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QUANDO O CULTO VALE MAIS QUE A VIDA
pela honra dos deuses...
ANTONIO FERREIRA BISPO

Resumo:
somos todos de uma só tribo, mas esquecemos disso.


*Por Antônio Ferreira Bispo
   Imagine a seguinte situação:
   Duas crianças, filhas de um mesmo pai, são separadas pelo nascimento.
   Ambas crescem em regiões diferentes. Ambas se tornam grandes guerreiros e após alguns anos respeitados chefes de tribo diferentes.
   Durante suas vidas, eles nunca conheceram seus pais, sabiam apenas que ele fora um grande guerreiro e respeitado chefe entre a tribo qual vivera, cujos integrantes do seu tempo já não mais existia há muito tempo.
   Fora ocultado a todos de ambas as tribos que eles eram filhos de um mesmo pai. Uma tribo desenvolvera bem a agricultura e pecuária, enquanto outra desenvolvera técnicas de caça e pesca. Com o tempo uma tribo começou atacar e saquear a outra para obter produtos que necessitavam. Eles poderiam comercializar, negociar ou trocar mercadorias ou experiência de aprendizado. Mas a diplomacia era sinal de fraqueza. Em nome de seu velho pai ancião e guerreiro que obtinha tudo pelo tacape eles agiam assim. Em nome da crença de que seu pai protetor os protegiam e os apoiavam em cada situação, após cada conquista, ambas as tribos iam atribuindo mais e mais característica fabulosas ao seu velho pai, ancião e protetor. Dizia que o espirito dele os guiava, no combate, na colheita, na estratégia de guerra, no ventre das mulheres com filhos saudáveis, e na formosura dos varões combatentes.
   O clima, o solo, e a exposição ao sol, fizeram com que as ambas as tribos desenvolvessem características,hábitos, cor de pele e tom de voz diferentes a cada nova geração de nascidos. Uma tribo morava em caverna, perdeu melanina, desenvolveu pêlos no corpo, e adquiriu um tom de voz mais baixo pois as paredes da caverna amplificavam sua voz ao falar. A outra morava em campo aberto, em cabanas, se expunha muito ao sol, ficou com a pele mais escura e seu tom de voz era mais alto ao falar, pois o vento distorcia o rumo do som ao falar em locais abertos.
   Como o tempo, as mães nessas tribos passavam dias contando a suas crianças história do grande protetor e caçador que fora seu pai primordial. A criatividade na hora de contar, e o sonho de grandeza e honra, fazia com que esse grande ancião adquirisse novas habilidades e poderes a cada vez que se falava dele. De um simples caçador e guerreiro que inicialmente fora, agora em uma tribo ele controlava os ventos e fertilizava as flores abençoando a plantação, na outro ele trazia a caça ao caçador como que de modo hipnótico matando a fome de ambos. Quando uma tribo guerreava contra a outra, guerreiros de ambas as tribos voltavam aos seus lares e contavam aos filhos e esposas como o seu grande protetor imaginário os havia guiado...
   Por quase 8 décadas isso aconteceu. O costume de guerrear entre si, fez com que os jovens dessa tribo acasalassem a partir dos 10 anos e procriassem a partir dos 12 anos de idade, já que poucas pessoas conseguiam atingir os 30 anos de idade devido a tantos combates. Não havia sequer um morador com idade superior a 30 anos em ambas as tribos. O desejo de proteger a honra do seu grande genitor, misturado a necessidade de obter utensílios uteis a sobrevivência os levara a esse estilo de vida. Caçando e sendo caçado. Ofendendo e sendo ofendido. Pela honra do seu velho ancestral e pela gloria que esse nome lhes proporcionava.
   O fato de morrerem cedo, fazia com que aumentasse a necessidade de distribuir a memória aos mais novos, sempre acrescentada e aumentada cada vez que contada. Havia entre eles o desejo de procriar e crescer, para que em número sobrepujassem seus opositores.
   Um dia, uma tribo anunciou aniquilação total a outra tribo. Um duelo de vida e morte. Extermínio total de uma das partes. Pela honra do seu criador e pela posse total de territórios. Era uma guerra santa, onde seria definido por meio da violência, qual era o pai criador mais forte entre as tribos rivais.
   Era o dia da batalha final. O dia em que seu grande criador iria guiar a mão de cada guerreiro para aniquilar aquela outra tribo de pecadores, hereges e amaldiçoados, filho de um deus menor.
Ambas as tribos conheciam desde muito cedo a história do velho das montanhas. Um homem que se isolara de tudo e de todos, após sua amada esposa morrer de parto. Ele nunca mais foi visto oficialmente. Todos os que o conheceram já haviam morrido. Alguns caçadores ou coletores diziam ter visto ele colhendo frutos ou ervas medicinais várias vezes em épocas diferentes. Poucos acreditavam nessa história. Achavam que este era apenas uma lenda. Se ele tivesse vivo teria quase 120 anos.
No dia do juízo final, marcado por ambas as tribos, os guerreiros se posicionavam de ambos os lados. Mulheres e crianças seriam aniquilados após um dos lados serem derrotados. Nenhum “pagão” ou “infiel” deveria existir a partir dali. Todos deveriam perecer. Apagar a memória por completo do que fora derrotado para enaltecer a memória do vencedor
   Quando foi dado o sinal, todos empunhando suas ferramentas rudimentares de combate, todos olhando para um ponto móvel nas montanhas e vem surgindo, descendo calmamente, a velha figura lendária e fantasmagórica mas real do velho da montanha. O pai de todos estava ali. Eles não sabiam que eram todos irmãos até aquele instante.
