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ELA É UM SER DE OUTRO PLANETA
LICA NEAIME

Resumo:
TEATRO ADULTO Uma idosa mora com a filha executiva.Ela faz trabalho voluntário em hospital infantil.(palhaça)As duas não se dão muito bem.A mãe fica doente e apronta muito sozinha em casa até sua morte.Se reconciliam pós a morte da mãe.


ELA É UM SER DE OUTRO PLANETA
ou
SEDE DE VIVER
cenário: 1.sala de estar com espelho grande
               2. quarto da mãe.
               3. local para filha se divertir

Cena 1
(SALA DE ESTAR. MÃE FRENTE A UM ESPELHO RETIRA A MAQUIAGEM, MAS AINDA ESTÁ COM O NARIZ VERMELHO DE CLOWN. VESTE UM MACACÃO SIMPLES COR DE LARANJA, MAS AO LADO ESTÃO JOGADOS A GOLA, PUNHOS E TORNOZELEIRAS DE PALHAÇO FEITAS DE TULE BEM COLORIDO. HÁ UMA ESTANTE AO LADO CHEIA DE BONECAS DE LOUÇA, DE PAISES DIFERENTES.
ENTRA A FILHA VESTIDA DE EXECUTIVA. MAE USA SÓ CORES QUENTES: LARANJA, VERMELHO, AMARELO, ROUPAS MUITO SIMPLES E BARATAS.. FILHA USA SÓ CORES FRIAS: CINZA, AZUL,GELO,SE VESTE MUITO BEM, ROUPAS DA MODA, MUITO CARAS).
FILHA_ Que ridículo você vestida assim. Não tem vergonha de andar na rua como palhaça?
MÃE - Eu venho de carro, ninguém me vê, o vidro é escuro. E eu adoro fazer as crianças do hospital rir das estórias que eu dramatizo. Fiz curso com os Doutores da Alegria. Eu me divirto e divirto uma porção de crianças doentes. Algumas nem vou voltar a ver na semana seguinte. É triste...
FILHA_ Faça como quiser. A vida é sua. O ridículo é seu. Só que o seu ridículo me atinge, me incomoda. Se eu me incomodo de ver você chegando em casa como um palhaço, o que as pessoas vão dizer?
MÃE - Que sua mãe, apesar de aposentada ainda trabalha para alegrar crianças e idosos doentes. Que sua mãe não é uma inútil. E depois, paro o carro na garagem e subo pelo elevador de serviço. Ninguém me vê, nem o porteiro! Eu buzino, ele abre no botão do automático, nem me vê. Só olha a placa do carro e o adesivo do prédio....
FILHA_ Você podia fazer coisas mais úteis.
MÃE - Por exemplo?
FILHA_ Fazer roupas para os pobres e depois mandar alguém entregar... Ainda tem a máquina de costura na lavanderia.
MÃE - Eu faço enxoval de bebê, casaquinho e sapatinhos de tricô, blusinha de algodão, cueiros de flanela e ainda compro um pacote de fraldas de pano, ponho numa sacola grande junto com uma manta e entrego na Casa da Mãe Solteira todos os sábados de manhã. Faço um enxovalzinho por semana! Prefiro tricotar a costurar... Que mais que você sugere?
FILHA_ Mãe, com você não tem conversa, tem sempre uma resposta pra tudo. Só me faz passar vergonha.
MÃE - É vergonha ter uma mãe com a minha idade que ainda vai fazer palhaçada pra crianças de hospital? Que faz com as próprias mãos enxovalzinho de recém-nascido? Que faz aulas de yoga todas as noites, que vai ao clube nadar todos os finais de semana?
FILHA_ Não falei isso. Você distorce tudo que eu digo. Não dá pra conversar com você. Vou tomar meu banho e pronto. Chega de estresse. A gente mal chega em casa e não tem descanso..Tchau .(SAI)
MÃE - Devia dar graças a Deus de não ter uma mãe doente pra levar no hospital todo dia, dar banho, trocar fraldão. Briga por que me divirto. Minha filha é muito estranha. Ela parece um ser de outro planeta. Ou será que sou eu um ser de outro planeta? Puxa, eu me esforço para ser uma pessoa legal, útil à humanidade, faço tudo para ser alegre e alegrar os outros e só recebo recriminação da minha única filhotinha. Podia estar aqui, rancorosa com a vida que foi muito ingrata e exigente comigo, mas estou levando tudo numa boa, como manda o figurino.



