— Ah, minha Santa Clara! Clareai a minha mente!
Pedro consultou o relógio. Quase três horas da manhã. O que dizer para a Clarinha, quando chegar em casa àquelas horas? Caramba, que situação... tudo porque não conseguia auto-controlar-se e evitar um rabo de saia sequer. Um dia foi a ascensorista do prédio, aquela estonteante morena que lhe cantou uma vez só e já o conquistou. Chegou em casa tarde da noite. E qual desculpa? O pneu do carro furou e a chuva ainda atrapalhou-o. Depois veio a estagiária do escritório que o convidou para conhecer o seu apar¬tamento e acabou até dormindo por lá. Qual desculpa? O velório do tio de um funcionário. E a vez que conheceu a Celina, secretária do patrão? Foi com ela que extrapolou na capacidade de criar des¬culpas! Ficou com a loira um final de semana inteirinho e, para Clarinha, sua bela esposa e ótima dona de casa, estava participando de um seminário no estado da Bahia em pleno carnaval. Era difícil acreditar, mas ela demonstrou que sim e Pedro ganhou mais essa. E tantas outras mulheres lhe passaram nesses últimos meses e ene desculpas foram dadas. E agora, o que teria para dizer em defesa própria? Parou o carro e ligou para o Luiz Alfredo. Esse era amigo, muito amigo mesmo e a reciprocidade era verdadeira. Ninguém atendeu. Depois tentou o Antônio, mas de nada adiantou. Já na casa do Aristóteles quem atendeu foi a mulher dele que foi logo largando o verbo:
— Onde vocês estão?
— Quem? Eu ?!
— Isso sim. Não adianta esconder, Pedro, eu sei que ele está com você porque ele disse isso.
Meio, ou melhor, totalmente sem jeito e inteiramente à favor do amigo que com certeza também estava dando uma fugidinha, Pedro considerou.
— Tudo bem, Verinha, o Aristóteles está comigo.
— Posso falar com ele?
— Bem, é que agora não dá. Como o carro furou o pneu, ele foi até um borracheiro desses que funcionam 24 horas.
— Está bem. Quando ele voltar, peça para me ligar.
Pedro assumiu o compromisso e desligou o celular. Agora, além de ter de arranjar uma bela desculpa, tinha ainda que proteger o amigo.
Pedro dirigia com cuidado. Às vezes até parava o carro. Que desculpas teria que dar para chegar àquelas horas em casa? A do pneu furado já estava desgastada. A morte de algum amigo também, E se dissesse que o motor parou? Não. Também não. Por isso teve que comprar aquele carro novinho e ainda tivera que fazer um seguro total e que ainda exigia da seguradora, no caso de acidente ou roubo, outro carro imediatamente em substi¬tuição ao sinistrado até a apuração do caso.
O que fazer?
.Mesmo assim avistou um poste.
— "Talvez eu bata nele e justifique o meu retardo"— pensou, mas logo se livrando da ideia, uma vez que estava em outra extremidade da cidade. Com certeza a mulher não acreditaria. Um sequestro! Isso, um sequestro! Ë incrível, caro leitor, como a mente humana é capaz de criar situações nada conven-cionais para justificar um ato impensado e compensar o mal proceder.
Os olhos de Pedro brilharam. Um sequestro relâmpago ainda não fazia parte do seu currículo de desculpas esfarrapadas. Como fazer? Não foi difícil; a mente trabalhou melhor que o motor do carro. Ele iria se dirigir até um bairro de periferia, mais precisamente uma favela. Antes, porém, passaria no caixa eletrônico do banco e sacaria todo o dinheiro disponível para o momento. Esconderia o dinheiro. Abalroaria o carro em um muro qualquer. Depois quebraria o vidro da porta do motorista, para justificar a invasão dos seqüestradores. Em seguida rasgaria as roupas, a fina camisa de seda, sujaria a gravata e também a calça. Ah, se livraria de uns dos sapatos italianos que mais adorava. Se livraria também dos documentos, pois seqüestradores que se prezam limpam tudo mesmo. Avisaria a polícia e então se dirigiria para casa.
E foi o que fez.
Pedro nem estacionou o carro; deixou-o à disposição do porteiro do edifício que todo espantado olhou-o, pois a aparência do suposto sequestrado era séria mesmo. Pedro só apanhou a chave do apartamento.
— Não quer que avise a polícia? ---- Perguntou o porteiro.
— Não precisa. Já fiz isso — respondeu Pedro, enquanto aguar¬dava o elevador.
Quando chegou na porta deu uma longa inspirada, abriu-a e entrou. Estranhou que a mulher não o recebendo. Cautelosamente sentou-se como de costume no sofá e ligou a televisão. Então Pedro viu um papel com uma mensagem. Apanhou e leu. Era da Clarinha.
"Querido, desculpe por não ter podido avisá-lo. Mamãe está muito mal e tive que viajar às pressas. Comprei passagem no ônibus das seis e só chegarei lá amanhã às sete. Tem comida pronta no freezer. Se quiser, pode esquentá-la no microondas. Me liga amanhã. Beijos."
Nesse ínterim o porteiro interfonou, dizendo que os policiais o esperavam para detalhar o sequestro.
|