Guerreiros de ambas as partes ficaram paralisados, esperando ele descer e se interpor no meio dos dois. Eles nunca tinha visto o sobrenatural se materializar. O velho desceu, mandou que eles parassem de lutar entre si, e por mais de 30 minutos, discursou e mostrou, que ele era o pai de todos, e que ele, qual todos endeusavam, era apenas um mortal comum, mas a imaginação, a estupidez, a ganancia e a irracionalidade de ambas as tribos o tinha tornando numa criatura fabulosa. Ele sempre estivera ali na montanha, observando todos os seus filhos, desde o princípio. Deprimido demais para tentar interferir na vida deles. Desanimado demais para dar explicações. Afinal, também crescera vendo combates e combates entre outras tribos. Morrer era muito comun. Preferira se isolar de tudo e de todos depois que sua esposa, sua única razão de existir havia morrido. Ele nunca passara de um mortal. Explicou que tudo o que eles precisavam para viver estava ali: a agua, o ar, o solo, a natureza...Que ambas as tribos desenvolveram habilidades diferentes e poderiam se completar. A melhor maneira de progredirem seria por meio de troca de experiência e mercadoria e não pelo roubo, assalto, mortes e extermínio. Que eles estavam fazendo tudo errado. Que o orgulho e a vontade de querer superar o outro os cegaram. Naquele dia reinou a paz, e a ideia do ser superior que destrói, extermina e aniquila a todos que não são de sua tribo, foi substituída pela ideia de paz harmonia e cooperação entre os todos. Eles aprenderam que o culto a entidade imaginaria criada por eles, não passavam de uma forma de ocultar seus medos e conflitos sem respostas, desse modo criavam um mundo paralelo de fantasias que parecia ser verdade cada vez que era recontado heroicamente.
Entenderam que não há culto quando não houver o que cultuar e também não há culto se todos estiverem mortos para cultuar. Que a vida vale mais que um culto. Que um culto geralmente é uma forma disfarçada de barganha, onde se oferece louvores em troca de favores. Que geralmente esses favores são o domínio ou aniquilação do outro. Que é apenas uma forma disfarçada de escondermos nossa frustação. Que poderia ser um momento de celebração a vida juntos com os vivos, mas se torna um ato de petição e louvor a muitos que já foram...
   Assim nasceram vários ritos, que viraram cultos, que viraram mitos, que viraram religiões...Cada vez que a história era recontada, adquiria novas formas de geração a geração, de região a região. Quando não, incorporavam a crenças já existentes de outras culturas.
   Se olharmos bem, segundo os livros ditos sagrados mais antigos, somos todos oriundos de uma mesma tribo, que adquirimos, hábitos e formas físicas de acordo com o clima, o solo e a exposição ao sol. Que ao nos dividirmos achamos superiores aos demais. Escondemos ou ocultamos nossa própria história, para nos sentirmos como seres mágicos, surgidos de algum ovo cósmico, numa sopa galáctica qualquer.
   Vejamos como exemplo as crenças ocidentais de maior influência dos últimos dois mil anos. Se você pega hoje um puritano, ou evangélico pentecostal extremista que aos seus próprios olhos são as criaturas mais certas, na religião mais certa, servindo ao deus mais certo nesse vasto universo, então se destilássemos ficaria assim: evangélicos→protestante→católicos→mitraísmo→judaismo→zoroastrismo→cultos acadianos→ cultos egípcios→ cultos da suméria...até momentos não registrados ou ocultos de nossa história. Sem falar sobre a influência de centenas de movimentos filosóficos, artísticos e paramilitares de todas as épocas. A religião os influenciava, do mesmo modo que eles influenciavam a religião. No fundo, partimos de um mesmo ponto. O medo e a ganancia tratou de nos moldar. Guerreamos á toa, nos destruímos a toa, enquanto possivelmente algum “velho das montanhas” nos observa sem nada fazer. Poderíamos trocarmos experiências, ao invés de trocarmos farpas e tiros. Há quem diga que o ecumenismo é a solução, outros que o mesmo é a destruição da fé. Eu simplesmente acho que perdemos tempo demais discutindo qual é o deus que mata mais no hora da raiva ou deus que mais abençoa quando lutamos suas guerras. Seria tão bom se os deuses aprendessem a resolver seus problemas sem nossa interferência. Pouparia tantas vidas...
    Quando somos inseridos em um grupo religioso, seja ele qual for, a primeira coisa que tentam nos fazer acreditar, ainda que de modo implícito, é que agora estamos do lado certo, do time dos vencedores, dos que seguem a linha do pai primordial, etc. Todos os outros são plágios e o nosso é o correto. Pior que quase toda linha pensa assim. Todo dia uma nova igreja abre e tende a olhar com desdém aquela anterior, criando um marco zero na cabeça dos fiéis como o ponto inicial da graça divina para a humanidade, por meio daquele “caminho que conduz aos céus” que acabara de ser criado.
Quanto tempo ainda precisamos para evoluir? Quantas fogueiras ainda serão acesas para silenciar os que ousam pensar fora do grupo? Quantas guerras santas ainda serão travadas em nome do imaginário? A resposta é singular. O resultado é plural. A soma das ações coordenas trará uma equação equilibrada e harmoniosa. O resultado mais provável seria: um em todos e todos em um.
Escrito em 3/11/2016


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