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Páginas de ontem
João Felinto Neto

Resumo:
     Não são poemas recentes, assim me disse o poeta, é exatamente o que o próprio título afirma. Eram poemas guardados que o poeta resolve publicar.      
     Lendo-os eu vejo que o poeta já caminhava por essa trilha de versos interpretativos.
     O que admiro no poeta norte-riograndense João Felinto Neto é sua maneira de abordar assuntos tão diversos em poemas que resumem verdadeiros discursos e que fica a cargo do leitor sua interpretação.
     Páginas de ontem sustenta poemas que não são de hoje, mas são atuais e falam muito mais do que muitas bocas.
     Como o poeta mesmo diz, “Sou um poeta de ontem que escreve hoje coisas de amanhã.”
     Páginas de ontem talvez nos fale entrelinhas do que está por vir.

Páginas de ontem

O poeta foi embora mais cedo,
talvez por medo ou apenas por pudor,
e sobre a mesa
ele deixou
as páginas de ontem.
O poeta fez segredo,
guardou num cesto,
carregou em suas mãos.
Agora, as luzes no espelho brilham em vão,
mesmo espelhado,
o poeta é solidão.











































Distração poética

A esfera corre pelo papel
permitindo a execução dos versos,
letra por letra.
As idéias são grafadas por minha esferográfica,
tinta azul,
como estrelas azuis
num céu infinitamente branco.
Um alfabeto em desordem
que exprime a ordem nas palavras.
Até a posição dos dedos
(aprendizado de criança).
Através da esfera, minha alma desliza como patinadora
no limitado espaço do papel,
sentindo a frieza do mesmo,
que dá vontade de riscá-lo.
Risco, brinco com isso,
perco-me em meus pensamentos
que vão além de mim,
não consigo decifrá-los,
só risco.





Nós

Procuro descobrir-me em nós,
debaixo de nossos lençóis.
Descubro
que perdi a voz,
e nessa mudez,
a nossa nudez
revela-me a nós,
que quando descoberto,
sou em nós,
mais você que eu.
















Ninguém é alguém

Se é um Zé-ninguém,
é um qualquer.
Se é qualquer um,
é um alguém.
Assim ninguém é sempre alguém.
Alguém que chora,
que comemora,
que se confunde,
que se conforma.
Ninguém de ontem.
Alguém de agora.
Aqui de perto
ou vem de longe,
não importa.
Se é sozinho,
Zé é ninguém.
Unido a outros,
torna-se alguém.
Alguém que é gente,
gente do povo.






Clone

Sou criação do homem pelo próprio homem,
sem a evolução,
sem o fetichismo,
sem teologismo.
Sou indivíduo homólogo.
Mas como indivíduo tenho essência
própria.
Eis o questionamento dessa intrigante
alma:
Sou desvairio de um mundo insano?
A realidade de um sonho natural?
Talvez resultado de uma mente racional,
ou sou humano?
Qual o meu propósito?
Ser um doador nato,
e ainda ser grato ao meu criador?
Também ter um nome,
ou devo simplesmente ser
um clone?







Desgarrado

Aquela chama que se desprende do braseiro,
sinto-me inteiro,
só quando chama.
Como me chamo mesmo?
Para sonhar posso ser livre.
Para viver só se moldado.
Sou como o cavalo que luta contra a brida
por seu caminho não ser o do lombo,
tal qual Zumbi no Quilombo
lutou também.
Não dá no quilo o que me vendem no pesado.
Ser condenado por matar a fome.
Qual seria o nome desse pecado?
Miséria.












Alheio

O olho não te deixa lúcido,
só permite o limite da mediocridade
da caixa de sonhos.

As mesmas balas,
as mesmas falas,
a mesma falta de sono.

Sem dar opinião,
andar na contra-mão,
ouvir, tua visão não sabe.

Não há lua no céu,
nem luz nesse lugar;
não há lua-de-mel,
nem filho pra criar;
só resta a realidade pra chorar.









Delirando

Infinitos corredores,
curvas de urgência.
Buscava-me na ausência do chão.
Era a vida que me dava às costas.
Perdi-me nas dores do infarto.
Apático fiquei
diante do berço branco do nada de onde vim.
Lutava contra amarras que me atavam
às vozes que chamavam por mim.
Revi todos os meus passos
folheados num álbum de imagens móveis.
Pensava que chegava em casa.
Em coma,
a morte afagava-me os cabelos
e tocava meus lábios.
Havia alguém no meu corpo,
já não era eu.









Moeda

Não haveria a cara sem a coroa.
Não haveria o riso sem a tristeza.
Não haveria o frio sem o calor.
Não haveria o feio sem a beleza.
Não haveria o ódio sem o amor.
Não haveria a dúvida sem a certeza.
Não haveria o homem de valor,
se não houvesse o outro lado da moeda.


















Seios

Teus seios
chamam minha boca,
como louca,
para sugar-te a alma.
E devorando-os com o olhar de gosto,
num gozo constante,
entrego-me, sem calma,
com medo de alguém estar presente
e os seios latentes
ter que esconder.
Mostra-me,
doce auréola rosada,
que sente minha falta,
que me enche a boca,
que me faz querer-te.
Seios da amada.










Lembrar é mudar

Os senhores,
as senhoras,
os louvores,
as histórias
contadas de pai pra filho.

Os valores,
as derrotas,
os heróis,
suas vitórias,
orgulho dos que resistem.

Os colares,
os olhares,
belas formas,
belas damas,
heroínas pouco reconhecidas.

Os mentores,
suas vítimas,
os autores,
obras vivas,
por gerações são relidos.



O opressor,
o oprimido,
pela morte,
pelo grito,
liberdade não é mito.























Ainda

Tão importuno à carne
o teu terrível engano.
Indiscriminado uso do poder.
Mortes coletivas.
"Defendendo a casa",
matando a própria família.
Alguém se senta na praça
numa leitura fingida.
Armas emotivas.
Dias de fuga do Estado de tortura.
A dita,
dura,
ainda dura.













