Quem possui terras enormes, sabe muito bem como acontece. Os parentes se cruzam e entrecruzam, enamoram e namoram, ou não namoram, mas que casam, casam, nem que seja na marra, de modo a que as terras herdadas de um patriarca-avoengo (desde talvez o cristão-novo João Ramalho e a índia Bartira...) e a produção atual, seja pecuária ou agricultura, permaneçam dentro da mesma família. PRIMA fica de olho no PRIMO (geralmente a iniciativa da conquista parte das mulheres, eternas bandeirantes) e depois vice-versa.
Interior de São Paulo, uns assinando MONTE e outros assinando SANTO. A prima MONTE desde pequena jurou ao primo SANTO que ELE pertenceria a ELA, custasse o que custasse. Ai se alguém tentasse impedir!
Hoje as mulheres ameaçam o homem com “certa faca serrilhada que corta rapidamente embutidos congelados diretos do freezer”. Ainda não existia isso - ELA possuía um canivete herdado da avó. Mil funções: podar as roseiras, cortar papel dobrado, fatiar bolo e queijo no piquenique (“estrangeirismo aqui, não!” - chamavam de convescote, palavra nacional), misturava café quente líquido e farelos de rapadura, principalmente servia como ‘registro de amor’, árvore marcada com dois corações cruzados e dois nomes. No caso deles, ANDRÉ e ANDRÉA, homenagem ainda ao avoengo ANDREI. E o bruto canivete seria a arma poderosa se houvesse traição dele após o casamento.
Embora num tempo muito antigo, ELA estudou interna em famoso e elitizante-granfinérrimo colégio de freiras da capital. Inteligente e estudiosa, conversara muitas vezes com o escritor crítico MONTEIRO LOBATO, voltou professora primária e no mínimo serviria para alfabetizar a caboclada local. ELA esbarrou na palavra (trouxe ideias modernas da “capitá”, como falavam) que não definia mistura racial nenhuma. Caboclo era todo mundo, desde que fosse empregado, muita ignorância, pouca higiene, pé no chão. Em dias, a mandona século XX exigiu calçados para todo mundo e tratamento respeitoso, e ganharam nome próprio, esquecido desde o registro e o batismo - José, Pedro, Epaminondas (ELA ainda admitiu Epa), Marina, Anita, Luísa etc.
O amor eterno (ou vício de...) era um rapaz de excelente aspecto e cultura, que num nepotismo político (desde 1500!) estudara para advogado no Rio de Janeiro, disputado pelo sexo feminino, mas tinha “dona”, com registro no tronco da árvore desde a infância. Namoro em todas as férias escolares, sempre.
Bom, pedido formal de noivado por poucos dias e finalmente oficializariam data de casamento, 6 de janeiro, a cidade engalanada para a Festa de Reis, tradicional folclore no país todo. O vestido de noiva estava no baú, prontinho.
O tio-padrinho chegou para o pedido. Elegante, terno aberto exibindo o colete de cetim prateado, relógio de algibeira, estreando botinas brilhosas. Licor de amora distribuído em cálices azuis, charutos para a ocasião, jornal Estado de São Paulo (fundado em 1875) que chegava semanalmente, os machos discutiram política, as estradas, o clima, o café, coelhos em nova criação...
Aí, tio começou o discurso nada progressista. Que as terras nunca seriam de outros, CASAL jovem com duas casas recentemente construídas de cada lado da cerca, móveis do melhor marceneiro da região, ELA seria uma MONTE SANTO................. Nisto, a NOIVA foi chamada, entrou por uma porta do imenso salão. NOIVO na varanda... feliz... entrou também. Olharam-se e se deram as mãos.
O pedido de noivado começava a ser feito, ELA mesma pessoalmente ensaiara tudo o que o tio deveria falar, só faltava que o pai da moça desse a palavra final. Aconteceu o inverso. Quando ELE, tio-sogro, um tanto bêbado, percebeu melhor a “boniteza” da moça, muito branca, meio rosadinha, olhos claros, corpo largo com jeito de “farta parideira”, mudou o discurso e pediu a noiva para si próprio, “um pobre coitado, viúvo há muitos anos, cama fria, sem mulher para administrar a caboclada feminina no serviço doméstico”. Enxugou até uma (fingida!) lágrima. O pai dela, em choque, emudeceu literalmente. Passou mal, a cabeça tombou para o lado, bebeu água, um gole de pinga, recuperou-se, ainda caladão...
