Login
E-mail
Senha
|Esqueceu a senha?|

  Editora


www.komedi.com.br
tel.:(19)3234.4864
 
  Texto selecionado
Mázinho
Cláudio Thomás Bornstein


Moro na encosta de um morro. A rua que passa defronte à minha casa avança sobre a escarpa, sustentada por uma espécie de escoramento de concreto que forma um abrigo contra sol e chuva. Tal oportunidade não podia passar despercebida à legião de "sem-teto" que habita a nossa cidade maravilhosa. Costuma utilizar o refúgio tanto o queimador de "crack" como o cidadão honrado à cata de um pernoite barato. Com alguns a gente puxa dois dedos de prosa, claro, a conversa sempre termina com um pedido de empréstimo, mas aí a gente sai fora e desconversa.

     
Entre os moradores do abrigo da rua, teve um casal que passou lá muito tempo. Ela tinha sido mulher bonita e vistosa. No entanto, quando a conheci já estava acabada apesar dos trinta e poucos anos. Muita cachaça, muita briga, tinha perdido os dentes da frente, e, para piorar, acidentou-se, quebrou a perna, engessou, mas numa das brigas, quebrou o gesso e ficou assim mesmo, capengando. O casal volta e meia pedia para usar a água da minha torneira, depois passaram a pedir álcool para o fogão, algumas vezes dei, mas depois, desconfiado que a serventia do álcool era outra, passei a negar. Um dia sumiram. Vim a encontrá-los, meses depois, já separados. Ambos tinham parado de beber. Ela tinha uma filha com a qual, no entanto, não se dava. De qualquer maneira tinha arrumado um canto para ficar. Ele tinha arrumado um lugar de toma-conta de um templo evangélico e, ainda de quebra, tinha montado uma barraquinha onde vendia beiju. Estava irreconhecível, camisa de manga comprida, calça com vinco e óculos escuros. Quando, depois de alguma hesitação, o cumprimentei, não me deu confiança. Apenas acenou com a cabeça, respeitoso.

     
Mas a história que eu quero aqui contar é a do Mázinho, o "sem-teto" com o qual, de longe, maior amizade fiz. Mázinho tinha sido mecânico de automóvel e, segundo me disseram, dos mais habilidosos. Quando o conheci ainda carregava uma maleta com algumas ferramentas com as quais fazia pequenos reparos na vizinhança garantindo assim os tragos da branquinha que era a sua perdição. Depois, com o tempo, as ferramentas dispersaram-se e viraram marcas da sua "via crúcis". Ficou uma chave de fenda ali, no local que um tropeço o levou ao chão e um alicate acolá, no pé do poste que por algum tempo o sustentou.

     
Mazinho era um bom papo. Inteligente, falava e desenvolvia bem os pensamentos. Tinha algo da ingenuidade de uma criança e era provido de um humor terno, meio encabulado. Ria principalmente das suas desventuras. Dei-lhe muitos conselhos. Não seguiu nenhum.

     
Faz poucos dias o encontrei. Parou de beber e deve estar pela casa dos setenta, para contestar aqueles que, como eu, diziam que ele não passaria dos cinqüenta. “Como é Mázinho, e a vida?” foi o que eu disse à guisa de cumprimento. “Vou levando” foi a resposta e desandou a descrevê-la. Mora em Caxias na casa de uma filha com a qual, no entanto, não se dá. “Vivem todos às minhas custas” foi o comentário que fez. Mázinho é aposentado e sustenta a filha mais velha, o genro que é viúvo com duas filhas do primeiro casamento e, de quebra, outra filha mais nova, deficiente mental. “Todo mundo desempregado. E ainda por cima me tratam mal, me desrespeitam. Até a geladeira que eu comprei meu genro vendeu, para arrumar uns trocados.”

Para ver se desanuviava o ambiente perguntei: “E o que é que você está fazendo por aqui?” “Vim passear.” “Vem sempre?” “Não, só de vez em quando.” Mázinho contou que por uns dias tinha arrumado um lugar onde ficar, numa comunidade vizinha. “Lá todo mundo me conhece. Até arrumei um prato de comida hoje.” Não consegui me conter e tasquei outro conselho: “Mas se em Caxias está tão ruim, porque é que você não muda para cá? Traz a aposentadoria, aluga um barraco e, de quebra, se livra da parentada.” Mazinho olhou para o chão e disse encabulado: “Não dá mais. Estou muito velho. É melhor eu ir levando.” Deu uma risada e, para arrematar, me pediu dois reais para um café.

Depois em casa eu pensei. Que é que eu entendo da vida do Mázinho? Na comunidade arrumam um prato de comida hoje, mas e depois? E quem segura a barra se ele ficar doente? E as filhas dele, as netas, como é que ficam? E aquela que é doente mental, quem cuida? Depois, as brigas na família muitas vezes não são problema, são solução. Melhor mesmo era ir levando....

Cláudio Thomás Bornstein


Biografia:
Para mais informações visite o blog CAUSOS em www.ctbornst.blogspot.com.br. Querendo fazer comentários, mande e-mail para ctbornst@cos.ufrj.br
Número de vezes que este texto foi lido: 52984


Outros títulos do mesmo autor

Crônicas Ele não era grande coisa... Cláudio Thomás Bornstein
Artigos Apesar de... Cláudio Thomás Bornstein
Crônicas Simpatia e amor Cláudio Thomás Bornstein
Crônicas Casamento moderno Cláudio Thomás Bornstein
Artigos Milho e soja transgênicos: envenene-se o planeta! Cláudio Thomás Bornstein
Poesias Pôr do sol ou morte, dor e amor Cláudio Thomás Bornstein
Poesias Reflexões na praia de Ipanema Cláudio Thomás Bornstein
Crônicas Problemas de Comunicação Cláudio Thomás Bornstein
Poesias Poesia: garimpo e lapidação Cláudio Thomás Bornstein
Crônicas Faca, fio e genitália perdida Cláudio Thomás Bornstein

Páginas: Primeira Anterior Próxima Última

Publicações de número 61 até 70 de um total de 80.


escrita@komedi.com.br © 2024
 
  Textos mais lidos
Linda Mulher - valmir viana 53638 Visitas
Um conto instrumental - valmir viana 53634 Visitas
A calça preta - Condorcet Aranha 53630 Visitas
A margarida que falou por 30 dias - Condorcet Aranha 53593 Visitas
MEDIUNIDADE ONIRICA - Henrique Pompilio de Araujo 53568 Visitas
Menino de rua - Condorcet Aranha 53568 Visitas
Em briga de marido e mulher - Ana Mello 53555 Visitas
Jogada de menino - Ana Maria de Souza Mello 53552 Visitas
Pedido de Amigo - J. Miguel 53540 Visitas
Minha mãe - Ivone Boechat 53530 Visitas

Páginas: Primeira Anterior Próxima Última