Aceitação

Ancião que anda no mesmo caminho
que um dia jovem passou.
Ancião que pisa o próprio coração,
descuidado em meio a tantos cuidados.
Tolo por viver tanto,
sábio pelo mesmo tanto que viveu.
Jovem julgado pela própria fé.
Ancião cético ante a salvação.
Antigo indivíduo de um jovem povo,
povo este que novamente se acomodou.
Ancião em anos de subserviência.
Religião versus ciência,
ódio, versos e amor.













A caça

Como se sente a presa,
ferida,
no alforge
do animal que foge
por estar caçando outro em extinção.
Sem ter consciência do valor
de sua existência
e de ser um dos últimos a voar no céu.
O mais cruel
é que o caçador o sabe.
Tamanha racionalidade
assusta.














Branco

Em minhas retinas, só há paredes brancas.
Em meus ouvidos, uma criança que chora.
Alguém lamenta.
A descrença aumenta ante a derrota da inocência.
Paredes brancas,
negras lembranças.
Luvas que me isolam do toque humano.
Tanta sujeira no branco da agonia.
Leito branco,
derramando todo o pranto da vida.
Tanta frieza nos jalecos brancos
que dá um branco no coração.
Olhos piedosos,
choro incontido,
gemidos,
dor,
a maioria olha,
quase ninguém sente.
Branco de luto.
Vulto esquecido.
Branco que cega à atitude racional de salvar.




Vozes

São frases soltas
de bocas estranhas.

Senti na pele, fui descriminado.
Acho que tem festa no sábado.
O meu filho tá doente.
O país é dominado.
Está na moda.
Fez a prova?
Quem? Está casado.
Uma moeda. Deus lhe pague.
Só preciso de um tempo.
Tá na memória? Apague.
Meus pêsames. Lamento.

São vozes,
não tão estranhas,
soltas ao vento.








Sair de casa

De sua parte
pode despedir-se.
Enquanto parte,
eles se consolam.
Falam sorrindo de coisas felizes,
ficam chorando com a sua sorte.
Cada degrau,
um passo de incerteza,
leva seus sonhos pra vida real.

















Meu pai

Simplesmente sombra de teus passos, sou,
em tuas ações,
em tuas lições,
amado senhor.
Não há distância entre um e outro,
em nossos corações.
Sou pelo sangue tua eternidade.
És para mim, primeiro mandamento.
A tua bênção dá liberdade
a minha verdade,
ao meu pensamento.
Imenso orgulho ao chamar-me filho.
Amor eterno ao chamar-te pai.













Filho

É tanto amor que dói
em mim,
numa saudade incontida.
Em seu mundo constrói
castelos
de pureza e fantasia.
Meu pequenino herói
da luta
pela vinda a nós.

















Fogos

Que sacrifício,
tanta beleza,
tamanho risco.
Não há mais santo que suporte
esse barulho de morte.
Qual artifício
terei que usar
para me livrar
desses malditos fogos
de artifício?
















Irmãos

Águas que foram postas
para lavar os teus pés.

Armas que foram postas
para sujar minhas mãos.

Bocas que se abriram
para teu nome chamar.

Bocas que se fecharam
para meu nome evitar.

Almas que te encomendam
para que possas salvá-las.

Vidas que me encomendam
para que eu possa tirá-las.

Braços que quando o vêem,
abrem-se para te abraçar.

Pernas que quando me vêem,
correm tentando escapar.

Eu sou o único demônio
que tu não pudeste exorcizar.
Tu és o único homem,
o qual jamais pude matar.

Somos unidos no sangue,
a vida nos separou.

Hoje, tu és um padre
e eu, um frio matador.

Flores que foram postas
para enfeitar teu altar.

As mesmas que foram postas
para meu túmulo enfeitar.














Indígena

Queremos devolver ao corpo selvagem
uma alma "civilizada" como a nossa.
Fingimos não ouvir seus gritos abafados
nessa floresta calçada
e sem encanto.
O que fizeram tanto
para nos merecer?
Talvez seus deuses soubessem responder.
Já é tarde demais,
os catequizamos.
Nação que perdeu a própria identidade.















Inflamável

Chamas,
labaredas de cor ardente.
Nossa culpa
pelo ato inconseqüente.
Céu coberto de fumaça,
ardor no pulmão do planeta.
Mão que mata a própria mata
na omissão da caneta.
Floresta queimada.

















Incautos

Somos crianças perdidas,
brincando de destino,
com um poder absurdo nas mãos.
Que desatino,
não ter noção do perigo.
Correr o risco de no fim da brincadeira
como bonecos humanos acabarmos.
Não poder se limpar,
nem se guardar,
por estar morto.
















Visão

De onde estou,
o que vejo são só cabeças.
Se é gente inteira que entra,
quando senta-se é só cabeça.
Umas de dúvida,
outras certeza.
E não se esqueça,
o que eu vejo de onde estou,
são só cabeças.
O que espanta
é a cabeça que se levanta.
Ao sair,
o que se vê é gente inteira.
Mas continuo, de onde estou,
a ver cabeças.











Arte sacra

Entrei no templo que crêem sagrado.
Mundo selado na impressão da fé.
Sagrados pincéis pelo que retratam.
Sagradas mãos pelo que esculpem.
Sacras formas
de formas humanas.
Divina arte de milênios.
Sagrados esforços
eternizados no tempo por mãos de gênios.

















Dor natural

Ninguém se foi de mim.
Nunca senti o que é perder alguém.
A dor que vai e vem
numa saudade de quem foi.
Porém, um dia
eu sei que a hora irá chegar
e levará a mim
ou a você
de quem eu possa
a custa da dor,
calar-me.















