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TRIBUTO À MARCHA RANCHO
Um Estilo Musical que Não Morre Nunca
Bete Bissoli

Resumo:
Enquanto as marchinhas, via de regra, têm letras curtas, a letra da marcha-rancho geralmente é mais longa e os temas melódicos e poéticos são mais dolentes. Certamente é o mais lírico dos gêneros carnavalescos.

TRIBUTO À MARCHA-RANCHO

Bete Bissoli

A história do carnaval brasileiro começa em 1835, portanto 176 anos atrás. Os bailes de salão, na época, eram ao som de xote, polca, valsa, quadrilha, mazurca, charleston, enfim, ritmos europeus que, com o tempo, foram abrasileirados.
Em 1907, na Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, aconteceu o primeiro corso, em luxuosas carruagens. Ali começava a se esboçar o modelo para o atual carnaval de rua no Brasil.
É impossível falar dos festejos de Momo sem falar da compositora, pianista e maestrina carioca Chiquinha Gonzaga (1847/1935), e isso se justifica, pois ela compôs a primeira marcha carnavalesca, “Ó Abre Alas”, uma marcha-rancho feita em 1899, para o carnaval de 1900, especialmente para o cordão Rosa de Ouro, do Rio de Janeiro.
Chiquinha foi a primeira mulher a se destacar na nossa música popular. Em 70 anos de atividade artística fez cerca de 2 mil canções, principalmente para as 77 peças teatrais que musicou, e “passeou” por todos os gêneros musicais com extrema competência e talento.
Além de pioneira na produção carnavalesca, ela também é merecidamente considerada pioneira na emancipação feminina no Brasil, tendo sido a primeira mulher a reger uma orquestra em nosso país. Teve participação ativa no movimento pela libertação dos escravos, inclusive vendendo partituras de suas músicas, de porta em porta, para arrecadar dinheiro para a causa e, antecipando-se à Lei Áurea, chegou a comprar a liberdade de um escravo músico.
Batalhadora incansável, teve grande desempenho na campanha pela Proclamação da República, e no campo artístico não deixou por menos: é uma das fundadoras da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT), que se destina à proteção dos direitos autorais dos escritores.
Foi ela também quem criou e encabeçou a campanha para arrecadar fundos para construir uma nova sepultura para Francisco Manuel da Silva, autor da melodia do Hino Nacional Brasileiro (a letra é de Joaquim Osório Duque Estrada).
Chiquinha morreu na antevéspera do carnaval de 1935, aos 89 anos. Entre seus maiores sucessos estão “Lua Branca”, “Corta-Jaca” e “Atraente” sem contar naturalmente com “Ó Abre Alas”, música que se perpetuou, pois é mais que centenária (foi feita há 110 anos) e deu origem, alguns anos depois, à marchinha carnavalesca.
A marcha-rancho tem o mesmo compasso binário da marchinha mas, diferentemente desta, seu andamento é mais lento, cadenciado, e a linha melódica é mais elaborada. Enquanto as marchinhas, via de regra, têm letras curtas, a letra da marcha-rancho geralmente é mais longa e os temas melódicos e poéticos são mais dolentes. Certamente é o mais lírico dos gêneros carnavalescos.
A cantora e atriz Soraya Ravenle, intérprete de “Pra Carmen”, marchinha de minha autoria feita em homenagem a Carmen Miranda e campeã do concurso da Fundição Progresso/Fantástico (TV Globo), em 2007, participou como compositora no concurso do ano passado, com uma marcha-rancho intitulada “Dançando o Mar”. Vale a pena conferir a música da Soraya no www.youtube.com. É só pôr Soraya Ravenle-Dançando o Mar, na busca.
Este ano, eu também estou “estreando” em termos de marcha-rancho: fiz uma com o título “Palhaços do Amor”, que tem como pano de fundo Colombina, Arlequim e Pierrô, o triângulo amoroso mais famoso e tema recorrente em músicas de carnaval. Para ouvir a minha música é só ir no www.youtube.com e colocar Bete Bissoli-Palhaços do Amor, na busca.
Embalando paixões fulminantes, encontros, desencontros e reencontros, as marchas-rancho se eternizaram na memória e na alma do povo brasileiro. Vamos rever algumas delas, as consideradas obras-primas e clássicos do repertório carnavalesco.
     “Ó Abre Alas” (Chiquinha Gonzaga): Ó abre alas que eu quero passar/Ó abre alas que eu quero passar/Eu sou da Lira, não posso negar/Ó abre alas que eu quero passar/Ó abre alas que eu quero passar/Rosa de Ouro é quem vai ganhar.
“As Pastorinhas” (João de Barro/Noel Rosa): A estrela d’alva/No céu desponta/E a lua anda tonta/Com tamanho esplendor/E as pastorinhas/Pra consolo da lua/Vão cantando na rua/Lindos versos de amor/Linda pastora/Morena, da cor de Madalena/Tu não tens pena/De mim, que vivo tonto com o teu olhar/Linda criança/Tu não me sais da lembrança/Meu coração não se cansa/De sempre e sempre te amar.
“Estrela-do-Mar” (Marino Pinto/Paulo Soledade): Um pequenino grão de areia/Que era um pobre sonhador/Olhando o céu viu uma estrela/E imaginou coisas de amor ô-ô-ô/Passaram anos, muitos anos/Ela no céu, ele no mar/Dizem que nunca o pobrezinho/Pode com ela encontrar./Se houve ou se não houve alguma coisa entre eles dois/Ninguém soube até hoje explicar/O que há de verdade é que depois, muito depois/Apareceu a estrela-do-mar.