Cena 2
FILHA_ (VOLTA COM ROUPA DE SAIR, COMO SE JÁ TIVESSE TOMADO UM BANHO) Vou sair com o Rogério, se o Jonas ligar diz que já estou dormindo, tá?
MÃE - Você sabe que eu odeio mentir. Não me coloque nos seus joguinhos. Ligue você mesma para o Jonas e diga que está muito cansada que já vai dormir. O coitado vai entender. Parece um cãozinho carente da dona, só abana o rabinho pra tudo que você faz!
FILHA_ Tchau. Não precisa ficar acordada me esperando. Dorme. Descansa essa cabecinha oca, dona Zuleica.
MAE - Não vai nem me dar um beijo de despedida, filha?
FILHA_ Fui! (BATE A PORTA)


Cena 3
MAE - Tenho a filha que sempre quis. Desde que fiquei grávida já imaginava uma filha inteligente, bonita, carismática. Mas, algo falhou.... queria uma filha amorosa comigo, minha amiga e companheira. Mas parece que tenho uma inimiga dentro de casa, me criticando, me cobrando, exigindo. Só tira, não coloca nada de volta, nem dinheiro, nem amor, nem carinho,.....nada! Dinheiro eu não preciso, graças a Deus que consigo me manter com a aposentadoria, pensão do ex e uns pequenos rendimentos...

Cena 4
FILHA_ (NUM BARZINHO, COMO SE ESTIVESSE COM UM NAMORADO. MUSICA ROMANTICA)-Não, Rogério. Acho muito cedo pra gente ir para um motel. Preciso conhecer melhor a pessoa, sentir confiança, não digo amor, mas sentir algo a mais, algo que me motive a ir pra cama, não é só com bebidas, não. Estou alta, mas ainda raciocino. Vamos nos conhecer melhor. Vamos jantar no próximo sábado à noite, ir a um teatro, ou dançar, o que você preferir. Tchau, querido, a noite foi ótima, mas vamos parar por aqui. Me liga na terça a tarde, tá? Entre três e três e quarenta! (SAI)