Desafio

Deslumbra aos olhos tanto avanço.
Derramam-se lágrimas de absoluta miséria.
Ao viajar pelo espaço
seu espaço na terra agoniza
com os pulmões vazios de ar.

Há tantos ares
e as aves não podem voar.
De tantos males,
a beleza não pode brotar.
Diante de toda tecnologia, está perdido.
Seu maior desafio
é encontrar-se.













Desconhecido

Adeus!
Dizia eu a essa gente
que com o olhar descrente
via-me partir,
tão de repente, como chegara ali.

Perguntaram para onde eu iria.
Respondi: - Vou procurar por mim
através do mais triste atalho
nas cartas de um baralho,
num carteado sem fim.

Na masmorra de um antigo castelo,
nos tijolos marcados na parede
pela boca ensangüentada por amor.
Talvez, eu não encontre o que espero.
Mas, espero aliviar a minha dor.

Quem eu sou?
Entre tantos, um mistério.
Não importa em que cálice beberei,
com que porta trancarei o meu pudor,
em que flor o meu néctar beijarei.



Não há como voltar.
Talvez não haja respostas.
Às minhas costas, não poderei mais olhar.
Como calar diante dessas incógnitas:
- Quem eu sou?
- Onde é o meu lugar?






















Engraçado

- Qual a tua graça?
Perguntou sem graça.
A resposta dela seria engraçada
se fosse, sou Graça.

Sem graça,
graças a seus olhos,
olhos de segredo,
enfrentou seus medos,
sorriu.

Na graça da boca
que sentiu o beijo,
cheia de desejo
partiu.

Que graça.
Engraça
se engraçou por outro.
Desgraçado fim.






Despertar

Se por ventura
está perdendo a aventura,
acorde,
não queira mais dormir.
Se ainda resta-lhe uma cultura,
ninguém vai lhe dizer como agir.
Abra
seus olhos de pouco brilho.
Mostre
seu riso de pouca graça.
Sinta
que a venda da injustiça tapa a sua vista,
degrada-lhe a alma.
Reaja,
lutar é preciso.
Sua omissão é se iludir com seu mundo de
alienação.
Doce nação!
Amarga a vida da maioria dos seus.
Quando pisar a ponte
não se desaponte,
para muitos ela é teto
não é só concreto.
Nessa escadaria, muitas vezes, os degraus
são os outros.
Muitas cabeças são degoladas
por lâminas afiadas nas mãos de imbecis.
Não posso lhe mudar.
Porém, tenho o dever de influenciá-la.
Silenciar-me?
Jamais!























Sem opção

Não é sua a escolha
nas duas formas de aniquilação.
Um cogumelo radioativo,
toda vida será extinta.
Na biológica ou química,
somente a nossa inconseqüente partida.
Teríamos ainda uma chance,
a cura e a imunização,
senão,
o mundo continuaria,
talvez,
bem melhor sem nós.














Versão

Não há um fim no círculo da vida.
Pois não se sabe o ponto de partida.
Tudo se repete
nessa caminhada.
Só a forma de vermos é modificada.
Não há um mundo novo.
Há uma nova versão do mundo.



















Óbvio

Da vida que tenho,
não tenho o que escrever.
Se nada escrevo da vida que tenho,
é por nada ter.
Parece-lhe óbvio?
Quem disse que o óbvio não é poético?
É difícil ver-se em si próprio,
é mais fácil ver-se nos outros.
Seu defeito, minha qualidade é,
ou seria o inverso,
meu defeito é sua qualidade.
Nessa vida,
somos versos da verdade
no poema do universo.






Chinelos

Chinelos não educam,
mas amaciam as pedras no caminho.
Que caminho seguir,
o que os chinelos indicaram?
Chinelos nos ensinam,
às vezes, atrapalham.
Quase sempre é necessário usá-los.
Não há criança
sem a esperança de um dia calçá-los.
Filhos,
como educá-los?
Usar chinelos ou ficar descalço?






Corrigir

Não será preciso
se preciso for.
Se não for preciso,
preciso será.
Precisa ser preciso
para não ser preciso
precisar.













O desabafo

Sou parte ativa de um dia de jornada
a céu aberto,
empunhando a minha enxada.
Sinto na pele, o calor que tem a tarde.
Passos pesados pela carga que me cabe.
Falho sistema,
que de novo não tem nada.
Sou um problema para a sua propaganda.
O meu descanso é somente em minha cama,
na compreensão sob os lençóis,
com aquela que me ama.
E quando adormeço em meu travesseiro
é que acordo desse pesadelo.
Mesmo que escura e fria,
a noite é minha melhor companhia.




Separação

Cada individualidade no amor
unifica-se em uma só vida
numa dualidade de corpos.
Separe-os
e verás
não duas vidas separadas,
mas, duas metades de uma vida.
Se uma outra vida houver,
abrirás uma ferida sem cicatrização.









Salvação

Examinando a cova na qual o enterrei,
lá verão memórias do quanto lutei
para me livrar dessa lavagem cerebral.
Por nosso abandono,
por nossa injusta lei,
por minha consciência de simplesmente ser mortal.
O mundo morre em prantos,
pois o homem o esqueceu
brigando por um canto
ao lado de um deus.
A terra é de todos,
o céu ninguém o tem.
Não passam de tolos
buscando um além
eterno.
Em versos verbalizo
minha ação de fé.
Voar não é preciso,
vou caminhando a pé
para uma vida que é eterna
enquanto vida houver.




Vidente

Seus dedos manipulam os sonhos
nas linhas traçadas em mãos alheias
para desvendar a alma do destino
na palma da mão.
Sua visão sem olhos,
percorre o caminho escuro do futuro,
enquanto a luz do tempo,
amarelada,
ilumina o passado.
Cigana,
se engana
consigo.








