Optaram por mim, quando nasci.
Deram-me o escuro como navegação de luz, acendido por clarões fugazes, uma espécie de breu luminoso,
assim vim ao mundo, de dentro daquela que foi minha nau atômica, minha nave molecular.
Os braços foram meu primeiro e repentino contato, o afago de carne na carne, o arrepio sem nome, o riso
dos pelos e suas multiplicação por todo o corpo, um mapa só meu, para o viver.
Andei pelo mundo, que achava que era só onde meus pés punham suas marcas, ampliado pelos passeios
e pelos discursos de minha mãe de meu pai, ambos tementes a uma espécie de deus que tinha construído
todas as peças desse brinquedo gigante, casa de inventores, morada de loucos e humanos.
A compreensão das palavras veio aos poucos, muito pouco no início, a fenda por onde o som entra e se instala,
a mutação das letras, sua junções, o presépio de verbos e adjetivos, os números e suas consequências matemáticas.
Por onde andamos é o que sabemos, me disse alguém que eu não conhecia, que rondava meu círculo e suas
adjacências, uma voz que vinha de dentro de uma caverna, uma pessoa, me disseram, que voava sem tirar
os pés do chão, uma ave soturna e de hábitos estranhos, como ler em cima de árvores para as palavras
chegarem o mais perto possível do céu.
Li pelos dedos a natureza das coisas, menos o cheiro que sempre veio pelo ar, trazido pelo vento que voava
ao meu redor e entrava em mim pela boca e narinas.
Senti que meu corpo se expandia e meu aprendizado acelerava seu processo, o que me diziam ganhava
outros sentidos, o da explicação para certos fatos como atitudes de pessoas que me serviram como exemplo
para entender e vivenciar o que era a moral e imoral, laços de fraternidade ou rompimento de sentimentos,
vaga sensação de desprazer por certas atitudes de robusta insanidade ou virilidade excessiva.
Um dia, andando por outros lugares muito distantes daquele onde nasci, escutei vozes de sustenidos múltiplos,
uso de gritos e vociferações, pândega de demônios que se fartavam de ruídos, nada esclarecedoras palavras
saíam a passear pelos tímpanos, escutei, pela primeira vez, a palavra que menos me parecia exata, "cor".
Pousei meus conhecimentos sobre esta tríplice junção de letras, atinei o mais que pude e não percebi
a violenta comoção que produzia ela e seus desdobramentos, possíveis criações de impossibilidades
derivadas dela, minúscula mas potente composição de lírico desejo.
Um, à esquerda, dizia que a história deste mundo era composta por telas de ambíguas paletas, movimentos
de barcos que chegavam aos cais que despejavam negros que eram capturados em outra instância
de convivência, charcos e pântanos e troncos e correntes de enferrujados metais, lágrimas de sal constante,
a criação da palavra mais temida aos corações, "saudade", o ir e vir do mar absoluto, ondas que jamais
devolveriam seus retirantes sem herdades, posse definitiva do claustro, rei da solidão e do medo.
À direita, com o bafo do perfume que não lava os dentes e nem os escova, a perorar sem a explicação
que cabe a cada discurso dito, a boca mais suja que ouvi bafejava seus impropérios e cuspidelas,
a soldo de reinados e glebas e cercados e zoológicos de pura exposição gratuita, a mim vieram as palavras
mais tristes e amordaçadas que já pusera os ouvidos em cima, prenhes de limites e cheiro de pólvora,
caíram sobre mim entrando adentro meus vários labirintos, de susto pus-me, com a lâmina de meu coração,
a descascar sentidos, a ver a polpa de cada verbo atirado, a atravessar o corpo do ar, que se desviava.
Compreendi porque os homens se separam entre eles e os outros, nem baixos e nem altos, nem magros e gordos,
somente pelo que lhes cobre a vastidão sanguínea, a floresta de nervos que abrigam as maiores atitudes,
o que faz com que cada um daqueles que rompem o cego mundo da divisão ocular sejam segregados,
que ocultem sua anti belicidade, mortos na porta da loja que vende lentes, que ampliam visões.
Eu, que chamam de negro, belo, hierárquico, porque possuo nome e montanhas semânticas de metais,
atravesso este mundo como um nauta a remar minha canoa de desvarios que professo como incauto
poedor de versos sobre ventres magnificamente brancos, segundo o que minha mãe diz, quando
me explica sobre as cores e seus matizes, compreendo o Império dos Olhos que cobre todos os continentes,
que devasta aquele que pulsa o tom da diferença, que o cobre co o manto da vergonha que é criado
por ceifeiros e guias mortais e, neste campo de elétricos raios e metamorfoses, guio, como se num campo de centeio,
minha poesia por entre cegos que leem com as pontas dos dedos.
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