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Cláudio Thomás Bornstein


Ele tinha sido marinheiro. Ela era uma desgarrada.

Ele viajara pelo mundo todo, Europa, África e Ásia. Agora que estava velho, resolvera se fixar em Portugal. Sua bússola, caída, sem serventia, já não dava mais conta do recado, não mais conseguia apontar pro norte. Sem rumo, vagava perdido pelos becos da cidadezinha, de boteco em boteco.

Ela nunca tinha saído do Brasil. Vivia na periferia da cidade grande. Tinha enfrentado muita tormenta, ondas altas tinham lhe arrebentado o casco, ventos fortes lhe rasgado as velas. Tinha ainda uns restos de beleza, a boca ainda conservava um pouco do frescor de outrora e umas sobras de mocidade teimavam em ficar.

Conheceram-se pela internet. Ele se interessara pela sua boca vermelha, ela pelos seus cabelos brancos. De conversa em conversa, de contato em contato a coisa foi tomando corpo, foi esquentando. Era uma indireta aqui, uma expressão de duplo sentido ali, uma insinuação picante mais adiante.

Marcaram uma conversa por "Skype". Ela tinha retocado a boca com batom e ele tinha comprado camisa nova. De inicio encabulados, se estranhando, estranhando o sotaque e o linguajar, devagar, aos poucos, foram se soltando. Acabaram em sorrisos, sorrisos de um e do outro lado do Atlântico. Tantos foram os sorrisos que o mar, que estava no meio, se contagiou e também sorriu. Sorrindo foi se enchendo até que transbordou e, por instantes, suas vidas encheu de azul, estrelas e conchinhas.

Marcaram um encontro. Ela iria a Portugal. Não tinha nada a perder. Sua vida era uma ruína. Trabalho muito, dinheiro pouco. A noite, no barraco, só ela, a televisão e o tiroteio. No pior dos casos, fazia uma viagem e ia conhecer o velho mundo, foi o que pensou.

Ele perdia menos ainda. Era um monte de ossos, cheio de dores e mazelas e os seus trapos quem ia querer? Estava mesmo à espera do caixão. E quem sabe, com uma boca fresca a sua bússola voltava a apontar para o norte?

Rasparam os cofres, juntaram os trocados e ela comprou uma passagem. Só de ida porque comprar passagem de volta seria de mau agouro. Como combinado, ele foi esperá-la no aeroporto de Lisboa. Levava nas mãos um ramalhete de flores vermelhas para combinar com a boca dela. À camisa nova, a mesma da conversa por "Skype", juntara uma calça nova e, assim, todo de novo, despistava o que de velho havia por trás, ou, se preferirem, por baixo.

Braço em braço foram para a cidadezinha. O primeiro namoro foi na pracinha. Havia primeiro que se conhecer, testar a química, esquentar os motores. Os cochichos e os olhares dos passantes não os incomodavam. A ela não incomodava porque não era dali, não tinha mesmo nada a perder. Ele também não perdia nada porque já perdera tudo.

No início, foram só encantos e prazeres. Ele, com a boca vermelha, tinha até reencontrado o norte da sua velha bússola. Ela, com tudo se encantava, os velhos becos tão diferentes do intrincado de ruelas sujas com as quais estava acostumado, o frescor da noite tão melhor do que o bafo quente do ventilador.

Depois, como era de se esperar, o fogo amainou e a paixão perdeu a força. Ela, rapidamente se conformou. Arrumava a casa, lavava a roupa, preparava o almoço e a janta. Do supermercado para casa, de casa para o supermercado, era o que tinha restado da convivência a dois. Na verdade, muito vivida e experimentada, já contara com este desenrolar da história porque homem nenhum não presta. No inicio é assim, olhar aceso e promessas. Depois, conseguido o que se queria, perde-se o interesse ou o tesão, dá no mesmo, arruma-se outra e a história recomeça.