Botas

Pegadas
deixadas no solo do tempo.
As mesmas botas
que pisaram a vida
e de saída
descalçaram a morte.
Enquanto ao norte,
um vento forte as apagaria.
Justificada por seus passos na lua,
mostrando ao mundo
suas solas limpas,
suas mãos sujas de sangue.
Assim, comandam a todos.
A vida segue
sempre obstruída
por botas polidas.






Insensatez

Insensatez pela evolução
de tornar-se um indivíduo
de julgamento indevido
na ausência da razão;
de entregar-se ao crime;
por tornar-se rico,
enquanto morre-se de fome;
por corromper-se
e não se compreender.

Insensatez por não saber amar;
de tantos sonhos perdidos;
de vidas tiradas sem sentido;
por nada lutar.

Insensatez de não saber seu
próprio caminho;
de encontrar-se sozinho
e querer flutuar no espaço,
explodir em milhões de pedaços
e só assim poder ter
uma melhor visão
do mundo.



Insensatez por perder o bom senso;
por violar as nossas virtudes´,
se é que as temos
e enterrar o nosso intenso
desejo de salvar a todos
ou a todos matar,
sem para isso tomar
atitudes.

Insensatez pela estupidez de ser
"racional".

















Desistir

Apressei meus passos
no caminho sem volta.
Não havia porta de saída.
Dissimulo o riso,
não sinto revolta.
No instante da corda,
perco-me na agonia do que me sufoca.
Traio-me
no tardio arrependimento.
Desisti de pensar,
desisti de sonhar,
desisti...














Anônimo

Na timidez de revelar
o que escrevo,
procuro assegurar
no anonimato, e faço segredo.
Talvez por medo de não agradar,
ser criticado e desistir de registrar
os meus momentos poéticos.
Espero, igual ao pintor,
só ser compreendido
postumamente,
para não ser reconhecido
no presente.
Apenas me permito
passar para o papel,
aquilo que acredito.
Porém, para o futuro,
já amadurecido,
espero que me leiam,
resgatem do obscuro
idéias que me espelham.






Ser ou não ser

Fiel,
será possível ser,
Se a natureza
faz crescer
o apetite na tigela?
Sem essa,
ponha água fria na cabeça
e não se esqueça,
seu coração
pertence a elas.
A quem?
A ela.








Tarde demais

Ao acordar,
um primeiro pensamento.
Durante todo o dia posso ver
um rosto,
um olhar profundo,
um sorriso,
afinal um mundo
que me pertenceu.
Eu não consigo pensar em outra coisa,
sinto muito.
Aumenta ainda mais a saudade
estar à toa.
Não acredito mais em felicidade
e me confundo
com a verdade.
Nessa hora é difícil ser racional.
Acredito que você seja real
numa realidade perdida a muito tempo atrás.
Sei que sofre por demais
quem acha que alguém pode voltar.
Minha cabeça se confunde com o lugar.
Tenho vontade de correr,
a imagem no espelho me impede,
continuo a vê-la, e fere,
tanta tristeza por me ver enlouquecer.
Não estou tão longe.
A angústia passa.
Aumenta o desespero
quando você me abraça
e eu pensando que lhe tenho, é só fumaça
que se dissipa embaixo dos lençóis.
Meu corpo ainda dói.
Minha boca ainda lembra do seu beijo.
Meus olhos, da imagem no espelho
a me olhar.
Escuto sua voz a sussurar
que o meu coração
lembrou-se tarde
de pedir perdão.















Responda

Porque perdemos a voz? Responda-me.
Já sei, não pode falar.
O que não te permite
ou não nos permite?
Que falta nos faz a palavra
ou a falta é de voz?
Que diabo de traça a comeu?
Não basta a resposta,
é preciso certeza do que responder.
Não me surpreende não querer discorrer,
mas me indigna não poder discordar.
O que mais nos atrasa é a falta do que dizer.
Se não vai abrir a boca,
mostre ao menos os dentes,
faça cara de mau.
Não será propriamente uma resposta,
mas ao menos uma reação.
O pior dos males é ser indiferente,
aliás, pior ainda é concordar com tudo isso.
Afinal, estou falando só?
Alguém vai falar?
Se não, calem-se para sempre.




Encontro

Procurava por um amor
e não sabia
que ela me encontraria.
Doce namorada,
pus em suas mãos
minha vida inteira
numa aliança.
Deu-me em recompensa
todo o seu amor
em uma criança.
Trazendo-me a esperança
de viver
pra sempre.













Esquecimento

Eu não me lembro o que deveria lembrar.
Mas sei que me fizeram esquecer.
Não esqueci o que me fizeram lembrar.
Portanto, escrevo o que devia esquecer.
O que procuro lembrar
é o que devia esquecer.
O que procuro esquecer
é o que devo escrever.
Enquanto escrevo, lembro-me
do que me fizeram esquecer.
Eu escrevi para nunca esquecerem
o que procuro esquecer
e para sempre lembrarem
para nunca mais acontecer.












Interior

Tiremos as alpercatas e andemos descalços
por esse país de lugares esquecidos.
Olhemos nos olhos que não vêem o tempo passar.
Ouçamos as vozes de queixas ao destino.
Visitemos salas de terra batida,
seremos bem recebidos e em nossa saída,
um pesar disfarçado, mas, expressivo no olhar.
A poeira cobrirá os automóveis.
Eles imóveis
em suas janelas e portas.
Gente que suporta
bem mais que nós, o dia-a-dia.
Não um estresse urbano
causado pelo valor mundano
das coisas e das pessoas.
Somos o que há por fora
(uma capa ilusória de escolhas).
Sorte nossa, o interior ter consistência
e apesar de seus problemas
seguirem a inocência do viver.
Não precisam de um porquê para tudo
e a sua existência
é a simples condição de ser.