Cena 5
MAE - Você faz muito barulho quando entra, querida. Pode chegar as seis, as sete, ao meio dia, mas não me acorde. Sabe que tenho sono leve. Custa fechar a porta com delicadeza?
FILHA _Custa! Cheguei cansada, mal humorada, o encontro com o Rogério foi um porre. Nem percebi que bati a porta, desculpe.
MAE - Você bateu a porta da entrada, a porta do banheiro umas três vezes, a do quarto umas quatro vezes. Poxa, eu não descanso com você em casa, filha!
FILHA _Fui escovar os dentes, me deu sede, depois fui fazer xixi, esqueci a chave do meu quarto na mesa da cozinha, sabe que só consigo dormir com a minha porta trancada, voltei lá, comi um doce, voltei pra escovar os dentes novamente, fui pra cama, mas esqueci a luz acesa do corredor, entendeu? Eu não tenho culpa se você tem sono leve, parece um bibelô, qualquer coisa quebra. Eu não sou uma boneca numa estante, eu ando, sinto fome, sinto sede... Qual é o problema? Não posso mais andar nessa casa?
MAE - E eu tenho culpa de ter sono leve? O médico diz que é uma disfunção numa área do cérebro, a mesma onde se dá o Parkinson. Me trato há trinta anos, não tem cura... Melhor ter sono leve que a doença de Parkinson, não acha?
FILHA _Não acho nada! Acho que vou me mudar pra Conchinchina pra poder fazer tudo que quero sem ninguém me torrando a paciência, dona Zuleica.
MAE - Faça como quiser, dona Amanda! Digo a você o mesmo que disse ao seu pai quando você fez um ano: a porta da rua é serventia da casa, está aberta pra sair e pra entrar. Você é quem decide. Não vou amarrar ninguém ao pé da minha cama. Você é livre pode sair daqui a hora que quiser.
FILHA _ Tá me expulsando de casa?
MAE - Não fui eu que disse que iria pra Conchinchina. Pode ir. Eu me viro sozinha. Já estou acostumada, querida. Faz trinta e cinco anos que faço tudo sozinha, decido e faço, vou à luta, não delego tarefas, eu mesma faço.
FILHA _É verdade. A válvula da descarga ficou horas com o telefone na mão perguntando pro seu Gumercindo como tinha que fazer....
MAE - Eu pus todas as peças em ordem na pia, mas escorreguei e derrubei tudo, liguei pro zelador me indicar a ordem das peças. Ele não quis desligar ficou me ajudando por telefone.
FILHA _Durante horas, coitado.
MAE - Ele se divertiu me ajudando, contava piadas, uma do peixinho, uma do Obama, outra do Bush, outra do Obama, mas não lembro, sou péssima pra guardar piadinhas, enquanto eu ia fazendo o conserto, ia dizendo primeiro a placa redondinha, depois a dentada, depois.a...
FILHA _Não quero saber! Cai da escada, tentando fazer um furo para a samambaia. Quebra a perna e o braço juntos. Escorrega encerando a sala, fica com dor no ombro puxando o carrinho de feira. Corta a coxa usando a serra tico-tico. Pra que? Pra mostrar que é independente, que faz tudo sozinha, até serviço de homem. Inunda o banheiro tentando trocar a válvula da descarga. Faça-me o favor, né dona Zuleica!
MAE - Você errou um verbo o verbo tentar, eu não tento, eu faço, eu consigo, eu troquei a válvula, eu pendurei a samambaia, eu faço feira todas as semanas só pra encontrar minhas amigas e comer pastel com caldo de cana.
FILHA _Que programa divertido, não?
MAE - É o programa que eu gosto de fazer, comer um lanche, bater papo, jogar conversa fora, falar das vizinhas... Não jogo, não bebo, não namoro, resta muito pouco a fazer para se divertir, não acha?
FILHA _Já disse que não acho nada. A vida é sua, você decide. A minha vida eu decido e ponto final. Fui! (SAI)


Cena 6
FILHA _ (AO TELEFONE) Casar, Jonas? Você tá louco? Não quero me amarrar a ninguém. Se eu sair da minha casa, quer dizer da casa da minha mãe é pra morar sozinha num apartamento só meu, bem clean, sem nada. Paredes brancas, soalho preto, portas escuras, um colchão num estrado de um palmo de altura, um closet pras roupas bem grande, um quarto inteiro, nem cozinha eu faço questão. Comer na rua é muito mais pratico. Só uma geladeirinha pra água gelada e uns petiscos no quarto mesmo. Mas, banheira eu faço questão, uma enorme. Um quarto de banho, ducha, hidromassagem tudo branco com tapetes bem fofo no chão pra andar descalça. Nada mais, querido. Você? Só de final de semana, e se eu estiver de bom humor, querido. Por hoje, chega. Tchau! Me liga na terça entre três e quarenta e quatro e vinte, tá?



Cena 7
(MAE ENTRA, MEIO CAMBALEANTE, VESTIDA DE PALHAÇO E COMEÇA A SE DESFAZER DA FANTASIA LENTAMENTE, RETIRANDO CADA PEÇA E DOBRANDO CUIDADOSAMENTE, GESTUAL MUITO LENTO, CANSADO. SENTA-SE, OLHA O ESPELHO, COMEÇA A RETIRAR A MAQUIAGEM, E DESMAIA, CAINDO NO CHÃO. FILHA ENTRA ALGUNS SEGUNDOS DEPOIS)
FILHA _Mãe? Que você tá fazendo aí no chão? Tá louca? Fala comigo... Tá fria, será grave? Melhor chamar alguém. Um, nove zero é policia. Um, nove dois é bombeiros. Um nove três é ambulância. Por favor, minha mãe está caída no chão, pode mandar uma ambulância vir socorrer? Não sei, cheguei e ela tava no chão. Sim, está respirando, o coração está batendo, está gelada. Rua do Minueto, número vinte, apartamento setenta e cinco. Afrouxar o cinto, tirar relógio, pulseira, colar... Muito obrigada. Vou chamar o zelador pra me ajudar. Seu Zé? Pode vir aqui, no setenta e cinco? Urgente! Obrigada. (PUXA A MÃE PRA FORA DE CENA)



