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O Velório dos Vivos
Heleno Reis

O Velório dos Vivos


     Ao final de uma tarde abafada de verão, forasteiro recente naquela pequena cidade mineira de ... e, assim, coagido pela premente necessidade de socializar-me, vi-me metido num velório que, por acaso, deparei durante uma solitária caminhada pelos arredores da minha casa depois do jantar. Da rua, por umas das janelas de duas folhas do andar inferior de um decadente solar de dois pavimentos, podia se ver o caixão com o defunto bem no meio da sala de visitas, encimando por um crucifixo reverberante e ladeado pelas chamas oscilantes de quatro grandes velas de parafina.

     Determinado, aproximei-me da residência enlutada. Sobre uma colina próxima — reparei com um breve arrepio a perpassar-me a espinha —, ao logo dos galhos ressequidos de uma imensa paineira morta, em contraste com o horizonte crepuscular, um bando de urubus, provavelmente com o bucho cheio de carniça, aguardava o definitivo abraço da noite.

     — Boa noite! — cumprimentei o homem alquebrado, recostado num dos postes do jardim da casa, ao lado do largo portão colonial de ferro fundido. Ensimesmado, o sujeito entretinha-se em enrolar de modo diligente um comprido cigarro de palha.

     Noiiiite!!! — respondeu arrastadamente o homem carrancudo, de tez rugosa e estorricada de sol. Calçado de botinas esmeradamente lustrada, ele usava um terno roto de brim caqui e um chapéu de feltro marrom, meio de banda na cabeça pequena de cãs ralas e amarelentas.

     — Tudo bem com o senhor? — insisti, forçando o contato.

     Parecendo mais tíbio do que propriamente tímido, e sem negligenciar o nicotinoso ofício, o homem olhou-me de través, franziu o cenho e não me respondeu.

     — Xiii!, comecei mal — pensei. — Como desejar boa noite e perguntar se tudo está bem a alguém de luto? — recriminei-me com os meus botões.

     Mesmo acompanhado pelo olhar enviesado e nada amistoso do velho do portão, percorri a breve alameda calçada com pedras basálticas ladeada de azaleias e, resoluto, entrei na casa.

     Ao redor da ampla sala de ladrilhos portugueses de tons azuis, contrastado com a cor marrom escura das folhas e esquadrias das janelas, sentadas rentes às paredes de um branco antigo, um bando de senhoras sinistras e plangentes, em enfadonha e ininteligível rezaria de terço, velavam o defunto. Nenhuma das velantes fez menção de ter me visto, pois seus olhos de luto passaram por mim tão vazios e rasos quanto os olhos perdidos de um cego.

     Sinceramente, eu desejava expressar as minhas condolências à família e aos amigos do morto e, assim, quem sabe, quebrar o gelo espesso que se formara entre eu e os habitantes arredios daquela cidadezinha timidamente incrustada nas fraldas de imponentes montanhas, de modo a tornar expansível e profícua a minha nova vida entre eles. Depois de anos a fio de subsistência estressante na grande metrópole, que quase me ceifou a vida, o meu desejo de paz e sossego, de amizade e interação com a simplicidade levou-me a mergulhar no tão decantado bucolismo do interior de Minas Gerais, desopilante e reparador do corpo e da alma.

     Ledo engano, pois entrei e saí daquele velório obscuro e imponderável como se eu não existisse. Intangível como uma sombra, não deixei o mais tênue rastro de minha existência. Não deixei sequer o mais fino traço da minha fisionomia estranha entre os parentes do morto e entre os demais velantes que carpiam e rezavam na sala mortuária, onde parei por alguns instantes ao lado do caixão para dedicar ao defunto uma singela oração.

     Consciente da minha invisibilidade e, portanto, livre dos entraves comuns enfrentados pelas visitas inesperadas, ou sem a necessidade de impingir aos anfitriões contrariados o desaforamento dos penetras e nem sentir o constrangimento dos mal- recebidos, passeei desembaraçado e silente entre aquela gentaria como uma solitária nuvenzinha que, nas entranhas da noite alta, vagueia na imensidão do céu acobertada pela mais densa névoa. Assim, nas sombras daquela noite fúnebre, vislumbrando-os como seres socialmente disformes, e tomado de consternação e medo, pude escutar com clareza muitos dos participantes do velório em seus mais deprimentes testemunhos, em suas mais condenáveis maquinações.