Todos

Sonhar com coisas que o dinheiro compra
é pompa.
O verdadeiro sonho
não se compra.
A liberdade de um povo
é um velho sonho
que é sempre renovado
e que o dito dinheiro
e a maldita ganância
o impede de se tornar realidade
pra ser apenas esperança.
Sonhar com a modernidade
é vaidade,
enquanto há criança que não come.
Sonhar em ter reconhecido o nome
é esquecer dos outros,
pois a sociedade
define-se como todos.








Origem

Por onde começar
o infinito mundo sem conceito?
O que a todos devo por direito demonstrar?
Se nas mãos de quem escreve
a certeza é apenas a esperança de estar-se certo.
Pois a verdade absoluta é relativamente falsa.
Dependerá da consciência que a concebe
e da visão que a percebe.
Se nada sei,
deixe-me ao menos explicar.
Se não me calo,
talvez seja pela esperança de ser escutado.
Se nada falo,
é pura forma de me revelar.
O que antecede um ser
se não a sua própria criação,
um criador à sua forma,
única conhecida.







Flor

Exóticas pétalas de cores
num ramalhete de amores,
malícia masculina.

Enquanto é trevo é sorte
e até disfarça a morte,
depende da sina.

No ambiente, belo ornamento,
ainda serve de alimento,
medida feminina.

Essência em forma de perfume.
Buquê de noiva um costume,
sonho de menina.

De pólen passa a mel,
nos campos como um véu,
abre-se ainda.

Em muitas mãos é lucro.
Num outro estágio é fruto,
existência finda.



Idade

Que infelicidade,
a idade
com o passar do tempo
só nos leva à morte.
Que sorte,
ainda resta vida.
Cada aniversário,
um passo pra cova.
Todo calendário
agoura o ser
desde o nascer
até se perder
no envelhecer,
na hora maldita.
Morte,
que sorte,
não morri ainda.









Ideais

Se é preciso se doar
a tanto luxo,
recuso-me,
desculpo-me por perder.
Se nada é constante,
nesse instante,
indelicado sou.
Talvez por não querer
ter tanto
ou não ter porquê.
Por qual motivo
não me dá razão?
Sabe muito bem
que a própria mão
tem o direito de escrever
o que se passa na cabeça
de quem lhe ordena
e coordena os movimentos,
transformando-os em idéias
tão concretas
que se tornam
ideais.




Canto de sereia

Como um canto de sereia
de belíssima harmonia,
letra correta, verdadeira poesia
e melodia
que eterniza nossa alma.
Por onde anda
a sereia encantada
nas profundezas desse mar de ignorância?
Letra incorreta com falta de concordância
e melodia
que nos faz perder a calma.
Só na lembrança,
o teu canto nos enleva
na emoção que tua voz nos faz sentir
e na saudade, o nosso coração desperta
pra realidade,
não há nada mais pra ouvir.









Crime

A mão na luva nada exprime.
A decisão está tomada.
A faca agora observada.
A voz no ouvido não reprime.

Um passo dado que alerta.
Um só murmúrio incomoda.
Um movimento acomoda.
Um golpe intenso que desperta.

Uma vontade tão ardente.
Uma vitória amaldiçoada.
Uma visão mal assombrada.
Uma razão inconsciente.

Um corpo inerte ainda quente.
Um cheiro doce que aflora.
Um coração que se deflora.
Um turbilhão em sua mente.

A intensa dor que continua.
A imensa perda em sua alma.
A mesma voz que lhe acalma.
A mesma busca pela rua.


Paciente

Chega de falar de calma
se não há mais alma pra se converter.
Extravase a dor na palma,
ajude essa massa a querer viver.
Veja um palmo à sua frente,
não se alimente sem oferecer.
Já que o santo está ausente,
corra contra o tempo pra poder vencer.
Mas o sangue como é quente,
esse povo um dia vai saber morrer.
Use a força que te arma,
basta empunhá-la, é o seu saber.
Não desista e não se abata,
use a palavra, que irás vencer.
Nunca aceite usar a farda,
jamais se anule pra sobreviver.
Se alguém teu corpo marca,
regerá pra sempre todo seu querer.
Cada voz que não se cala,
formará um só refrão.
Não há nada que se faça,
não há arma que combata
o poder da união.



Amar

Quer saber se ama? Reflita consigo.
Não consegue ver nada em seu caminho.
Sem ela ao teu lado acha-se perdido.
Mesmo acompanhado sente-se sozinho.

Quer gritar a todos o seu sentimento.
Escuta no vento ela te chamar.
Sua boca diz como em um lamento
o nome d'aquela que te faz sonhar.

E deseja tê-la sempre em seus braços.
Lembra-se que a vida não nos dá certeza.
Num dia unidos, em outro separados.
Vive a alegria antes da tristeza.

Sabe que na vida teve a sua chance
e que num instante poderá mudar.
Na mão do ciúme, todo o romance,
como de costume, tende a se acabar.

Ouve o coração acima de todos.
Todo amor é surdo ante a razão.
Tolo de emoção é visto por outros.
Sentimento louco, alegre prisão.


Não há liberdade, doce sofrimento,
e sem fingimento finda a invasão.
Diante da fuga aumenta o tormento,
eterno momento de condenação.

Peito sufocado por tamanho aperto.
Já não tem bom senso pra poder julgar.
De mente confusa e coração aberto,
reconhece agora o poder de amar.

















Reconciliação

Deixa-me falar de forma que possa me ouvir.
Deixa-me ajudar na busca do seu coração.
Deixa-me sentir as lágrimas que você chorou.
Quero mergulhar na fonte de tanta paixão.
Quero seguir pela trilha que você deixou.
Quero caminhar com calma pra não te ferir.
Quero repousar na tenda da sua emoção.
Deixa-me guiar você de volta para mim.
Deixa-me rebuscar lembranças que ainda há em
[nós.
Deixa-me matar a saudade de você em mim.
Deixa-me dizer adeus a essa tristeza.
Quero ter certeza que tudo mudou.
Quero ter você por toda minha vida.
Quero te chamar pra sempre de meu amor.
Deixa-me querer-lhe.