Cena 8
FILHA _ (AO TELEFONE) Não sei, Jonas, ela está em observação no hospital. Eu estou com medo. Agora não vou poder comprar meu apartamento e ir embora. Vou ter que cuidar dela, até ela poder se virar sozinha outra vez. Ela não é tão idosa assim... e sempre foi independente. Vai ser horrível se tiver que depender de mim. Ela não vai agüentar. Eu não vou agüentar. Tchau. (TOCA O TELEFONE) Oi, Rogério, tudo bem? Eu estou péssima, com essa doença da minha mãe. Não sei como vai ser. Tenho medo pelo meu futuro, de ficar de enfermeira pro resto da vida, ela ainda pode viver uns trinta ou quarenta anos, sei lá, meus bisavós morreram com mais de cento e dez anos. Na roça, é claro. Na poluição e com estresse deve durar menos que cem, espero... Não tenho saco de dar comidinha na boca, dar banho, cuidar. Sei. Pagar uma enfermeira? É uma idéia, mas sai muito caro. Claro, ganho muito bem, poderia manter uma enfermeira, pelo menos por uns tempos, mas é que tenho que pagar as prestações do meu apartamento, comprei faz dois meses, ainda está em fase de construção, as prestações são altas. È segredo absoluto, viu? E vou mudar quase tudo, o piso, os azulejos, os armários, as paredes... Nunca pensei em por o meu salário aqui em casa. Sempre gastei só comigo. Vamos aguardar pra ver no que vai dar. E não me liga mais, deixa que eu ligo, quando puder, Rogério. Beijos. (DESLIGA)


Cena 9
(FILHA ENTRA EMPURRANDO A MAE NUMA CADEIRA DE RODAS)
FILHA_ Quer ver televisão?(MÂE FAZ SINAL QUE NÃO.) Quer ir pra sua cama? (MÂE FAZ SINAL QUE NÃO.) Quer tomar um banho? (MÂE FAZ SINAL QUE NÃO.) Quer comer? (MÂE FAZ SINAL QUE NÃO.) O que você quer afinal? Não tenho a tarde toda, dona Zuleica, decida-se!
MAE _ Quero conversar com você, passar uma tarde só nós duas juntas, discutir o futuro, ou qualquer outro assunto do seu agrado, minha filha. Sinto falta de você, Amanda.
FILHA_ Era só o que me faltava, dona Zuleica. Preciso ir pro trabalho, tirei o horário do almoço pra te buscar no hospital. Diga o que quer que eu faça, pois já vou sair.
MAE _Ficar comigo, algum tempo, conversar. Só isso. Parecemos estranhas que nem se conhecem. Fica um pouquinho comigo, Amanda.
(FILHA SENTA NO SOFÁ OLHANDO O RELÓGIO)
FILHA_ Pronto, estou a sua disposição. Você tem dez minutos pra falar o que quiser. (TEMPO) Tchau. Seu tempo acabou, querida. (SAI)



