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A morte à espreita
Elio Moratori Teixeira

A cafeteira apitou e soltou na jarra um litro exato da bebida. Quente e ainda fumegando, despejou uma boa quantidade em uma xícara. Soprou sobre o líquido, espalhando pelo ar o vapor. Uma leve golada e sentiu seu calor percorrendo sobre seu corpo. O gosto forte e saboroso o despertou, deixando-o mais alerta para aquela longa noite que ainda estava por vir. Caminhou em direção ao escritório. Em sua mesa, os documentos necessários para se levar ao advogado, no dia seguinte, estavam espalhados para uma última checagem. Precisava de um bom banho e de separar seu terno preto para o velório. Não havia sido uma noite fácil. E nem seria fácil enterrar uma pessoa tão querida no dia seguinte. Ainda não acreditava que tudo aquilo estava acontecendo. Repentinamente, uma vida se encerrou. E não havia nada que ele, mesmo com todos os seus anos de estudos, pudesse fazer para reverter isso. O anjo da morte a levou e existem tantas coisas ainda inacabadas.
Resolveu deixar o café de lado e procurar por algo mais forte. Foi até a sala e pegou no bar uma garrafa, ainda fechada, de um vinho. Na garrafa, escrito em caligrafia familiar, o bilhete dizia – “para quando chegar o dia” – na doce ilusão de um resultado positivo de um teste de gravidez futuro. Esse dia, porém, não chegaria. Ela jazia morta, agora, em uma fria gaveta do IML. Seus sonhos foram interrompidos, literalmente, por uma violenta pancada. E agora, restava beber sozinho aquilo tudo. Beber para amenizar a dor, ou cair desmaiado, ou o que viesse primeiro.
Sentado no chão e recostado no sofá, olhou ao redor. Tudo a lembrava. Os porta-retratos sobre a estante, o quadro pintado por ela, a configuração da mobília. Sabia que nada mais seria igual a antes. Lágrimas percorriam seu rosto e uma forte dor transpassava sua alma. Buscava conforto na suas lembranças, mas agora que estava sozinho, elas se transformaram apenas em dor. Tamanha era que adormeceu ali, escorado na poltrona da sala, bêbado e decadente, chorando a morte da esposa e morrendo aos poucos pelo remorso da briga de logo cedo.
Acordou assustado, ofegante e suado. A casa vazia parecia sussurrar sua ausência. As luzes, apagadas, apenas se somavam àquela atmosfera mórbida que se formou ali. Olhou no relógio de pulso e viu que batia três horas da madrugada. Um vento frio percorria todo o apartamento e espalhava o perfume de sua amada. As fotografias do casal pareciam chamar por ela, gritar seu nome. Ainda atordoado do pesadelo, levantou-se meio tonto. O vinho havia caído em sua corrente sanguínea e não fora bem degradado pelo seu organismo. Não bebia com freqüência e toda gota de álcool que ele consumia provocava um efeito de embriaguez em si. O cenário de filme de terror dissipou-se ao acender a luz do corredor, mostrando que o verdadeiro pesadelo era a ausência de sua esposa.
     Abriu o chuveiro e entrou sob a água fria. Tremendo puxou a toalha sobre o Box. Não era a sua. O cheiro dela ainda estava lá, grudado, e o punia cada vez que ele o sentia. Era como se a vida jogasse em sua cara o quão idiota ele havia sido. Que nada disso aconteceria se ele não houvesse discutido com ela horas antes do fatídico acidente.
Um desentendimento sem sentido. Ela queria sair com ele, para comemorar uma conquista, algo importante a ela, uma promoção, ou algo assim, nem se importou com o motivo. Mas ele não fez o mínimo esforço para desmarcar o futebol de quinta, com os amigos da clínica, já que era uma tradição e o time contava com ele. Podia ser contado logo na manhã seguinte, ou quando ele chegasse em casa. Chateada, resolveu ir até a casa de sua mãe, em um bairro mais afastado. Talvez para contar a notícia, ou apenas para buscar o conforto de mãe ante a decepção com o marido. Bem, algo deu errado. Um carro a fechou e numa tentativa de desviar, perdeu o controle e bateu violentamente contra uma árvore.
Ainda no jogo recebeu um telefonema de um número conhecido. Por que alguém do hospital ligaria àquela hora? Uma emergência talvez. Porém, daquela vez, não era. Era pior. Sua mulher morrera ao dar entrada no hospital. Seu mundo desabou ao ouvir aquela sentença. Acabou os sonhos de envelhecer ao dela, ou a esperança de constituir uma família. O ceifador roubara aquilo que mais sonhava. Sua atitude havia sido a porta de entrada para o destino lhe pregar aquela peça.
Não teria mais com ela o filho com que sempre sonharam. Não levaria o moleque para jogar bola no fim de semana. Não levaria a garota para o balé. Não estaria lá no parto. Seu sonho de ter seus filhos com ela, de deixar algo para o mundo foi destruído no momento em que se recusou a abandonar seu programa daquela noite.
Saiu do banho em seu pijama. Foi novamente até o escritório olhar a caixa que estava no carro de sua esposa. Tirou a tampa e dentro, além de algumas peças em que ela trabalhava, havia um envelope. A logomarca identificava um laboratório de análise de exames. Já havia sido aberto. Por ela, certamente.
Com calma, puxou o papel. Leu com atenção. O resultado era positivo. Aquele era um positivo para um teste de gravidez. Era aquela notícia que ela queria comemorar. Ele seria papai. Teria, com ela, o tão sonhado bebê. Porém, o diabo agora lhe arrancara aquilo com que tanto sonhou. Sentiu uma forte dor no seu peito. Dessa vez era física. Uma dor lancinante o fez curvar no chão. Ainda com o papel na mão, todo amassado pela violência de seus espasmos. Caiu no chão. Sem forças. Seu coração, batia fraco, e lentamente, foi parando. O remorso pesou seu coração e ele não resistiu ao peso. Agora ele jazia ali, em sua casa, morto, sem vida, esperando encontrar a única que poderia perdoá-lo e amenizar a sua dor. O anjo da morte o abraçou e agora o levava para uma nova dimensão. Céu ou inferno, tanto fazia. Precisava apenas do perdão daquela que mais amou e que por seu descuido, morrera levando tudo aquilo que o faria ser feliz um dia.
Ali estava ele, sem vida, sem amor, sem carinho... sem ela!

Elio Moratori Teixeira (27/12/2015)


Biografia:
Sou um cronista com crônicos problemas. Juiz Forano, cinéfilo e um leitor que ainda tem muito o que aprender sobre sentimentos. Gosto da forma como as palavras são desafiantes ao se descrever as coisas que nos permeiam. Confuso na maior parte do tempo, e com uma dificuldade de escrever o mundo que tenho na cabeça. Sou apaixonado por ficção, seja ela qual for, crônica, contos e outros tantos.
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Contos A morte à espreita Elio Moratori Teixeira
Poesias A quintessência do amor Elio Moratori Teixeira
Crônicas A crônica de uma cronista com problemas crônicos. Elio Moratori Teixeira


Publicações de número 1 até 3 de um total de 3.


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