As mulheres mais velhas estremeceram, pensamentos voaram, imaginavam a noiva acorrentada, ameaçada com arma de fogo, dizendo “sim” à pergunta do padre. As mulheres mais jovens riram, discretas, poucas se imaginando na caça ao jovem galã solteiro, a maioria sabendo que o “jogo” iria virar: ANDRÉA, líder e revolucionária desde menininha. E virou em poucas horas!
ANDRÉ e ANDRÉA sempre se comunicaram no olhar. As tais de “almas gêmeas” ou “metades da laranja”? Não sei.
Tudo tecnicamente marcado, coreografia como se fosse no Theatro Municipal localizado na praça Ramos de Azevedo, em São Paulo - capital. ANDRÉA largou a mão de ANDRÉ e ofereceu o rosto para o agora-noivo, ex-tio-padrinho-sogro. “Ohhhhhhh!” - reação da plateia, confusa, sem definir se tragédia grega ou comédia romana.
Não houve “sim” nem “não” para o novo pedido de casamento. Como e para quê responder? De qualquer forma, união legítima dos MONTE e dos SANTO, por que negar ao início de 1913 a tradição de talvez quatro séculos? Protesto nenhum. Significativamente, ANDRÉ, ‘em-nome-do-pai’, colocou em ANDRÉA um anel de água marinha, pedra caríssima, olharam-se olho no olho, e com real tranqüilidade o galã Gigante beijou a mão da senhorita miúda, Ratinha. (No futuro, confirmaremos como uma das pedras do signo da revolucionária professora: Gêmeos.) ELA retribuiu com sabonetes artesanais - 7 de enxofre para o pai-noivo (cachorrinha MIMI ficou sem os presentinhos de Ano Novo), 7 de mandrágora para o filho-largadinho. As mulheres se dispersaram. Ninguém da DUPLA amorosa perdeu a calma. Os jovens aparentemente ex-noivos permaneceram muito serenos, sem gritos, sem engajamento em legião estrangeira francesa (existia desde 1831) ou na guerra (já ensaios na Europa, mais tarde a Primeira Guerra Mundial de 1914 a 1918), sem ida para o convento ou tentativa de suicídio. Foram jogar bilboquê, diabolô e xadrez, para disfarçar, planejando em voz baixa detalhes de última hora. Os homens voltaram a conversar placidamente - política, estradas, clima, café, coelhos......................
Ao amanhecer, uma em cada casa, duas camas estreitas com lençol ainda esticadinho. Armários de roupa vazios. Baú vazio: nem enxoval de cama-mesa nem o vestido de cetim e renda. Aliás, retificando, levaram o baú com tudo dentro. Sumiram também, nas casas, as malas grandes dos pais, as malas grandes de filho e de filha. Dois cavalos brancos (PRÍNCIPE e PRINCESA não montam em outro animal) e um burro de carga. Um punhadinho de cerejas de café, separadas para uma experimental receita de licor. Se depois tomaram trem, não sei. (Narrador-contista é uma coisa, o retrato nada fiel da ficção, historiador é outra coisa, o retrato nem sempre fiel da verdade.)
Restaram as letras A D E U S, desenhadas sobre corações vermelhos, coladas embaralhadas (houve quem lesse SAUDE, não sei como era o uso do acento agudo na época) na parede da sala do ridículo pedido de noivado.
Leitora romântica deseja saber: “E casaram?” Claro que sim.
“Onde?” No Rio de Janeiro - Outeiro da Glória, igreja de arquitetura setecentista, transição entre o estilo rococó e o neoclássico. Às pressas, sem abrir baú. Portanto, sem vestido de noiva, flores, música, bolo, festa. Depois no civil.
“E o padre?” Rebelde anterior a ESTES. Vocação religiosa, fugira na madrugada, logo após semelhante noivado arranjado na mesma família. “E esta noiva?” Casou depois (por amor?) com um político mineiro que não tinha entrado na estória.
“Felizes para sempre?” Bom, pelo menos é assim que terminam todos os CONTOS DE FADAS.
NOTAS LATINAS DO AUTOR:
“Amor est vis regere non potes.” - O amor é uma força que você não pode controlar.
“Omnia vincit amor.” - O amor vence tudo.
F I M
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