Cena 10
MAE _Puxa! Nunca pensei que precisaria estar à beira da morte pra conseguir um pouco de atenção da Amanda. Que idiota! Ela nem me deu atenção, nada. Jogou o controle remoto da TV no meu colo, pos o telefone ao meu lado e foi embora. Uma frieza pior que as geleiras do Pólo Norte. Sim, vamos dizer que a Amanda sofreu bastante com o abandono do pai, era zoada na escola, amigos falsos, namorados interesseiros... Mas e eu? O que fiz de errado? Trabalhei como uma condenada pra não deixar faltar nada. Chegava caindo de sono e cansaço, mas brincava de cavalinho e tudo que ela quisesse até querer dormir... Muitas vezes amanhecíamos as duas dormindo no chão da sala entre os brinquedos. Eu capotava no meio das brincadeiras e ela não sabia ir pra cama sozinha acabava dormindo numa almofada qualquer. Mas, nos divertíamos com isso.... Passeios todos os finais de semana, mesmo eu precisando cuidar da casa e por as coisas em ordem. Ela me tem como uma escrava a seu serviço, não tem amor por ninguém, nem pelos avós, tios, primos, namorados, ela só usa as pessoas e dispensa assim que acha outro brinquedo melhor. Meu Deus! Onde foi que eu errei?Se é que fui eu que errei... Ela parece um ser de outro planeta, ou será eu que sou de outro planeta? Puxa! Não podia pedir folga um dia só pra ficar com a mãe que acabou de sair do hospital? Bem, não adianta sofrer com isso. Ela sempre foi assim e eu não consegui mudar. Vou dormir um pouco, escutar uma musica, me fazer feliz. Ela já é adulta, sabe muito bem como se virar sozinha. Eu devo ter pouco tempo de vida, preciso aproveitar para me fazer feliz. Passei os últimos cinqüenta anos tentando fazer os outros felizes, me esquecendo de mim mesma. Vou ser o meu próprio Doutor da Alegria e pronto. (VESTE A GOLA DE PALHAÇO COM FLOR NA LAPELA, COLOCA UM CHAPEU PEQUENO PRESO NUMA PERUCA IMENSA. FAZ UMAS CARETAS NO ESPELHO. ESPIRRA ÁGUA DA FLOR NA LAPELA. RI DE SI PROPRIA.SAI EMPURRANDO A CADEIRA DE RODAS.)

Cena 11
FILHA (AO TELEFONE) _Eu?Ter filhos, Jonas? Você deve estar louco, não me conhece nem um pouco e quer se casar comigo! É um absurdo. Deixa eu falar. Odeio crianças. Pedi pro meu ginecologista tirar meu útero, assim não teria nenhuma chance de engravidar. Ele recusou, só pode tirar o útero se tiver doença que exija a cirurgia. Eu posso voltar atrás e querer dar um filho pra um marido. Imagina. Eu querer dar um filho pra um marido, se nem marido eu quero ter!Ele disse: Os outros órgãos caem e gera problemas no futuro. Podia por um útero de borracha cheio de gás hélio, pra não deixar os outros órgãos caírem dentro da barriga eu disse. Ele se recusou a retirar meu útero. Diz que tem métodos contraceptivos modernos quase infalíveis. Quase, eu disse. Eu quero segurança absoluta e só sem útero eu posso ter essa certeza de nunca engravidar. Bem vou procurar outro medico. Tchau, desculpe, estou furiosa hoje. Me liga amanhã as três e quarenta.(PEGA O LIVRO DE INDICADORES MÉDICOS E COMEÇA A PROCURAR) Dr. Joaquim é muito longe, Dr. Celso, também é longe, doutora Gisele. Amanhã eu ligo. Caminha, agora!


Cena 12
MÂE _ Esse livro conta a situação do idoso no mundo inteiro. Vejamos, que interessante: na Índia se casam aos doze, treze anos.Quando os pais chegam aos trinta, os filhos é que cuidam de tudo, desde a limpeza da casa dos pais, até pagar todas as despesas, aluguel, remédios, comida, passeios. Aqui no Ocidente mimamos muitos nossos filhos, continuamos cuidado deles até nossa morte. E não nos dão nenhum valor. No Oriente o idoso é respeitado.... Vejamos, na Inglaterra criaram um programa experimental para os aposentados contarem estórias nas praças para as crianças. Cada praça tem sua avó ou avô para contar estórias. Que legal! Pena que não falo inglês, senão já ia me candidatar.
FILHA_ (CHEGANDO EM CASA) Se candidatar a que, posso saber? Se ainda nem se recuperou do enfarte. Sindica? Política? De qual partido, posso saber?
MÂE _ Veja essa matéria sobre os avós na Inglaterra. (DÁ O LIVRO)
FILHA_ Não tenho tempo pra ler, só passei pra trocar de roupa. (ENTRA E VOLTA TROCADA PARA SAIR) Precisa de alguma coisa da rua? Vou demorar pra voltar, pense bem para não incomodar os outros depois. Fui!