Da tempestade à calmaria

Como um barco de encontro às águas,
nos unimos.
O movimento que o barco faz
a navegar.
Os teus cabelos são como velas soltas
ao vento
que me levam sem rumo certo
a algum lugar.
Assim as ondas vão aumentando
nosso balanço,
o barco lento também começa
a se apressar,
e nessa pressa teu corpo explode
em movimentos,
é a tempestade que envolve o barco
em alto mar.
Esse momento que pouco dura
é tão intenso
que fica imenso,
torna-se eterno esse lugar.
A calmaria retorna ao mar.
O barco agora flutua
tranqüilo por sobre as águas.
Assim, meu corpo repousa
em suas águas,
numa imensa paz.
Deserção da vida

Enquanto eu guerreava,
já não mais pensava.
Meu punho cerrava,
já não escrevia.
Já não mais chorava,
o rosto queimava a lágrima que
escorria.
Vinham-me saudades
da felicidade que senti um dia.
Já não lamentava
tudo que sonhava possuir na vida.
Já não mais cantava,
somente emitia gritos de agonia.
Pra onde eu olhava,
nada enxergava
além de corpos sem vida.
Não me segurava
e me descansava
nos braços de alguém que morria.
Já não se sabia
qual era a razão da guerra que havia.
Já não refletia,
nem compreendia o que acontecia.
Nada mais restava,
por mais que lutasse, morto me sentia.
Deitado na lama, não me conformava,
pois eu me tornara o que repelia.
Apavorava-me quando encontrava
o que escondia.
Sem identidade,
perdi a idade e envelhecia.
Perdi-me do mundo,
o rumo da vida eu não mais seguia.
E no desespero
veio a liberdade trajada na morte.
A dor que senti,
nada me restava,
como não chorava,
o que fiz?
Sorri.














Distúrbio

Vejo
além desse mundo
limitado,
torno-me fecundo,
quanto mais profundo
mergulho
nesse mar de sangue
e lágrimas
que nunca foram
derramadas.
Perdi um lado
da vida.
Achei um outro
no mundo.












Desilusão

Quando olhava a estrada,
da qual vi parti você,
não sabia em que pensava,
mas tinha certeza,
não queria mais sofrer.
Estacionou
nesse momento,
não mais voltou
a ver a vida
como ela realmente é.
Quando se banhou
no rio da calma
dessa solidão,
aprendeu que o medo
não é um segredo,
é só a razão
a defendê-la
do perigo de partir.
Enquanto houver
palavras,
mesmo que tão duras,
não tão duradouras,
na mesa em que se ganha
se gastará fortuna
pela vida
à toa.
Como ecoa
a voz da ingratidão.
Não traz mais um recado,
mesmo dormindo ao lado.
Não dá vazão
à toda essa angústia.
Tamanha disciplina
nada ensina,
só acaba a emoção.
E entrega-se
com toda força
e frieza
à mais louca tristeza,
decepciona-se,
não mais se suporta,
fecha a sua porta
para a vida
e escondida,
morre.









Culpada

Batida.
Carro que sangra
na estrada desenfreada.
Partida
de quem se ama.
Inconseqüência do que se mata.
Ferida,
marca a lembrança.
Dor incontida, nunca se sara.
Perdida,
não mais se acha
uma só culpa para a desgraça.
Culpada,
nação de farça.
Pista assassina, ninguém escapa.











Cochilo

Mergulhar
sua cabeça no rio.
Desafio,
deixar o vento secá-la.
Enquanto o tempo,
ali sereno,
quase não se passa.
Deitar
à sombra de uma árvore.
Seus olhos a cochilar
escutando o canto da ave
e o barulho da água.
A correnteza
dir-lhe-á com certeza,
pra esquecer
o murmúrio do mundo.










Crise existencial

Paro, medito.
Em que presente estou? Existo?
Penso com isso,
como diz o filósofo, explico.
Corro meu risco,
questiono a criação, maldigo.
Calo, reflito,
discuto essa questão, insisto.
Tento, persisto,
faço as mesmas perguntas, repito.
Fico, arrisco
diante das respostas, exito.
Fujo, não ligo,
insisto na razão, duvido.
Leio, reviso.
Não há como explicar. Desisto.
Vivo, preciso.
Não posso desistir. Acredito?








Metáforas

Bordaste meu nome
nos lençóis freáticos
do seu coração.
Voaste no céu da minha boca
e já quase louca
viu milhões de estrelas.
Enfrentaste a fúria
do meu pé de vento,
sentindo no peito
uma rajada de lamentos.
Iluminaste
o buraco negro
da imaginação.
E assim, como no mar
a onda vem e vai,
eu levo o meu amor,
você me traz a paz.









Mãe

A pálida coragem do nascer
traz o transparecer de tua alma
Iluminada.

À vida que depende de teu ser,
entrega-se com prazer,
determinada.

Com aquele que conquista teu querer,
sempre vai se sentir
acompanhada.

À família que em tudo quer te ver,
oferta teu viver,
apaixonada.

A casa que tanto exige o que fazer,
tenta sempre manter
organizada.

A todos que te acham merecer,
a vida a se doar,
eternizada.



Lenda

E assim, o mundo
é um velho arco
com a linha do tempo distendida.
A vida,
uma flecha envenenada
com o veneno da idade,
arremessada,
impulsionada pela mão do acaso
com direção inesperada,
com obstáculos no caminho.
Há sempre um alvo atingido.
Somos alvos da flecha da vida
lançada do arco do mundo
pela mão do acaso.





Alternativo

Águas rasas, as verdades,
transparentes se revelam.

Águas fundas, as mentiras,
profundamente perdidas,
ocultadas em mistérios.

Rasas, doces e correntes,
sossego fluido crescente,
se afagam.

