Éramos duas turistas aventureiras em Kho Pee Pee, duas mulheres sozinhas em um país cuja língua não falávamos.
Neste arquipélago, ao criar o mundo, Deus deve ter hesitado. Ali deveria ter sido o paraíso original, e ali, certamente, Eva, ocupada a se divertir nas águas mornas cheias de peixinhos coloridos, teria mandado a serpente passear, em nada curiosa pelos frutos proibidos, mesmo porque ali nascem frutas bem mais interessantes que maçãs. Talvez por isso o divino mestre guardasse esse local para deleite das futuras gerações de netinhos do bíblico casal. Afinal, não tendo nada a ver com o pecado de nossos ancestrais, nada mais justo que nós nos deleitemos, quando o salário permite, em locais paradisíacos.
Bem, a população é outra coisa, e, a princípio, não me pareceu tão paradisíaca assim.
Nosso barqueiro, por exemplo. O tailandês era feio, magro, desdentado. Em São Paulo, eu atravessaria a rua para não cruzar com ele. No entanto, minha amiga insistiu no tal passeio em ‘bote de cauda’, praticamente uma casquinho, que, por ser pequeno, pode aproximar-se de qualquer prainha, esgueirar-se por entre quaisquer recifes, e na qual teríamos a sensação dos navegantes primitivos a singrar os mares em busca de aventuras.
Minha amiga, já se percebe, é escritora. Eu, que a acompanho em suas maluquices, desconfio ter propensão ao suicídio. E disse a ela, alegremente, que, se um tsunami nos surpreendesse ali, morreríamos sorrindo, e que, sento todos nós condenados a morrer um dia, por que não escolher Kho Pee Pee como cenário?
Voltemos a nosso medonho barqueiro, que nem de longe desconfiava do pavor que me provocava seu desdentado sorriso. Ele ajeitou à sombra nossa água, e nos guiou oceano adentro em seu barquinho frágil.
Eu, tensa, não parava de pensar que, se ele resolvesse nos matar e jogar nossos corpos ao mar, ninguém saberia. E em meus pensamentos vinham históiras terríveis de turistas desaparecidos, assassinados pelos guias. Minha própria cidade, sendo turística, tinha uma crônica de assaltos capaz de alimentar os pesadelos mais estupendos, brutasi, apavorantes. E eu ali, estressada, ao lado de minha felicíssima e relaxada amiga, que, em um remanso entre penhascos isolados, mergulhou entre um cardume de coloridos peixinhos, a procurar por Nemo.
O barqueiro, que me convidava em vão a descer do barco, cruzou os braços e olhou para o alto dos penhascos, onde, observei, havia milhares de ninhos de andorinhas. O sol, parcialmente encoberto, deixava uma parte da baía na sombra, e a outra parte, dourada. A água transparente permitia que se enxergasse cada detalhe das pedrinhas do fundo, que, naquele local, era pouco profundo, e azul como as águas dos atóis. Enquanto eu me indagava se estávamos sobre pedras ou corais, debrucei-me, relaxei, mergulhei as mãos na água, e, então, para meu terror, o barqueiro aproximou-se, acocorou-se diante de mim, olhou dentro de meus olhos e sorriu:
- Este mundo é tão lindo!
O tom com que ele disse esta frase simples foi tão inesperado que me desarmei.
- Eu venho aqui todos os dias – continuou ele – Todos os dias vejo este mundo bonito. Amo meu trabalho.
A alegria dele me contagiou e fiquei de repente muito tranqüila, e pude sentir o silêncio por detrás do som do mar, do vento, do canto dos pássaros.
Eu me senti tão bela e pura como a paisagem ao redor, e cheia de ternura por ele, por minha amiga, e até mesmo desculpei-me pela tola pessoa que sou.
Este homem me ensinou a felicidade.
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