego! A despeito disso, produzi pouco ao longo de vinte e tantos anos como escritor e dramaturgo. Em 1999, publiquei uma novela, que tem como cenário o Capão Redondo, Amargo Capão (Um Dia no Tráfico). Só então em 2006, voltaria a publicar, estrearia no conto com Absurdos, Delírios e Ilusões (Litteris Editora). Da mesma forma, escrevi alguns roteiros de curtas e alguns textos para o teatro, ocasião em que colaborei escrevendo e atuando numa paródia Shakespeariana: Queijo e Goiabada (Romeu e Julieta). Posteriormente, enclausurei-me, fiquei restrito a fazer bicos. Ler e escrever poesias, contos – esboçar romances. O Homem Sem Desejos, foi o único desses esboços a ser lançado, em 2016, então pelo Clube de Autores. Agora, igualmente, algumas daquelas poesias vão sendo divulgadas. Paralelamente, vou concluindo a faculdade de psicologia.
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