Cálice
Soberbo gole,
neste cálice de poemas.
Derrama versos
sobre temas
tão diversos
quanto os olhos que degustam
essas páginas.
Salpicam gotas
na leitura que embriaga.
Em preto-e-branco
se derrama entre capas
poesias declamadas
em silêncio.
Um gral de letras
consagrado pelo tempo.
Um sentimento
que sobeja de minh’alma.
Eis o meu cálice,
transborda em versos
que carregam o meu sangue.
Relatos
Eu abriria meus olhos
e escreveria relatos de alguém que vive
na incongruência dos próprios pesadelos.
Contaria segredos
de pessoas que lutaram indignadas,
por ser uma delas.
Não há estilo em minhas linhas tracejadas
na loucura;
uma figura assombrada com o sorriso falso de quem chora e ri.
Não há motivo para dormir na rua
e muito menos para acordar aqui.
Desvencilhei-me de caprichos tolos.
Um bezerro de ouro,
ídolo de uma fé pagã.
Acorrentaram os meus tornozelos
junto ao muro das lamentações.
Belos pés cristãos pisaram o meu corpo;
eu não estava morto a essa altura.
Em volta de minha cintura
puseram o cinturão da castidade.
A minha mocidade tornou-se uma iniqüidade.
A minha real vontade,
uma escanifrada anciã.
Os deuses se jogaram lá do céu.
Diziam os velhinhos encantados.
Abriu-se uma fenda neste charco
aonde uma caricatura indecente
que parece está contente, chora.
Quem amaldiçoou a minha hora,
corria em um camelo no deserto.
Plantou-se a céu aberto um mar de rosas.
Já não chovia ao findar a tarde,
no distante brejo.
Mandei um beijo para minha eterna diva
e nunca mais chorei de tédio.
Não coroei senhores de gravata.
Nem dediquei meus livros a insípidos glutões.
Talvez o português me traduzisse.
Em minha esquisitice,
rechaçaram meus sermões.
A luta em meu campo, foi marcada com a cal.
Puseram sal na sola dos meus pés.
Qual rei tu és?
O rei do carnaval.
Indignado chutei o futebol
e na rede adversária fiz mil gols.
As ruas se enchiam de silêncio noite adentro.
Pela janela se escuta o meu sono.
A mãe que acompanha sua filha ao cinema;
o bêbado que olha pro telhado;
o reprimido que se encontra encarcerado
em seu poço de problemas.
A sua solidão na cena é retratada
na peça ainda limpa do lençol.
Ele ou ela, põe os olhos na janela
para ver se alguém subia a escada.
O que seria do aroma, longe dela.
Ela, flor que abre bela no espaçoso jardim.
Ela é tudo para mim:
o resultado da soma entre cobertor e cama;
o frio que acompanha uma noite de inverno;
o amor que é eterno
no coração de quem ama.
Ela é circunspecção sem agonia;
uma boca que declama
a mais admirável poesia;
a perfeita companhia de uma luva, uma mão.
Ela é toda uma estrada além da curva.
A vontade é que me cura.
Não há sombra em meio à rua,
quando a lua se oculta na intensa escuridão.
Ao dedilhar um velho refrão,
recobrei minha voz
e a vontade de nunca calar.
Falo até demais, com as mãos no ar,
a gesticular além...
Numa poltrona de trem,
acredito que posso sonhar com nós.
Quem sois vós?
Ninguém.
Não foi minha, essa resposta.
Mesmo estando eu de costas, sei quem és.
És a dona dos pincéis
que pintaram minha cor,
uma única que sou.
Eu fecharia meus olhos
e apagaria relatos de alguém que morre.
Não contaria segredos,
por não ter o direito de vilipendiar sua
campa.
Eu vou dormir em sua cama
para acordar bem mais cedo.
Um pensador na guerra
- Não o mate.
- Por que?
Ele veio para matar;
por que deixá-lo viver?
- Não viemos para matar.
Viemos para vencer.
- Pensei que fosse uma guerra.
