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Neuronet
Caliel Alves dos Santos

Resumo:
Como seria acessar a internet com a própria mente?

EU NÃO PODERIA EXPLICAR em que tempo estou, seja ele passado, presente ou futuro. Já perdi essa noção há muito tempo. Nem sei especificamente onde estou agora. Tudo isso por causa de um emprego! Nenhum emprego vale o que eu fiz, quando estamos desesperados, não pensamos bem na atitude que tomamos...
    A Prisma Corporation mostrou ser possível a substituição de células nervosas por nanomáquinas. Isso permitiu o nosso cérebro processar, armazenar e transmitir informações. Assim as pessoas poderiam “entrar” propriamente na internet através de uma imersão virtual, isso foi chamado de neurodigitalização. Os hardwares perderam sua utilidade e a empresa se tornou um conglomerado empresarial.
    As ações da Prisma Corporation cresceram hegemonicamente, se tornando a maior provedora de internet do mundo, todos os governos adquiriram seus serviços. A neuronet demorou a chegar ao Brasil, mas depois de implantada, o país nunca mais foi o mesmo. Redes sociais, política, cultura e por que não empregos? Várias empresas se renderam a tecnologia para exercer as suas funções de mercado.
    As únicas exigências para se tornar um usuário da neuronet era que a pessoa tivesse “saúde física e mental” e fizesse uma pequena cirurgia para instalar as nanomáquinas conhecidas como neurologs. Bilhões de pessoas no mundo começaram usá-la e outros tantos discutiram os malefícios da mesma.
    Não tinha tempo pra essa análise, meu emprego estava por um fio. Trabalhava na maior empresa de comunicação da América Latina, com sede em São Paulo. 11 anos da minha vida com muita dedicação para consegui-lo, nem cogitava desistir. A cirurgia foi paga pela minha empresa, que não queria me perder de jeito maneira. Modéstia parte, eu era um dos melhores!
    Tinha medo do que poderia acontecer. Mas meu neurocirurgião era um especialista, de acordo com ele, a cirurgia tinha baixo risco, nem cicatriz deixava. Eu acreditava ter todas as condições necessárias para fazê-la, de modo gratuito e com todas as garantias, acabei fazendo a mesma, diferente do resto da população que ficou mais uma vez sem deter os avanços tecnológicos.
    O Governo usou a neurodigitalização como slogan de campanha para manter o poder. Num falso projeto de lei em que afirmava: O SUS cobriria a cirurgia das pessoas de baixa renda que necessitassem do serviço para trabalhar.
    O investimento foi alto, metade do dinheiro sumiu e 1/10 dos primeiros pedidos foram realizados, cerca de 2,3% da população brasileira que precisava da neuronet. Não fiquei surpreso com as denúncias de desvio de dinheiro que aconteceram. Vazou até pra mídia internacional!
    Na primeira quinzena após a cirurgia, os futuros usuários ficavam de repouso em casa, num tipo de quarentena. Caso um indivíduo apresenta-se algum quadro fora dos padrões estabelecidos que viesse lhe prejudicar, os seus neurologs eram desativados.
    No primeiro dia de uso, por força do hábito, eu fui ao trabalho, quando lá cheguei, estava tudo fechado. Um grupo de homens efetuava uma mudança num caminhão.
    — Bom dia — disse aos carregadores.
    — Bom dia.
    — É feriado? — perguntei aos homens.
    — Não, a empresa desativou a sua sede por causa da neuronet.
    — Ah é mesmo!
    Agradeci e fui correndo pra casa. Não precisava mais ir pra empresa, tudo o que necessitava era de um lugar onde pudesse neuroacessar tranquilamente. Voltei para casa, me deitei no sofá mesmo, fechei os olhos, tudo de acordo com o que era exigido. E neuroacessei. No começo tive que manter certa concentração. Era inusitado sentir o corpo leve como uma pluma.