     Distribuídos em grupelhos pelos cantos mais ermos e obscuros da casa, incluindo as brechas penumbrosas do jardim adornado pelos ciprestes e pelas olorosas damas-da-noite, velhuscos irascíveis da decadente burguesia local, tíbios e desconfiados por atavismo, mas altivos por megaidiotismo cultural, confabulavam ao pé do ouvido com repetidos olhares de esguelha temerosos da escuta indevida. Eram eles, em sua grande maioria, fazendeiros racistas e de persistente vocação escravocrata. Alguns deles latifundiários arruinados, frustrados e raivosos, que depois de ficarem décadas a fio entalados na garganta do tempo voraz e inexorável foram, finalmente, junto com o anacronismo estúpido de suas proposições econômicas, sociais, políticas e trabalhistas, engolidos, digeridos e defecados pela contemporaneidade, tornando-se aqui e acolá montículos de merda histórica. Figurinhas patéticas e relutantes em acreditar na capacidade de ascensão social e de governança do negro, do nordestino, do índio e de todos os demais brasileiros oriundos da plebe. Homenzinhos desprovidos de equilíbrio intelectual e emocional, faltos de quaisquer virtudes cívicas e civilizatórias em meio aos atuais apelos da sociedade contemporânea. Embora falassem à boca pequena, ouvi-os claramente que vociferavam impropérios contra o governo procedente do operariado e contra todas as instituições engajadas na luta política pela democracia, pela dignidade humana e pela justiça social. Execravam especialmente as organizações trabalhistas, de direitos humanos e de preservação do meio ambiente, culpando-as pela precarização da sua secular condição burguesa extrativista e escravocrata e, por conseguinte, pela fragilização do status social do qual tradicionalmente gozavam. Saudosos, aqueles entes sociais decadentes faziam apologia ao passado, tempo em que, intocáveis e felizes, empunhavam com altivez o bastão do poder numa mão e o chicote noutra.

       Em animado colóquio, reunidos num outro ponto do jardim, vislumbrei e ouvi alguns outros munícipes empertigados, glorificando as suas famílias. Entronizados na cidade unicamente por causa dos sobrenomes caucasianos, eles se vangloriavam das suas origens, as quais reputavam históricas, aureoladas de inúmeras vitórias e nenhuma derrota na vida. Alguns deles nepotistas enchiqueirados na politicalha local, chupins desenvergonhados do erário público de geração em geração. Matreiros, tramavam as suas reinvestidas políticas, as suas estratégias rasteiras para o próximo pleito eleitoral, visando ações de locupletamento para manterem o seu status quo concupiscente.

     Um pouco mais distante da casa, na penumbra de um caramanchão coberto por trepadeiras ressequidas, sentados muito à vontade em volta de uma mesa de pedra, outros sujeitos churdos confabulavam amistosa e coniventemente como se estivessem numa festa e não num velório. Entremeio a indecentes gargalhadas, trocavam versões sobre as suas proezas carnais pontuadas de estupros de vulneráveis, a maioria de empregadinhas domésticas incautas e subjugadas pela fome e pela miséria extremas. Crimes que nunca lhes renderam nem sequer um dia de cadeia ou quaisquer outras condenações morais por parte da sociedade local que sempre faziam vistas grossas e ouvidos moucos a esses e a outros tipos de mazelas por submissão, covardia ou conivência. Estupefato, claramente ouvi que esses seres amorfos faziam apologia sobre as suas extraordinárias vilezas sexuais com indescritível orgulho, como se toda aquela latrinária condição de despudorada animalidade fosse prova cabal da ímpar masculinidade que se arrogavam dotados, da indomada potência erétil dos seus falos brancos irrigados de sangue europeu.

     Em meio a todo aquele monturo de imoralidades, como moscas varejeiras esvoaçando impertinentes sobre a caca que recende forte, parasitas do serviço público, em intermináveis zunzunzuns, vangloriavam-se da esperteza e da mamata conseguida sem nenhum esforço, graças as pistoladas, ao nepotismo rasgado e aos falsos concursos, apadrinhados que eram por velhas raposas políticas de rabo preso umas com as outras. Contudo, a despeito da desídia, da arrogância e da soberba encruadas em seus deploráveis costumes, arvoravam-se de essenciais para o bom funcionamento da máquina pública, colocando-se como vítimas de um trabalho massacrante, de uma carga horária brutal, de um salário indigno diante da prodigiosa inteligência de que eram providos, muito aquém da justeza, do zelo, da magistral paciência e da magnificente importância que dispensavam àquela municipalidade que eles taxavam de ignara e pusilânime.

     Também compunha a nata daquela solução putrefata uma outra raça de chupins. Esses mais calhordas e desavergonhados ainda, pois eram os que bebiam, comiam, dormiam, vestiam-se e até frequentavam a zona do baixo meretrício às custas do trabalho de suas esposas, a grande maioria servidoras públicas do baixo escalão, carentes e estressadas, que nutriam profunda baixa estima e um medo arraigado da solidão e do abandono que sem perceber já viviam.