“Máscara Negra” (Zé Kéti/Hildebrando Matos): Tanto riso/Oh, quanta alegria/Mais de mil palhaços no salão/Arlequim está chorando pelo amor da Colombina/No meio da multidão./Foi bom te ver outra vez/Tá fazendo um ano/Foi no carnaval que passou/Eu sou aquele Pierrô/Que te abraçou/Que te beijou, meu amor/Na mesma máscara negra que esconde teu rosto eu quero matar a saudade/Vou beijar-te agora/Não me leve a mal/Hoje é carnaval.
“Bandeira Branca” (Max Nunes/Laércio Alves): Bandeira branca, amor/Não posso mais/Pela saudade que me invade/Eu peço paz./Saudade, mal de amor, de amor/Saudade, dor que dói demais/Vem meu amor/Bandeira branca/Eu peço paz.
“A Lua É dos Namorados” (Klécius Caldas/Armando Cavalcanti): Todos eles estão errados/A lua é dos namorados/Todos eles estão errados/A lua é dos namorados/Lua, oh lua/Querem te passar pra trás/Lua, oh lua/Querem te roubar a paz/Lua que no céu flutua/Lua que nos dá luar/Lua, oh lua/Não deixe ninguém te pisar.
“Até Quarta-Feira” (Humberto Silva/Paulo Sette): Este ano não vai ser igual àquele que passou/Eu não brinquei/Você também não brincou/Aquela fantasia que eu comprei ficou guardada/E a sua também ficou pendurada/Mas este ano, tá combinado/Nós vamos brincar separados/Se acaso meu bloco encontrar o seu/Não tem problema, ninguém morreu/São três dias de folia e brincadeira/Você pra lá, eu pra cá/Até quarta-feira/Lá, lá, lá, lá, lá, lá/Lá, lá, lá, lá, lá, lá/Lá, lá, lá, lá, lá, lá, lá, lá, lá.
“Confete” (David Nasser/Jota Júnior): Confete, pedacinho colorido de saudade/Ai, ai, ai, ai/Ao te ver na fantasia que usei/Confete, confesso que chorei./Chorei porque lembrei o carnaval que passou/Aquela Colombina que comigo brincou/Ai, ai, confete/Saudade do amor que se acabou.
“Rancho da Praça Onze” (J. R. Kelly/Francisco Anísio): Esta é a Praça Onze tão querida/Do carnaval, a própria vida/Tudo é sempre carnaval/Vamos ver desta praça a poesia/E sempre em tom de alegria/Fazê-la internacional./A praça existe/Alegre ou triste/Em nossa imaginação/A praça é nossa/E como é nossa/No Rio quatrocentão./Este é o meu Rio boa praça/Tantas praças que ele tem/Vamos, da zona norte à zona sul/Deixar a vida toda azul/Mostrar na vida o que faz bem/ Praça Onze, Praça Onze.
“A Lua É Camarada” (Klécius Caldas/Armando Cavalcanti): A noite é linda nos braços teus/É cedo ainda pra dizer adeus/A noite é linda nos braços teus/É cedo ainda pra dizer adeus/Vem, não deixes pra depois, depois/Vem, que a noite é de nós dois, nós dois/Vem, que a lua é camarada/Em teus braços quero ver/O sol nascer.
“Malmequer” (Newton Teixeira/Cristóvão de Alencar): Eu perguntei a um malmequer/Se meu bem ainda me quer/E ele então me respondeu que não/Chorei, mas depois eu me lembrei/Que a flor também é uma mulher/Que nunca teve coração./A flor mulher/Iludiu meu coração/Mas, meu amor/É uma flor ainda em botão/O seu olhar/Diz que ela me quer bem/O seu amor/É só meu, de mais ninguém!
“Dama das Camélias” (João de Barro/Alcyr Pires Vermelho): A sorrir você me apareceu/E as flores que você me deu/Guardei no cofre da recordação/
Porém, depois você partiu/Pra muito longe e não voltou/E a saudade que ficou/
Não quis abandonar meu coração/A minha vida se resume/Ó, Dama das Camélias/
Em duas flores sem perfume/ Ó Dama das Camélias.
“Primavera no Rio” (João de Barro): O Rio amanheceu cantando/Toda a cidade amanheceu em flor/E os namorados vêm pra rua em bando/Porque a primavera é a estação do amor./Rio, lindo sonho de fadas/Noites sempre estreladas e praias azuis./Rio, dos meus sonhos dourados/Berço dos namorados/Cidade da Luz/Rio, das manhãs prateadas/Das morenas queimadas ao brilho do sol/Rio, é cidade desejo/Tens a ardência de um beijo em cada arrebol.
“Rasguei Minha Fantasia” (Lamartine Babo): Rasguei a minha fantasia/O meu palhaço cheio de laço e balão/Rasguei a minha fantasia/Guardei os guizos no meu coração/Fiz palhaçada o ano inteiro sem parar/Dei gargalhada com tristeza no olhar/A vida é assim, a vida é assim/O pranto é livre, eu vou desabafar/Tentei chorar, ninguém no choro acreditou/Tentei amar e o amor não chegou/A vida é assim, a vida é assim/Comprei uma fantasia de Pierrô.
Seguindo os passos de “Ó Abre Alas”, um incontável número de belíssimas marchas-rancho foi surgindo. A maior parte dos compositores tem em seu repertório pelo menos uma música no gênero. E o melhor de tudo: elas continuam vivas, dentro ou fora dos festejos carnavalescos.
Alguns outros exemplos que se fixaram na memória dos amantes desse estilo musical são: “Estão Voltando as Flores” (Paulo Soledade); “Rancho das Namoradas” (Ary Barroso/Vinicius de Moraes); “Marcha da Quarta-Feira de Cinzas” (Vinicius de Moraes/Carlos Lira); “Rancho das Flores” (J. S. Bach/Vinicius de Moraes); “Bloco da Solidão” (Evaldo Gouveia/Jair Amorim); “O Trovador” (idem); “Rancho da Goiabada” (João Bosco/Aldir Blanc); “Porta Estandarte” (Geraldo Vandré/Fernando Lona); “Noite dos Mascarados” (Chico Buarque); “Avenida Iluminada” (Newton Teixeira/Brasinha); “Cidade Brinquedo” (Silvino Neto/Plínio Bretas); “Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua” (Sérgio Sampaio) e “A Praça” (Carlos Imperial).