- Guerra,
não é mais que o domínio.
Sei que há vidas no caminho,
malsinados inimigos,
como nós.
- Como seremos heróis,
sem cadáveres pelo chão?
- Os verdadeiros heróis
estão cobertos por lençóis
atrás do muro da prisão.
- E as ordens do quartel?
- Ordem é resolução.
Se está em nossas mãos,
cabe a nós, esse papel.
- Ora, não me aborreça.
Você até parece Deus.
- Deus é apenas, não esqueça,
um movimento de adeus.
- Pelas mortes que causei,
a quem vou pedir perdão?
- Ao seu frio coração,
pela ilusão da lei.
- Tudo bem, não o matarei.
Mas, se um deles me ferir,
como devo então agir?
- Haja pelo coração,
apesar da reação interferir.
- Se seu golpe for fatal,
obviamente irei morrer.
- Não faz mal.
Se acaso não o conter,
mais do que um grande herói,
serás um mártir.
Simulacro
Feições guardadas pelo tempo,
olha através da tempestiva areia.
Areia solta, jogada pelo vento.
Sangue que jorra da estranha veia
e estagna num movimento lento.
Há uma cáfila ao entardecer.
Parece estar numa moldura, estática.
O simulacro, o que quer dizer?
Uma incógnita da matemática
que erigida quer permanecer.
Os hieróglifos marcaram sua base;
uma mensagem através dos séculos.
E até hoje, pouco ainda, se sabe.
Sua presença é cheia de mistérios.
A solução ainda é um quase.
Sob as areias do deserto quente,
seu corpo parece está enterrado.
Vai levantar-se! É o que a gente sente.
Porém, é apenas um pensar errado.
Um ser pagão que age diferente.
Sopra o hálito da noite tão fria,
e a sombra erguida, permanece lá.
Um beduíno não se assustaria,
pois suas preces são para Alá
que pela efígie o vigiaria.
O simulacro é uma visão insueta
que me deixou pasmo ante a fotografia.
O transmutei com o bico da caneta,
passando o que vi, para a poesia.
Retratei a sua essência em letra.
Ingratidão
A noite
era extremamente fria.
Eu já sentia
uma imensa solidão.
Sozinho,
era certo, dormiria.
E ao deitar,
quem sabe, ouviria
o bater de uma mão.
No leve toque,
indagaria:
Quem bateria
na porta
do meu rude coração?
Seria a mais doce
companhia
ou seria,
talvez,
a ingratidão?
O matuto
O matuto está triste,
cabisbaixo e pensativo.
Não encontra um só motivo
para saber se existe.
Tal canário sem alpiste,
preso a uma velha gaiola,
vendo longe a aurora,
sem ter ânimo pra cantar.
Com vontade de voar
para longe, ao horizonte;
a saudade o consome
antes mesmo de partir.
O matuto fica ali,
a pensar no que seria
sem a única companhia,
a choupana em que vive.
Tal amor só visto em versos,
o matuto é regresso
de um lugar que não existe.
Olhos verdes
Nunca esqueço
do par de olhos
que através do espelho
parecia eterno.
Da mesma cor e brilho
da palha da espiga do milho
quando amanhece,
após uma noite de inverno.
Nunca esqueço
dos lábios tocados em segredo.
Quiçá, pela cor dos olhos,
sinto o gosto de menta
que à boca adormece.
Aí a saudade aumenta
e o amor cresce.
Nunca esqueço
e até me aborreço
no sinal que me diz siga,
pois lembrando de seus olhos,
paro no meio da pista.
Nunca esqueço.
Acho até que enlouqueço,
quando na bandeira hasteada,
vejo os olhos na altura
do retângulo que tremula.
Nunca esqueço
que no matagal espesso,
eu me perco,
confundindo cada folha
com seus olhos verdes.
Nunca esqueço,
pela aléia, o passeio.
Ver na fonte,
o espelho que reflete o jardim.
Olhos verdes
que olhavam para mim.