    De olhos fechados, minha mente escureceu, eu via apenas milhares de números e caracteres a minha volta, eu me sentia numa ficção científica. Quando tudo terminou deparei-me numa sala. Minha sala de trabalho, na verdade. Todos os meus colegas de trabalho estavam ali, podia ouvi-los e vê-los, mas eles não me viam nem me ouviam.
    Um gráfico apareceu na minha frente mostrando todas as minhas funções corporais como as cardiorrespiratórias, constituição física, documentos etc. Uma nova imagem apareceu, dessa vez com os termos de uso, e outras informações como direitos e deveres virtuais. Todos eles tinham o logotipo da Prisma Corporation, eles mantinham a segurança e manutenção de dados na rede.
    Um círculo apareceu com a palavra: Acessar. Cliquei nela, não com as mãos, mas com um simples pensamento. De repente apareci no meio da reunião, foi incrível! Estava tão nervoso que pedi desculpas incessantemente. Todos riram, a minha sensação deveria ser algo comum. A minha chefa, que não era dada a muitas graçinhas disse:
    — Agora que chegou o homem desaparecido, podemos começar a reunião com nossos colaboradores italianos.
    E realmente eles estavam ali, o Sr. Tommio e seus agentes, ele era o gerente da Sicilia Mídia, uma agência de modelos e seria o nosso novo sócio.
    — Podemos começar? — falou o senhor Tommio em português alto e claro, a neuronet vinha com tradutor universal!
    Depois da reunião meus colegas me explicaram e dividiram suas experiências comigo. Um deles afirmou que também pensou que era feriado e não foi trabalhar. Achei a história meio forçada, mas não questionei o ocorrido.
    Agora as reuniões, não precisavam mais acontecer por nenhum tipo de videoconferência, como no Skype, era só neuroacessar e daqui a poucos segundos todos podiam estar juntos. Era só imaginar e ai a gente chegava a qualquer lugar.
    O mundo virtual a minha volta não tinha nada de diferente do mundo real. Todos os sentidos funcionavam em todo o seu potencial, e se podemos usar todos os nossos sentidos como um ser humano normal, não torna a experiência real? Visão, audição, tato, paladar e olfato; tudo estava lá.
    A civilização como conhecíamos, mas com grandes avanços! Sem trânsito, poluição e violência. A neuronet já era chamada de “ultradimensional” devido à enorme interação com o sistema, usando pra isso os neurologs.
    Assim minha vida seguiu diariamente sem transtorno. Familiares e amigos começaram a dizer que eu estava sumido, até chamaram-me de misantropo. Então resolvi sair. Mas já não era mais a mesma coisa. Tudo parecia falso, o mundo em volta tornava-se agora virtual para mim.
    A comida, as pessoas no jantar, as risadas e até a lua prateada no céu escuro, parecia uma simples cópia mal elaborada do meu mundo utópico. Comecei a me sentir mal. Disse ao outros que iria embora mais cedo. Logo começaram as acusações de que me encontrava viciado na neuronet. Como eles não tinham neuroacesso, disse-lhes que apenas sentiam inveja de mim, e uma amizade de mais de 15 anos, lá da faculdade acabou nesse dia.
    Talvez estivessem certos, talvez não, só queria mesmo era chegar em minha casa e neuroacessar novamente. Aquilo pra mim era a coisa mais legal do mundo, às vezes ficava neuroacessando por mais de oito horas seguidas, mais que o tempo recomendável.   
    Ouvi a história de um norte-americano que neuroacessou sete sem parar e morreu por falência múltipla dos órgãos. Foi o primeiro caso de morte pelo uso em mais de um ano. Especialistas afirmavam que haveria mais. A posição era muito conservadora e pessimista. Já usava a um bom tempo, abusivamente de certo modo, mas me sentia bem.
    Com todos os recursos e vantagens para trabalhar e ao mesmo tempo se divertir, sem redes sociais monopolizando nossas ações, era difícil se manter afastado da neuronet.