Fundas, frias e paradas,
traiçoeiras se afogam,
em solução aparente
se consolam.

Vidas que flutuam em águas
rasas e/ou fundas
na busca a uma terra firme.







Arriscar-se

Fumar a paz,
ainda é proibido.
Falar demais,
corre-se risco.
Se a mordaça da hipocrisia
faz calar
a voz da suposta
verdade,
na dúvida,
é melhor que a imposta
mentira
disfarçada de inocente
bondade.






Acho

Acho que o sim
é sim,
outras vezes,
não.
Como não?

Acho que o não
é não,
outras vezes,
sim.
Como assim?

Indagação...













Aparição

O chão que piso, seus pés não tocava.
Em meus ouvidos, uma voz do além.
Além de mim, não havia ninguém.
Naquela noite, a solidão reinava.
Eu desconheço maior sofrimento.
Sobrou lamento em minha assombração,
faltou ação em meu assombramento.

Encorajado pelo próprio medo,
lancei os olhos ao velho portão.
Corri dali como se fosse o vento,
pisando em túmulos que havia no chão.
Num cemitério não piso tão cedo.
Sobrou ação em meu assombramento,
faltou lamento em minha assombração.




Anjo

Todas as noites toco em meu anjo
que dorme cedinho.
Anjo sem asas
que voa em meus sonhos
dentro de casa.
Tão dependente dos meus passos,
fortalecido em meus abraços.
Um dia meu anjo terá asas
e voará pelo mundo em busca de si mesmo.
Anjo desmistificado.
Meu anjo.
Anjo filial.






De um outro ângulo

Inteligência infinita,
escondida
no recôndito cerebral.
Revérbero oculto
pelo vulto
de um distúrbio neural
que vê a vida
pela fresta
de uma janela quebrada
e com a chuva de estímulos
não vê mais nada,
e fecha os olhos
diante do que é normal
que para o mundo
é um defeito letal.




Ato

Hálito de chão molhado,
cálido suor,
um corpo cinturado,
uma dor
sem dó,
um ato imoral,
uma mão
em vão
supõe deter
o escrúpulo virginal.









Paternal

Tal qual aperto de mão
que sela uma amizade
é o abraço apertado
na despedida
para o escuro mundo do chão.
Enquanto há vida,
o sonho é realidade.
Na esperança,
o fim é triste passagem,
necessidade,
sonhar com essa ilusão.
Talvez, esteja
eternamente perdido,
isso é o que eu digo,
não sei se tenho razão.
Por essa grande amizade,
selada pelo abraço
tal qual aperto de mão,
sempre estarei ao seu lado,
perdido ou desencontrado,
acreditando ou não.





Paz

Com a mão exposta em forma de ave,
imaginou a paz adormecida,
notificada aos seus familiares.
Noticiaram a guerra deflagrada.
Exércitos de famintos,
sem cobertores,
cobertos por besouros de ferro.
Melancólica música
ouvida em sobressalto durante toda a noite.
Saltando sobre suas cabeças,
simultaneamente,
vida e morte.
Abrem-se os braços
na escuridão em busca de um abraço de paz.
Corpo entendido,
extensão da vida em morte,
expõe o lado triste do mais fraco,
expõe o olhar distante do mais forte.








Vampiros

Negra forma.
Vôo noturno.
Hematófago ser.
Presa morta.
Impressionante vulto
chega ao entardecer.
Asa aberta.
Fecha a porta.
Um sonar a defender.
Um suspiro.
Um vampiro
que te faz adormecer.
Morte lenta.
Movimenta
sua boca com prazer,
suga a alma
eternizando-a.

Num vôo noturno,
dois morcegos
cegos
para morder.




Vingança

Lutar
contra o fantasma
do perdão
é perda de tempo,
é guerra perdida,
é vazio não preenchido.
Do doce esperado
da vingança,
só nos resta um travo
na boca do rancor.
Afundamos sem valor
num poço de tristeza.
Não há justiça,
só há frieza,
indumentaria
de um vingador.










Insolação

As rachaduras do solo,
sem querer,
me revelam figuras imprecisas;
levanto os olhos,
não são miragens,
são imagens distorcidas.

A água mina
enchendo a tina de sonhos
que transborda até a realidade
em forma de suor
na aspereza da pele seca.

A estrela solar
parece-me tão perto,
iluminando o meu deserto,
escurecendo a minha vista.

O chão quente
me enraíza a si como corrente.
Fico passivo na ventania de areia,
olhos vazios de alma,
insofrível dor que acalma,
vida em resignação.


Ouvido

Falou baixo.
Na escuta.
Um discurso bem formado.
Mais alto,
um grito,
um monólogo proferido.
Falou certo,
consigo,
demagógico ouvido.
Por quem ouve,
verdade.
Para quem fala,
faz sentido.













Aprendizado

Sou cidadão,
não leio,
não vejo o que dizem.
Sou andarilho aleijado em uma pista.
Orador sem ter língua para falar.
Sou tela em branco
sem artista para pintar.
Sou carregado à toa pelos fatos
como canoa sem remo.
Sou sonhador que não sonha acordado
e acordado não sabe pensar.
Preciso ver o que dizem
para optar
sim ou não.
Preciso ler entre linhas
para ter a minha
consciência de cidadão.


Ano novo

Eu quero desejar a todos,
o que todos
desejam para si.
Eu quero repetir
de novo,
o que de novo
estar por vir.
Um novo ano
que um dia, velho
vai partir.
Ao que se passa,
um novo dia
vem a seguir.






Conhecer-se

Não olhes para dentro de si mesmo,
não profundamente,
pois o que irás descobrir,
o deixara em eterna tristeza.
Veja a beleza
de tua externa paisagem,
tua imagem,
nunca o interior da caverna,
onde não há claridade,
só trevas.
Na verdade,
lá não existe alma,
existe uma vaga
a ser preenchida.