Sem condição
Seus ombros à amostra,
me deixam insinuado.
Seu corpo ainda agora,
me deixa provocado.
Seus seios contornados
pela blusa,
me fazem sinal da curva
do seu corpo ondulado.
Seu jeito comportado
não me mantém à distância.
Na sua tolerância,
encontro o meu pecado.
Seus olhos não perturbam minha paz,
além do mais,
recebem meu recado.
Seu pare, deixa disso, mais cuidado,
só fazem aumentar o meu querer.
A dúvida faz crescer
minha ilusão,
que eu terei nas mãos
a chance de fazê-la entender.
Amar é mais que ter.
É aceitar querer
sem condição.
Desapontamento
À espera, no portão,
eu permaneço na calçada,
com um aperto no coração
e a porta escancarada.
De minha mão,
despenca a rosa despetalada,
pela ilusão
de rever a minha amada.
A espera é em vão.
A noite é fria e devassada
pela enorme escuridão.
A chuva é anunciada
com o ressoar de um trovão.
Tal qual devoto em oração
aos pés de uma enorme estátua,
eu permaneço na intenção
de espera-la.
E mesmo fora de estação,
demora, encharca e enfim, passa.
Uma sombra risca o chão,
a lua surge envergonhada.
O sol ensaia uma versão
anunciando a madrugada.
Distante, escuto uma canção,
a que marcou a nossa data.
Por não conter a emoção,
perco-me em lágrimas.
No bolso ponho minha mão,
retiro a carta.
Na certa a resposta é não,
adentro em casa.
Despenco em cima do colchão
no qual a amava.
Fora a maior decepção
da qual lembrava.
Um carro chama a atenção,
buzina e pára.
Como se fosse uma aparição,
ela entra e fala.
Dá-me a notícia, a voz chocada.
A dama que está em questão,
teria sido atropelada.
Digam ao mundo
Comunicar aos pósteros
e entre eles, eu.
Modular a mensagem
evocada no silêncio dos que não lamentam.
Será um futuro catastrófico
que nos espera
ou a redenção da terra
diante dos homens.
Nunca flagraremos nossas mães
renegando nossa carne.
Agora eu peço apenas que não dêem adeus.
Digam ao mundo:
- Estou à vossa procura.
Quantas delas morrem na áfrica.
Quantos olhos sem lágrimas
assistem seu agonizar.
Não falo de personagens em contos.
Falo de crianças,
entre elas, eu.
A quem devemos evocar perdão
ante a tenebrosa atitude de omitir-se?
Agora eu peço apenas que não dêem adeus.
Digam ao mundo:
-Estou à vossa procura.
Interesses
Longe dos meus parentes,
revi o campo em que pisava;
minas espalhadas sob os pés
da ganância exacerbada.
Quem tu és?
Por cada beijo na face,
uma lágrima derramada.
Em cada um, disfarce.
Dura vida.
Durei muito.
Idade e experiência em conjunto,
deram-me a prova
de que a ingratidão existe.
E sob a cova,
ainda amaldiçoaria minha estirpe.
Migração
É madrugada.
Voa no céu, em grupos separados,
algumas aves do verão passado.
Voltei há poucos dias para casa.
É apenas um regresso temporário.
As folhas espalhadas, do novo calendário,
são como plumas ao vento.
Tal como as aves eu sigo a estação
em um constante movimento.
Vou e volto
num empenho cronológico,
numa eterna migração.
Transtorno
Dentro de mim,
transtorno,
um déficit enorme
de atenção.
Eu ando na contra-mão
de um mundo torto.
Um caçador sem rosto.
Um rosto sem decisão.
Chamam-me de louco,
de homem-ilusão.
A minha auto-estima
é vão
que passa na porta aberta.
Percebo na certa,
detalhes ao meu redor.
Todavia, não sei de cor,
a minha lição.
Meus lábios dizem sim.
Meu cérebro,
não.
Último poema
Desde origem,
eu rabisco versos toscos.
Arabescos que me envolvem dia-a-dia.
