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Metal Nos Olhos
Solidão mitológica
Anderson F. Morales

De todas as noites frias que passei em meu casebre à beira do mar, nenhuma parecia tão árida quanto as que vivenciei por último. Eu já havia me acostumado com a falta de calor humano à minha volta há muito tempo e já não me sentia oprimido pela solidão desde que vi os últimos rostos da primavera do ano passado. Nada faço além de produzir para o meu sustento. Tenho minha pequena horta nos fundos de minha casa, duas vacas que me produzem algo de leite, uma filha da outra, dois bois, um pequeno galinheiro e um barco de pesca. Um serviço cansativo que, por sua monotonia me permite pensar em coisas variadas. Como acordo cedo, utilizo o resto do meu dia para lembrar de meus sonhos. Se onde vivo é a liberdade, meus sonhos são a prisão. Uma vida indecifrável de sonhos que significam algo que me atormenta, talvez o anúncio da proximidade daquela que tantos temem; sonhos que viram pesadelos sem qualquer anúncio. Passo certos momentos do dia quase catatônico, vivendo acordado os sonhos da noite anterior. Mesmo os mais apavorantes, recebem alguma atenção. Nunca viajei muito além do casebre onde moro, porém em sonhos vejo lugares que sei que nunca estive, mas que tem detalhes preciosos que certamente existem em algum lugar. Mesmo que o meu mundo não compreenda muita coisa além da linha do horizonte que vejo todos os dias, sei que há algum lugar igual a que sonho. Mesmo tendo a possibilidade de pegar meu barco e remar ao infinito, não me preocupo em sair daqui. Se Deus me colocou aqui, é porque não me quer em outro lugar.

      O único afazer que me retira um pouco deste turbilhão de pensamentos é a pesca. Sempre procuro me demorar mais neste serviço, pois sinto um prazer indescritível. Aguardo pacientemente com a linha na mão, imaginando as pequenas vidas que correm o risco de serem afetadas por um pequeno pedaço de metal retorcido. No momento em que a linha treme, em que sinto que a agitação da vida está próxima das minhas mãos, um arrepio percorre meu corpo e se coloca no meu ventre; o peixe está condenado. Puxo vagarosamente a linha para manter a vida sob meu controle até ver aquela cabeça prateada e reluzente emergir das águas. Aqueles olhos que parecem já estar sem vida me encaram, estalados, sem poder transmitir o medo que se passa por seu corpo. Tenho a vida em minhas mãos e aos poucos posso senti-la esvaindo por entre meus dedos. O peixe está morto em meu barco e eu fui o responsável por isso. Algo como uma sensação de poder rebate em meu cérebro. Sou o verdugo e não a vítima.

      Mesmo todas minhas sessões de algoz não me prepararam para as últimas noites que passei. Não conseguia fechar os olhos sem sentir uma enorme negrura em torno de mim. Mesmo com a luz do lampião acesa, a cada momento que adormecia, via somente sombras negras e não aquela escuridão abrandada pela pouca claridade que passa através das pálpebras. Atribui isso ao cansaço do dia anterior, mesmo que este tenha sido igual a todos os outros. Ainda assim passava noites em claro.

      Certo dia, na hora do almoço me veio à porta um senhor à procura de algum serviço. Passo sempre alguns meses sem ver um rosto humano e esperava que eles continuassem iguais, porém vi que estava enganado. Não sei que quantidade este homem representava da raça humana, mas é algo que nem em sonhos eu esperava. Era um homem pequeno, de certa idade mas bem conservado. Por assim dizer, era um jovem de cabelos brancos; cheio mas não corpulento; bochechas rubras, qual maçãs; olhos miúdos piscavam contínua e tristemente; sobre a cabeça esbranquiçada ostentava um pequeno chapéu de três bicos. Debaixo do brilhante manto amarelo, de muitas golas, envergava anacrônica roupa de próspero negociante holandês. Sua voz era fraca e asmática, às vezes quase lacrimosa, mas suas maneiras eram graves e comedidas, como convém a um negociante holandês. Entretanto essa gravidade mais parecia forçada que natural; fez contraste marcante com os olhos perspicazes e inquietos e com a mal reprimida agitação dos braços e pernas.

      Tal comerciante veio à mim com uma proposta para transportar uma carga das costas da Frilândia às Ilhas Brancas. Dizia ele me pagar em ouro, uma boa quantia. Ah, o ouro. Este metal que produz um efeito nos humanos igual ao que o anzol produz nos peixes. Algo me dizia que eu estava indo à minha perdição, mas não conseguia tirar os olhos de pequenas argolas retorcidas que o holandês tirava de uma pequena bolsa de couro atada à sua cintura.

      O frio dos dias anteriores não me assombrou e aceitei tal serviço com prontidão. Na noite seguinte, combinamos de nos encontrar no barco, onde eu, já com meus bolsos cheios de ouro, aguardaria o holandês com a carga. À hora combinada, ele apareceu no local. Parecia vir sozinho, sem nenhuma carga, mas não pude ter certeza pois uma densa neblina cobria o lugar e se não fosse pela localização da lua, eu não saberia chegar até as Ilhas Brancas. O barco foi indo balançado pelas ondas, mas, à medida que a lua cheia ia surgindo, senti-o mais pesado e aprofundando-se gradualmente na água. Certificado por esta circunstância de que os passageiros já se acham a bordo, comecei a remar, afastando-me da costa com minha carga. Como tinha sido nas últimas noites, a escuridão me abraçava de uma forma diferente, enquanto que o frio incomum para a época rondava minha alma. Para esquecer tudo isso, apertava uma das argolas de ouro que mantive em minha mão. Minha confiança no ouro me impediu de desconfiar do homem. O frio aumentava em meu coração e a escuridão mantinha sua negrura incessante apesar da lua cheia. Perscrutando ao máximo, nada conseguia distinguir além de nuvens de vapor, que se desfazem aqui e acolá, entrelaçando-se sem tomar formas definidas. Procurei ouvir atentamente, mas nada além de sussurros chegava aos meus ouvidos. Concentrei-me nos remos até sentir que a neblina se dissipava e estava próximo das Ilhas Brancas, porém minha calma se manteria se a visibilidade se mantivesse prejudicada. Deparei-me com meu barco completamente vazio. Meu primeiro pensamento fora que os passageiros tivessem caído do barco durante a neblina. O susto foi maior ao perceber que o peso do barco continuava o mesmo, comprovando que meus passageiros ainda estavam comigo.

      Assim que o barco aportou nas Ilhas Brancas, o tal holandês me aguardava com uma pequena lista, no qual ele leu alguns nomes. A cada nome que lia, o barco emergia gradualmente da água. Nada em minha vida havia me preparado para tal momento. Acabara de prestar um serviço a não outra pessoa senão o próprio Caronte, que, mesmo vivendo no exílio após a vinda do cristianismo, continuava a entregar seus mortos a Hades.

      Meus dias de algoz haviam terminado. Meu nome era o último da lista.


Biografia:
Escritor em nível de formação desde 2000. Estudioso de Borges e partidário deste mestre, tenta, em vão, escrever obras de literatura fantástica na linha borgiana. Além da influência platina, apresenta uma personalidade heterônima, postando contos com outros nomes. Atividades complementares como professor de literatura e técnico em perícias criminais.
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