    Podiam-se pagar contas também no mundo virtual, sem precisar de cheques, cartão ou dinheiro em espécie. O governo era proibido de criar leis que regulamentassem o uso, mais a Prisma Corporation controlava as ações dos usuários para evitar os cybercrimes. Eram todos os motivos mais que justos e suficientes para não querer sair do mundo virtual. Neuroacessar era mais que necessidade pra mim, era como respirar, era viver de verdade.
    Embora seja estranho pensar que viver uma realidade num mundo virtual seja loucura, o conceito de realidade também é acreditar que é real. Mas tudo isso só fazia sentido na minha cabeça. Certo dia, neuroacessei toda a noite, entrei pela madrugada do sábado e continuei pelo domingo.
    Pela manhã, acordei cansado, tinha me encontrado com uma linda mulher pela. Já eram dez horas. A luz do sol entrou com um brilho fragmentado pelas persianas da janela do meu apartamento. Estava com muita fome. Neuroacessar tanto tempo causa muito cansaço. Coloquei-me de pé. Vesti minha camisa e fui ao banheiro.
    Entrei retirando a toalha do espelho da pia, molhei meu rosto e o enxuguei com a água escorrendo pelo meu cabelo. Assustei-me.
    Parecia que eu estava sob o efeito de algum alucinógeno. Como num quadro de Magritte, o meu reflexo no espelho estava de costas para mim. Aquilo era surreal demais. Movimentei-me, e minha imagem realizava os mesmos movimentos, só que de costas. Molhei o rosto mais uma vez e direcionei meu olhar fixamente no espelho. Tudo voltou ao normal.
    Relatando no trabalho e na rede, meus amigos e colegas de trabalho falaram que isso era comum acontecer, mas logo passava. Fiquei mais calmo por um momento. Mas só por algum momento.
    Quando parava de neuroacessar, a cada dia, mais uma dessas terríveis alucinações acontecia. Certa vez vi o mundo todo em códigos binários. Em outra situação me vi com dez dedos em cada mão. A mais bizarra foi quando sai da neuronet e comecei a ver o mundo invertido. Aquilo já havia passado dos limites, procurei minha chefa em meu trabalho, disse-lhe que não me sentia mais bem com a neuronet.
    A empresa se manifestou, eles disseram que eu podia procurar um médico psicodigital para me tratar. A proposta me surpreendeu. Será que estava realmente enlouquecendo? Precisava saber. Toda nova tecnologia acaba com algumas profissões e ao mesmo tempo cria novas, como melhor exemplo: informática. No Brasil ainda havia poucos formados na psiquiatria digital, que geralmente iam fazer o curso no exterior.
    Quem já tinha o curso de Psicologia e Psiquiatra, e quisesse fazer uma especialização, o governo pagava o curso por causa do déficit de profissionais.
    Meu médico seria o Dr. Manuel Heinz. Para minha surpresa ele era brasileiro. Um homem gordo, de cabelos negros, barba por fazer e um óculos ala Freud. A consulta foi feita no mundo real. Era impossível realizá-la na rede. No consultório, ele me olhou por cima dos óculos. Viu o relatório em cima da mesa, que funcionava como uma grande tela de toque. Então só ai me perguntou:
    — O que o senhor sente quando passa por essas situações descritas aqui?
    — É horrível doutor — falei em tom aflitivo, ele manteve-se analítico. — É como se eu nunca saísse de lá. Tudo se transforma na neuronet. As alucinações, diga-me doutor, estou ficando louco?
    — Acalme-se senhor, deixe-me explicar o que acontece — fez uma pausa escolhendo as palavras, esperei o pior nesse momento —, o que sente não é inédito. Isso é uma nova síndrome que damos o nome de interpretação virtual relativa ou IVR, por enquanto, devido à falta de estudos aprofundados sobre esse novo tipo de demência, o diagnóstico pode ser demorado entende?
    Tinha ouvido a palavra “demência”. Fiquei apavorado, já tinha ouvido falar da chamada loucura digital, onde os usuários da neuronet enlouqueciam. Não deixei que completasse, enche-o de perguntas.