Cappa

Nefasta cabeça,
na qual supõe
que põe
um quepe
que lhe tira a culpa.
De réu
passa a ser vítima.
Na sombra
de um sombreiro,
descansa a vista.
Já houve um tempo
que de chapéu,
se matava.
Com uma estrela no peito,
se safava impune.
Hoje, é costume
com uma cartola,
se corromper.



Milagre

Velas e juras,
males sem cura,
vozes que dizem amém.
Nota aguda
na aguda dor
de alguém.
Agonizando em ternura,
aliviado em loucura,
acreditando-se
bem.









Depressão

Só um abraço lhe foi pouco?
Venha de novo,
é apenas um abraço.
Essa frieza de louco, não exite,
não sou outro,
somente estou mais distante.
Se em meu olhar insondável
não me encontro,
paciência,
volto num instante qualquer.
Só não consigo ser permanente,
quem sabe ausente sou.
Essa sensibilidade à flor da pele,
afunda-me
em tamanha calma,
resigna-me em alma
a fechar-se em mim.









Um verso

Em um portal
sem porta
o que importa
é a passagem.

Em um espelho
sem reflexo
não há complexo
sem sua imagem.

Um verso
sem sentido
de aspecto indefinido
é poética miragem.

"Bati com o rosto
nas mãos,
faltou coragem".








Parabéns

Boca que sopra idade
ao apagar a chama simbólica.
Sorrisos e palmas,
vaidade,
vozes num coral.

Olhos que brilham.
Estrelas cadentes.
Presentes.
Dia especial.

Estar bem
para mim.
Parabéns a você.






Sonoridade

Dedilhando versos
em cordas distendidas,
violão sem vida,
acordes dispersos
no ar.
Na impressão dos nervos,
na precisão dos dedos
saem verbos em forma de música.
Ao tocar,
as mãos tocam a canção
que nos toca
com a sonora melodia poética.







Enchente

Os seus pés submersos
num tapete de água.
Sua vida em casa,
invadida.
Sua terra,
da noite para o dia,
de tão seca
passou a encharcada.
Foi um dia, pedida com afinco.
Hoje, olha para o céu
e pede calma.
Suas coisas estão sendo levadas.
Não entende a causa
dos extremos.
Na inocência da fé,
chora por dentro,
mas por fora,
cada lágrima de tristeza
só aumenta o poder
da correnteza
que arrasa de vez
com sua vida.




Armas

Soluçou a arma
que perdeu a calma,
disparou lamento,
silenciou a vida.
Barulho de ato impensado.
Quem armou o dedo
também acusou.
Pensa ser estilo,
foi um belo tiro,
para a liberdade,
um trágico fim.
Achou ter poder,
tentou socorrer
a si.
Armas são pra nos ferir.




Pele de cordeiro

Patas na lama
e na mesa.
Sangue nas mãos
e nas veias.
Uma brisa
entre os botões.
Nos salões,
à noite,
uma contra-dança.
Nos porões,
há dor
sem mais esperança.
Por sua fé infinita
soa sua voz
e ele grita:
- Sou a coroação.










Fila

Uma fila
que seguíamos uns aos outros,
passo a passo
no cansaço da espera.
Embora no espaço
da vida
fôssemos contrários,
na fila,
sempre nos seguíamos
em busca do mesmo fim.
Bom pra você,
ruim para mim.






Febre

Inconstante sensação,
frio em minhas carnes.
Não queria
ser oposição ao natural.
Quentes tardes,
noites frias.
Escoava-me pelo suor
no movimento da temperatura.
Uma loucura sem fim,
uma longa espera por mim.
Agasalhos,
pele nua,
dura forma de conhecer
extremos.





Flagrante

Expus-me à vista,
enquanto o olho
ficou exposto ao colírio
para limpar a marca
do distúrbio.
Vermelho clandestino,
sonho lírico.
Na fumaça, oculto,
o absurdo
do que é dito
desatino.















Excluído

Fugir da seca onde há tanta fome.
Morrer de sede no meio da água.
Não saber falar nem o próprio nome.
Ficar calado onde há tanta mágoa.
Morrer de fome onde há tanta terra.
Baixar a cabeça onde há tanto mando.
Ser tão passivo no meio da guerra.
Perder a vida sem saber-se quando.
Dormir na rua quando há tanta cama.
Não saber ler onde há tanta escola.
Sentir-se limpo no meio da lama.
Ser miserável e pedir esmola.
Manter-se honesto no meio da escória.
Manter-se certo onde só há erro.
Não ter memória onde há tanta história.
Não ter coragem de enfrentar o medo.
Sentir-se aceito onde há preconceito.
Não reagir e ser submisso.





Biografia:
No dia 04 de outubro de 1966, nasce João Felinto Neto, em Apodi, Rio Grande do Norte. Em 1969, parte com sua família para Tabuleiro do Norte no Ceará. No mesmo ano passa a residir em Limoeiro do Norte, sua pátria emotiva e ponto de partida de uma fase migratória que duraria toda a sua infância, e o levaria até Santa Isabel/PA (1971), Limoeiro do Norte/CE (1973), e Mossoró/RN (1974), onde ingressa, no Instituto Dom João Costa no ano de 1975. Retorna novamente a Limoeiro do Norte (1977), onde permanece até 1982, ano em que conclui o 1º grau no Liceu de Artes e Ofícios. Retorna definitivamente, com sua família à cidade de Mossoró. Conclui em 1985 o 2º grau na Escola Estadual Prof. Abel Freire Coelho. Em 1986 ingressa no serviço público, como técnico de biodiagnóstico do Hospital Regional Tancredo Neves, atual Tarcísio Maia. Conclui o curso de Ciências Econômicas, pela UERN, em 1991. Somente aos 34 anos, começa escrever e catalogar poemas e crônicas. Até então seu mundo literário se resumia à leitura e ao pensamento.
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