     Como abutres sobrevoando a carniça, políticos carreiristas, vagabundos diplomados, ao lado de fraudadores previdenciários, cafetões, agiotas, estelionatários e sonegadores de impostos do comércio local encetavam golpes e negociatas contra o bem comum e contra os simplórios, órfãos do direito e da Justiça.

     Volteando entre os grupelhos, como mariposas irrequietas, mulheres mal casadas, descasadas, solteironas e mocinhas descabaçadas desfilavam roupas e sapatos da última moda em detrimento do bom nome e da boa alimentação, sem nenhum constrangimento quanto ao descrédito e quanto ao indiscreto ronco dos seus estômagos vazios e das suas incontroláveis manifestações de apetência salivosa. Descontraídas, mas insubstanciais e destituídas de recato, elas ali estavam para tirar proveito daquela providencial tertúlia fúnebre. Em alto e bom som, essas mulheres disputavam entre si a primazia de ser uma melhor que a outra, fazendo apologias mil acerca dos seus costumes e das suas incontáveis virtudes. A soslaiar com sofreguidão, ora para um lado, ora para o outro, no intuito de conferir o engodo lançado, aquelas ardilosas fêmeas visavam encantar e, desse modo, fisgar e depois da cama desfeita acharcar quaisquer equos imbecíllis dos muitos que por ali circulavam, todos abrasados pelo efeito da indomada libido a custo encabrestada.

     Na realidade, naquela assembleia funérea, pastio de vaidades e sandices, nata e malta se confundiam, ralé e burguesia eram uma merda só; protestantes e católicos hipócritas, mandingueiros e, inclusive, ateus desarrazoados se misturavam em putrefata harmonia, formando ali uma massa nauseabunda e disforme.

     Não despertei ao menos fugaz atenção dos esfomeados fila-boias que, azafamados, guinchavam como porcos famintos na enorme e penumbrosa sala de jantar, comendo vorazmente de uma comprida mesa fartamente servida de fumegantes bules de café, broas, roscas e outras quitandas; balaios de pães franceses, gamelas de salada e terrinas transbordantes de gordurosa carne louca regada a pinga, cerveja, tubaína e jarros de refrescos.

     Na câmara-ardente, com respeitosa discrição e envergonhado mutismo, a contrastar paradoxalmente com a sua tez marmórea, o morto, sim o morto, foi o único que me recebera com paciência e calorosa atenção...

     Acordei com os primeiros raios do sol de verão invadindo furioso a minha sala pela fresta da cortina. Imediatamente, um tanto confuso, ainda no limiar entre o pesadelo e a realidade, veio-me à lembrança as aterradoras e deprimentes imagens do velório. Suando em bicas e curtindo uma maçante dor de cabeça e um nauseante desconforto digestivo, lembrei-me que, vencido pelo sono pesado, com a janela entreaberta e a televisão ligada, eu havia dormido de mau jeito no sofá logo após ter comido imoderadamente no jantar alguns bons pedaços de chouriço de sangue de porco frito, regado a generosas doses de caipirinha de limão-capeta.

     Mais tarde, amainadas a indigestão e a ressaca depois de algumas xícaras do milagroso boldo-do-chile, com o sonho dantesco a martelar-me o cérebro um tanto oco, resolvi caminhar pelos arredores afim de espairecer as ideias. Agora sim, conhecer realmente pelo menos um pedaço daquela cidadezinha que eu havia escolhido para viver o resto dos meus dias, longe do caos e do desassossego da metrópole.

      Eis que, de repente, depois de entrar e sair de algumas vielas aprazíveis, sempre sob o crivo dissimulado dos desconfiosos moradores, ao final de uma estreita e arborizada travessa sem saída, vi-me diante da casa onde eu havia estado durante o pesadelo da noite anterior. Era a mesma casa, disso eu não tinha dúvidas, só que inabitada e em completo abandono. O mato espesso tomava conta do jardim e envolvia o caramanchão em ruínas, enquanto o portão de ferro desmantelado e parcialmente solto dos gonzos ferrugentos jazia um tanto pendente para o lado de dentro da propriedade, demonstrado que há muito tempo nenhuma alma viva entrara ou saíra dali. Só a minha.

     Algum tempo depois, desencorajado por pesadelos de igual horripilância, mesmo depois de ter adotado a frugalidade nas minhas refeições noturnas, e pela renitência preconceituosa dos moradores em familiarizar-se com estranhos, deixei a cidade na qual jamais ousarei colocar os pés novamente.

     Daquela cidade corrompida, reacionária e inospitaleira, e daquele velório kafkiano, o morto, sim o morto, foi a única e grata lembrança viva que ficou gravada na minha memória e no meu solitário coração peregrino.


Heleno Reis

MG,agosto de 2016












Biografia:
Poeta, cronista e ficcionista desde os dezessete anos.
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