São regados de tristeza e alegria
num canteiro
tão repleto de poesia
que fascina o coração.
Entre as rugas de meu rosto
e os vincos de minha mão,
se esconde minha idade.
Com a farpa da saudade
no meu peito,
vou perdendo o meu jeito
de viver.
Foram anos de peleja
que enrijeceram meus nervos
e nas dobras, os meus dedos
não sustentam a caneta.
Porém, eu sei que é a cabeça,
o verdadeiro problema.
E quem sabe, esse seja
o meu último poema
ou apenas,
mais um deles.
O pirata
Velho abutre que come
minha carniça, sem asco,
que não importa meu nome
e nem na vida, o que faço.
O velho abutre tem fome
e dilacera minha pele.
Temendo que outro tome,
com uma bicada ele fere.
Colado ao chão, vulto em larva.
Dissolvo-me na areia,
a qual o mar vem e lava.
Minha ossada se arrasta,
procura o que a vida inteira,
transformara em desgraça.
Saturação
Quem deveria escrever
as primeiras palavras,
eu ou você?
Qual de nós dois,
seria mais fiel
aos nossos atos?
Quantos retratos
resumidos numa única decisão.
Olhos velados
sob o toque da emoção.
Escuto sua voz dizer:
-Não dá mais.
E de repente, há uma paz
que eu não consigo entender.
O amor já não mexia
com o meu ser.
A vida é um ato conjugal,
enquanto um fato sepulcral
não vier surpreender.
Astronauta
Sou aquele astronauta
que procura companhia
nessa lua que me guia
na intensa noite fria,
na mais rude solidão.
Um poeta sem razão,
com sua fé abalada,
sua alma desgarrada
que caminha na estrada
à procura de harmonia.
Ledo engano, eu seria,
entre passos pela lua;
atravessando a rua
na qual minha pele nua
desejava se aquecer.
Um astronauta que vê
a eterna poesia;
não nos versos que eu fazia,
mas na incrível harmonia
que acabo de encontrar.
Volto à terra, pisar,
sem esquecer que existi
num mundo que nunca vi,
sobre o qual eu escrevi
em algum outro lugar.
Insulto
Escrevo à noite toda,
a observar a escada
que me levou, infinitas horas,
àquele quarto.
Todas as cartas foram amassadas
e depois queimadas
na lareira ardente.
Minha alma quente
se esfria
ao raiar do dia,
ainda chorava.
A tua culpa,
foram minhas lágrimas derramadas
após clamar por teu nome,
diversas vezes.
Como um retrato na parede
que observa os que passam
sem fazer conta de sua existência,
você me silencia,
depois de fitar-me.
E na escuridão,
teu rosto se desvaira
e tão amargamente
me insulta.
Um pescador
Saí bem cedinho para pescar.
Peguei o meu barco na beira do mar.
Escuto alguém, distante, gritar:
- Meu velho, não vá
- Meu velho, não vá.
Eu olho para casa;
não há ninguém lá.
Pensei ser as ondas do mar
querendo avisar:
- Meu velho, não vá
- Meu velho, não vá.
Eu iço a vela,
distante da praia.
Avisto uma arraia
que parece voar.
Em seu movimento me diz:
- Meu velho, não vá.
- Meu velho, não vá.
Pensei novamente,
foram as ondas do mar.
O barco balança
para lá e para cá.
O sol já começa a esquentar.
Avisto no céu
uma nuvem a passar.
Num estrondo escuto:
- Meu velho, não vá.
- Meu velho, não vá.
A chuva que cai
escurece o mar.
Diviso um corpo a boiar.
No meu desespero,
começo a gritar:
- Há um homem no mar!
- Há um homem no mar!
A onda o traz
em um arrastão.
Com o meu arpão,
consigo puxar.
Então reconheço
que o morto sou eu.
O eu afogado,
de olhos grelados,
me diz preocupado:
- Tentei lhe avisar.
- Tentei lhe avisar.
Custei a aceitar
que há muito perdera,
a vida no mar.