    — Disse demência... Estou mesmo louco, e minha vida agora? O que faço? O que vai ser de mim?
    — Deixe-me terminar, sim. Não posso dizer isso agora, precisaremos de exames mais complexos. Mas todos os sintomas da síndrome IVR batem com o que está sentindo. O que acontece é que seu cérebro não está mais reconhecendo o que é real e verdadeiro. Tornado-se um tipo de alienado, como última alternativa, ele usa as alucinações para causar um tipo de choque perceptivo...
    — O que quer dizer com isso?
    — Como ia dizendo — falou calmamente —, devido ao estímulo no córtex, o cérebro fica dependente desse mesmo estímulo, e começa a interpretar a realidade como virtual e vice-versa.
     — Um cérebro preguiçoso, que só trabalha com aos trancos, é isso que quer dizer?
    Ele concordou com a cabeça. Tudo aquilo tinha que acabar o mais rápido possível. Era sacrifício demais para um trabalho. Perder a razão era algo que não podia aceitar.
    — Vou parar de neuroacessar! — exclamei bem alto.
    — Não faça isso, pode piorar seu quadro.
    Não o ouvi, sai porta afora bem rápido. Pensei logicamente: se o que me prejudicava era a neuronet, então deveria parar de neuroacessá-la. Era um raciocínio apressado e ilógico. Mas no momento fez todo o sentido pra mim. Mesmo os viciados em drogas, o tratamento não permite o abandono brusco do uso, este acontece aos poucos.
    Talvez os de esquerda estivessem certos, não estávamos preparados para tanta ciência e inovação. Minha utopia começava a mostrar suas falhas. Havia um fundo de verdade em tudo aquilo que eles falavam. Todo tipo de teoria da conspiração circulava na neuro net. Algumas até no próprio no mundo virtual, quem falasse do assunto era banido pela Prisma Corporation. Eles tinham o poder de regular o mundo virtual com permissão da ONU. Todos que desrespeitassem as leis da empresa eram banidos.
    As teorias da conspiração mais famosas eram as de que a neuronet, na verdade foi feita para controlar os corpos dos seres humanos, enquanto suas mentes vagam no mundo virtual. Outros teóricos afirmavam que nunca deixávamos de neuroacessar e que a falsa sensação de realidade era um engodo, já que devido ao alto grau sensitivo, jamais poderiam ser percebidos as diferenças do real e virtual. Julgava todos loucos, mas o que era eu então?
    Uma semana depois de não mais neuroacessar, sentia-me um trapo revestido em pele humana, numa espécie de abstinência. Comecei assistir os telejornais buscando respostas. A cada depoimento tive mais convicção de que o que eu fiz foi correto, estava enganado.
    Não consegui mais aguentar, foi no nono dia. Neuroacessei, puxa! Aquilo foi demais. Puro êxtase. Parecia que minha humanidade tinha voltado, a alma e a mente pareciam libertas. Fiz tudo como de costume. As pessoas estavam felizes de eu ter voltado. Até o momento em que sair do mundo virtual, tudo parecia normal.
    Quando me desconectei, não enxergava mais como um homem, via tudo como um computador obsoleto. As alucinações voltaram e nunca mais deixei de enxergar o mundo como uma imagem gráfica distorcida, cheia de quadrados e borrões. Desde esse dia nunca mais neuroacessei na minha vida doutor, é por isso que estou aqui nesse hospício. Ao menos acredito que estamos aqui nesse hospício, me garanta que é real?


Biografia:
Caliel Alves nasceu em Araçás/BA. Desde jovem se aventurou no mundo dos quadrinhos e mangás. Adora animes e coleciona quadrinhos nacionais de autores independentes. Começou escrevendo poemas e crônicas no Ensino Médio. Já escreveu contos, noveletas, resenhas e artigos publicados em plataformas na internet e em algumas revistas literárias. Desde 2019 vem participando de várias antologias como Leyendas mexicanas (Dark Books) e Insólito (Cavalo Café). Publicou o livro de poemas Poesias crocantes em e-book na Amazon.
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