Cena 13
(MÃE NA CADEIRA DE RODAS EM FRENTE AO ESPELHO FAZ A MAQUIAGEM DE PALHAÇO)
Filha_ Aonde a senhora pensa que vai?
Mãe_ Vou voltar pra minha vidinha medíocre de antes. Já estou melhor, posso dirigir.
Filha_ E o repouso?....
MÃE_ Já repousei tempo suficiente pro meu gosto. E não estou doente do corpo é da alma. E a minha alma precisa brincar e se divertir um pouco com os Doutores da Alegria, não acha?
FILHA_ Não! Não acho nada!
MÃE_ Que milagre, ela não disse “não acho nada”! Ela tomou uma posição, mesmo que sendo contra, ela se colocou. Que bom, minha filha. Vejo que tem salvação pro seu caso. Seu coração não está totalmente endurecido pelo frio do Pólo Norte, ainda tem salvação, vejamos, (COLOCA UM TERMÔMETRO DEBAIXO DO BRAÇO DA FILHA. SAI FUMAÇA) Nossa! Fumaça!Não sabia que já existiam corações movidos a carvão. Seu coração está perfeito minha senhora. Recomendo que passe algumas horas na sua casa para conversar com sua mãe. Sente-se aqui, por favor, minha senhora. (ASSINA UM PAPEL EM BRANCO) Aqui está a sua alta. Depois da conversa com a mamãe pode sair desse hospício... desculpe, hospital (RI. MAS A FILHA NÃO ACHA A MENOR GRAÇA. FAZ CARA DE SACO CHEIO)
FILHA_ Pronto! Já fez seu numero. Pode voltar pra cama. Quem manda, agora, nesse hospício sou eu!
MÃE_ Mas quem manda nessa casa, ainda, sou eu. Sente-se aqui e fique bem boazinha pra sua mãe.
FILHA_ Senão Papai Noel não traz presentinho no Natal. E não tem Coelhinho da Páscoa. Mãe, acorda! Não sou mais criança.
MÃE_ Mas quem falou que você é criança? Que injustiça. Ela é apenas um bebê ....
(FILHA RETIRA A MAQUIAGEM DA MÃE E COLOCA A MAE DEITADA NA CAMA, APAGA A LUZ)
FILHA_ Prefere ler ou ver televisão?
MÃE_ Dormir!
FILHA_O médico disse que você é hiper ativa, Precisa fazer muita atividade. Mas por hora, dormir faz bem. Deixei uma pilha de palavras cruzadas e livros ao lado da sua cama, além da cestinha de tricô e crochê. Divirta-se, mas não exagere. Soube que foi a feira ontem, comer pastel. Seu Gumercindo viu você saindo, a nutricionista disse que não quis almoçar. Você não pode comer fritura, pelo menos por enquanto, dona Zuleica! Não seja uma suicida, por favor. Estou fazendo o máximo para que possa recuperar a saúde e voltar pra sua vidinha medíocre, mas, vamos com calma!
(FILHA SAI MAE SE LEVANTA E VOLTA A FAZER A MAQUIAGEM)
MÃE_ Suicida, eu? Tenho sede de viver, não posso ficar numa cama, feito doente, se já estou melhor. Logo ela sai pro serviço e eu fico livre pra levar a minha vidinha medíocre de sempre. Só preciso descobrir onde ela escondeu as chaves do meu carro. Se não achar, chamo um táxi. O problema é driblar o porteiro. Ele não pode saber que estou saindo. Espero algum carro sair da garagem e saio abaixada do lado do carro. Ninguém vai me ver até alcançar a rua. Pronto. Já tenho o plano perfeito. Mais meia hora e ela sai de casa. Nove horas está bom pra mim.
(COLOCA O DESPERTADOR. APAGA A LUZ E SE DEITA COBRINDO O ROSTO MAQUIADO)
(FILHA ABRE A PORTA)
FILHA_ Tchau! Volto pra te dar o almoço. O que prefere? Frango xadrez ou lasanha light?Tem o cardápio da nutricionista ai na mesinha de cabeceira, hoje é folga dela, Qualquer coisa é só me ligar.
MÃE_ Você decide, querida, é quem manda nesse hospício agora. Tchau, Amanda. Mas nem precisa voltar só pra me dar o almoço, eu posso ir pra cozinha e fazer um macarrãozinho ou telefonar e pedir alguma coisa no restaurante do lado. Seu Gumercindo trás pra mim.
FILHA_ Então, tá! Deixo o dinheiro perto da porta da cozinha. Não vai abusar da sua saúde, dona Zuleica. Liga pras tuas amigas virem aqui jogar conversa fora.
MÃE_ Pode deixar, já tenho algumas idéias pra passar bem o dia, hoje. Beijos.
(FILHA FECHA A PORTA MAE SAI DA CAMA E VESTE ROUPA DE PALHAÇO POR BAIXO DE UM VESTIDO LONGO, PEGA A BOLSA E SAI)