Com o que ela não contara era que aquilo, exatamente aquilo, exatamente assim, acontecesse com ela. Porque o gajo era um velho que não dava mais para nada, ele e a sua velha bússola. Que o convívio a dois fosse só no supermercado, isto ela estava disposta a aturar, bem como a vidinha modorrenta da cidadezinha. Não ia arrumar outro, que ela não era louca nem boba de dar a ele o pretexto. Ia mesmo era ficando, aproveitando o encosto para nada fazer porque fazer nada era bem melhor do que aquela loucura que ela estava acostumada no Brasil, oito horas no batente, quatro sacolejando no ônibus, e, de noite, tiroteio.

O que ela não contara é que ele, ainda por cima, a traísse. Velho safado! Para que tinha mandado chamá-la tão de longe? Para isso? Se era para não fazer nada, isto ela aceitava, que ninguém é de ferro e mesmo o ferro também cansa. Que ele fosse um velho imprestável, isto ela tinha imaginado, estava nos planos, ia se levando, tudo bem. Mas zombar assim na cara dela, ela que tinha largado tudo, cheia de esperança? Arrumar outra, assim nas barbas e fazer com a outra aquilo que ele se recusava a fazer com ela?

Se ele fosse jovem ela entendia, podia até aceitar. Que quisesse outra, mais bem acabada, isto era compreensível. Mas aquele caco velho que não prestava mais para nada, que devia era agradecer que alguém se dignasse a olhar para ele, traição da parte de um velho imprestável era o supra-sumo da zombaria, do menosprezo, do pouco-caso. Ele mais merecia pena e compaixão e pena e compaixão era o que ela mais tinha para dar. Mas, qual nada, o bicho que ela imaginava rastejando, mal ela virava as costas, se levantava e lhe mordia os calcanhares?

Bem que ela desconfiara daquelas ausências longas nas tardes compridas em que ela ficava sozinha em casa. Tinha até pressentido algo diferente nos olhares lançados de soslaio, nos longos silêncios e na expressão meio amuada que tinha se tornado uma constante.

Não disse nada. Não ia adiantar, sabia como terminavam estas histórias. Além disso, voltar para o Brasil, agora que ela tinha fincado pé, tomado gosto? O que é que ela ia dizer para os vizinhos e parentes que a tinham advertido para não ir? Aquela tinha sido a última cartada.

Esperou ele adormecer que o primeiro sono é o mais profundo. Foi até a cozinha e pegou a faca longa, ponta afiada. Ergueu-a no alto, as duas mãos segurando o cabo para ter mais força e mais impulso. Apertou os lábios, fixou os olhos e, num repente, cravou fundo a lâmina no pescoço. À medida que o instrumento afundava ia se lembrando. Um a largara grávida sabe-se lá onde andava a cria que ela não criara. Outro lhe negara o prazer que ela tanto esforço fizera em lhe proporcionar. O terceiro a trocara pela bebida, do quarto ela só recebera mesmo era porrada e o quinto voltava cada dia mais tarde do trabalho, sabe-se lá o que lá fazia. As facadas eram para todos eles. Uma para o João, outra para o Mariozinho, aquele filho de uma égua que a traíra na primeira semana, outra para o Zeca que lhe levara o dinheiro todo, outra ainda para o Mané que a deixara só com a sua paixão. Esfaqueava todos eles, esfaqueava tudo.

Não demorou muito para a cidadezinha tomar conhecimento porque ali, onde nada acontecia, aquele era um acontecimento. Amanheceu o dia com o carro da polícia parado defronte ao portão da casa. Os tiras foram gentis e circunspectos como requer a situação. Não a empurraram nem a algemaram porque não precisava. Foi solta no banco de trás, vestido cinza, olhar perdido ao longe. Olhares curiosos, porém discretos a acompanhavam. O que se passava por trás veio condensado na primeira página do jornal: "prostituta brasileira assassina cidadão português". Foi a lembrança que dela restou.


Biografia:
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