Este artigo foi publicado no jornal A Tribuna de São Pedro, no carnaval de 2011


Biografia:
Bete Bissoli Compositora paulista premiada em vários festivais de MPB, é uma cancionista. Em geral faz melodia e letra, mas tem algumas parcerias. Teve desde criança influência das reuniões realizadas na casa de seus pais, em São Pedro, onde rolavam chorinho, seresta, música de raiz e os sucessos da época áurea da Rádio Nacional do Rio de Janeiro. A música internacional também fez sua cabeça. Mais tarde, foi fisgada pela bossa nova. Em fins de 80, foi aluna de violão do compositor e arranjador Hermelino Neder, que a incentivou a mostrar suas canções. Participou de festivais como FAMPOP, em Avaré (primeiro lugar com o choro-canção Ela, em parceria com Ítalo Perón); Festival Nacional de MPB do Carrefour, (primeiro lugar, com Nada a Ver, de sua autoria); MPB de Rio Claro (segundo lugar com Trenzinho Lento, em parceria com Carlinhos Veronezi) e finalista do Viola de Todos os Cantos, da EPTV (afiliada Globo), em 2006, com Alma Pantaneira, parceria com Carlinhos Veronezi, e em 2007, com Sou Violeiro e Cantador, dela. Tem músicas gravadas por Sandra Pereira, pelas duplas Lorito e Loreto, Moacyr e Sandra, Mazinho Quevedo e Soraya Ravenle. Sua marchinha Pra Carmen, uma homenagem a Carmen Miranda, interpretada pela cantora e atriz Soraya Ravenle, foi a campeã do II Concurso Nacional de Marchinhas Carnavalescas da Fundição Progresso/Fantástico, no Rio de Janeiro. A música faz parte do CD As Melhores Marchinhas Carnavalescas do Carnaval 2007, da Som Livre. Jornalista, Bete dedica-se também a pesquisas e criação de projetos musicais. O show Paulicéia Musicada, de sua autoria, desde 2001 vem sendo apresentado pelos cantores Moacyr e Sandra e em 2005 fez parte da Agenda Oficial das Comemorações dos 450 Anos da Cidade de São Paulo. Em junho de 2010, Bete Bissoli participou, com outros compositores, músicos e cantores da cidade de São Pedro, SP, do show Música, Poesia e Amigos, projeto aprovado pelo Proac (Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo). Em 2013 esse musical foi reapresentado em cidades do interior de São Paulo. O repertório de Bete passeia, sem preconceitos, entre o elaborado e o simples, o lírico e o contundente, o tradicional e o moderno, o nostálgico e o bem-humorado, o rural e o urbano. “Eu amo fazer música. Compor, pra mim, é respirar”, diz ela.
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