Cena 14
(FILHA ENTRA VESTIDA DE PRETO. AO TELEFONE)
FILHA_ Pois é, Rogério.Eu ainda não sei de nada.Tirei uns dias de férias pra repensar minha vida.Meu apê está quase pronto, praticamente só falta fazer a mudança.Eu entendo, sei.... o velório foi horrível,você nem pode imaginar. O hospital onde ela era voluntária ofereceu uma sala pro velório. Afinal ela morreu lá, trabalhando! (RI) De repente chegou um povo que eu nunca vi na vida... Um homem com mini pastelzinhos, centenas, outro com caldo de cana com limão e gelo. ”Do jeito que ela gostava” e começaram a distribuir pras pessoas, os amigos da feira! Parecia uma festa e não um velório. O seu Gumercindo avisou o pessoal do prédio, o pessoal da feira, a turma da natação, do yoga, sei lá .Tinha centenas de pessoas, uma balburdia que só vendo.Depois, pra completar a festa, chegou uma enfermeira trazendo umas cinqüenta crianças todas com o avental verde claro do hospital e nariz de palhaço pra dar um beijinho na Vó Zuca, patético. Só faltou colocarem um nariz de palhaço na velha... Não. Eu só avisei meu pai e uma tia que alias não foi, estava com pressão alta e não queria se emocionar. A família vai na missa de sétimo dia. Meu pai disse “Já vai tarde, se quiser posso continuar depositando a pensão dela pra você, não vai me fazer falta, já estou acostumado a viver sem essa grana” Pode? Totalmente indiferente. É, eu puxei ao meu pai, mesmo. Tchau. (BATE O TELEFONE E COMEÇA A CHORAR) Se fosse eu que tivesse morrido não ia ter ninguém, só o Jonas e o Rogério, talvez um ou outro cara que foram pra cama comigo. Não tenho amigos, nem ninguém que goste de mim. O povo do escritório nem ia ligar, o pessoal do prédio ia dar graças a Deus se eu morresse. Como é que a velha tinha tantos amigos? (LIGA) Seu Gumercindo, por favor, peça pra alguém vir pegar todas as roupas da minha mãe. Pode dar, pode ficar, pode vender, sei lá, faça o que o senhor achar melhor. Vou deixar o quarto dela aberto, leve tudo, por favor, não, não quero ficar com nada dela. Levar pro Hospital? É, pode ser uma idéia. As roupas de palhaço? Põe fogo ou dê pras crianças do prédio brincarem. Seu Gumercindo, estou pedindo pro senhor resolver isso pra mim. Não me crie mais problemas, por favor. Obrigada. (BATE O TELEFONE. CHORA) Não sei como ela agüentava passar a manhã inteira na feira comendo pastel e conversando com toda aquela gente. Três minutos com ela já me tirava do serio! Essa Vó Zuca era de outro planeta mesmo. O pior que não aprendi nada com ela. Uma existência inteira e não conseguiu me ensinar nada. Por isso ia ao hospital, ensinar os filhos dos outros... receber o amor que não recebia de mim, sua única filha. Perdoa, mãe, desculpa. (CHORA. ZULEICA ENTRA VESTIDA DE BRANCO, VESTES TRANSPARENTES E ESVOAÇANTES. SENTA AO LADO DE AMANDA)
MÃE_ Filhinha, desculpe o trabalho que te dei, hoje. Desculpa a sua mãe que te ama tanto. É, não consegui te ensinar nada que achava importante, mas você ainda tem chance de aprender (AMANDA SE DEITA NO COLO DA MÃE)
FILHA_ Me perdoa, mãe?
MÃE_ Claro, amor. Você ainda tem salvação. Está chorando, pedindo perdão. Nem tudo está perdido. Mude para o seu apê, Mude tudo. Comece uma vida nova de verdade.
(BLACK OUT. AMANDA ACORDA. ESTA DORMINDO SOBRE UMA ALMOFADA. MESMA POSIÇÃO DE ANTES DO BLACK-OUT)
FILHA_ Nossa, dormi no sofá! Igual quando era criança e a gente desmaiava de tanto brincar, na sala, com a TV ligada, a luz acesa.Antes era divertido, agora não! Será que seu Gumercindo veio pegar as coisas dela? Eu nem vi nada... Vida nova. Vou fazer a mudança hoje mesmo.
(PEGA O TELEFONE E UMA LISTA TELEFONICA)
Melhor, só vou levar minhas roupas no meu carro.Vou por pra alugar com tudo dentro. Os outros que resolvam o problema. Seu Gumercindo, por favor, coloque um anuncio bem grande que estou alugando esse apartamento, por favor, estou mudando agora. Por favor, não me crie mais problemas. Apenas faço o que estou pedindo. Sim, pode anunciar no jornal, mas coloque o seu numero de telefone e não o meu. Eu pago depois. O preço de mercado, o que o senhor quiser. Desde que alugue logo. Ah, e anuncie o carro dela também, única dona, mulher idosa, põe assim que vende mais rápido e com preço melhor. Obrigada. (BATE O TELEFONE)



FIM

SUGESTÕES, CRITICAS, AUTORIZAÇÕES:
texto de LICA NEAIME
TEL: (11) 37313666
END:R. Gastão do Rego Monteiro, 368_ Jardim Bonfiglioli- Capital _S.P.
CEP:05594-030
E-MAIL:licaneaime@ig.com.br
Como não sou filiada à SBAT todos os meus textos são registrados na BIBLIOTECA NACIONAL e autorização para montagens ou leituras podem
ser feitas diretamente com a autora ou no Departamento Jurídico da Cooperativa Paulista de Teatro


Biografia:
Formada pela em Artes Cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da USP, atriz, bailarina, cenógrafa, figurinista, bonequeira, entre tantas outras atividades. Ganhou os prêmios: Molière, Mambembe, Governador do Estado e Mutirão, por textos infanto-juvenis. Dramaturgia. Ganhou os prêmios: Molière, Mambembe, Governador do Estado e Mutirão, por textos infanto-juvenis. SUGESTÕES, CRITICAS, AUTORIZAÇÕES: texto de LICA NEAIME TEL: (11) 37313666 END:R. Gastão do Rego Monteiro, 368_ Jardim Bonfiglioli- Capital _S.P. CEP:05594-030 E-MAIL:licaneaime@ig.com.br Como não sou filiada à SBAT todos os meus textos são registrados na BIBLIOTECA NACIONAL e autorização para montagens ou leituras podem ser feitas diretamente com a autora ou no Departamento Jurídico da Cooperativa Paulista de Teatro Os alunos da Escola Célia Helena têm prévia autorização de montagem apenas me informando a data da estréia e da temporada.
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