Um dia, em sonho,
expus a um poeta,
alguém que na certa,
a minha história
podia contar.
Soneto do amor às escondidas
Eu tenho um pouco de pressa
para encontrar uma rua.
Na rua, uma casa aberta.
Na casa, uma dama nua.
O tempo talvez, não meça
o grau de minha vontade.
Espero que nada impeça,
desejo de minha idade.
A taramela mantinha
a porta ainda fechada.
Jogo uma pedra da rua.
Sorte que ninguém vinha.
Um rosto vem à sacada.
Mais belo que a própria lua.
Velas
Eu acho
que a tal felicidade
é uma vela
que se acaba dia-a-dia,
assim como a vida.
E o toco que nos resta,
a idade sopra
com sua boca venenosa,
o hálito da morte
que nos apaga a chama.
Há velas
que já nascem apagadas.
Outras,
se derretem ao longo da vida
e parecem queimar para sempre.
A lenda de Jeshua
Eu caminhei entre pirâmides,
desafiei faraós
e sob meus lençóis,
dormiram anjos.
Eu derrotei gladiadores
em pleno Coliseu;
ajoelhei imperadores
aos pés de um só Deus.
Eu traspassei as muralhas da China.
Atravessei o canal da Mancha.
Manchei o santo sudário
com o meu sangue.
Meu nome
é esperança.
Eu conquistei castelos medievais.
Seus ancestrais,
em mim, resumo.
Eu sou o eixo central
que movimenta esse mundo.
Sob efeito
Acalentar-se ao sol
sob o efeito da cerveja.
Um copo sobre a mesa,
com espuma, feito o mar.
Na onda que me dá
essa loura servida,
um êxtase, uma alegria,
uma vontade de cantar.
O paladar me faz criar poesia.
Degusto a fria macia
que foi lúpulo a esperar
pela fermentação que já fazia
o álcool que iria embriagar.
Com uma caneta
e um guardanapo de papel,
faço o maior escarcéu,
à vista desse céu
juntar-se ao mar.
Não canso de esperar
pela noite fria;
pois sob a lua, declamo poesia
até que o sol possa voltar.
Convés
Foste meu caminho sem regresso
em um verso.
Minha poesia mais bonita.
Entre as estrelas,
rabisquei um só desenho,
o seu rosto,
como eu bem queria.
Foste a derradeira flor
perdida no deserto.
Em meu universo,
um farol de guia.
Arrancaste o aviso que dizia:
“Uma saudade”.
O vazio da idade,
preenchias.
Foste o colorido
de uma tela que eu pintava.
A mão que segurava o meu filho.
O espírito de um cético
que chorava.
A paz esperada
por um homem aturdido.
Foste o barco rijo
que sustenta a onda em fúria.
O pescador que nada
à procura de si mesmo.
Para mim,
a mais incrível criatura.
A doce loucura
do desejo.
Foste na verdade,
o meu mundo.
Hoje, na saudade,
apenas és
um velho convés
com o qual afundo.
À margem
Rostos que titubeiam
entre becos escuros,
enquanto a luz vermelha gira
sobre o automóvel.
Uma sirene esperada.
Uma vontade desesperada
de correr.
O mundo evita me ver.
Seria ver sua cara.
Sua própria cara no espelho da dor.
Fumaça, angústia e silêncio.
Tripé de minha verdade.
Na face,
bem mais idade.
No peito,
uma chaga,
o rancor.
O homem com a arma
O homem com a arma
não parece sadio.
Muitas vezes,
ele veio à calçada,
num eterno desafio.
Ele a conserva na mão
à espera de alguém.
Não parece estar bem.
Muito menos ter razão.
O homem com a arma
usa botas de cor preta.
Ele mexe com os olhos
numa espécie de careta.
Ele pensa que é um herói,
uma espécie de cowboy,
onde o bem vence o mal.
O homem com a arma
não é normal.
É um homem atormentado.
O estereótipo do soldado
que mata sem ver a quem.
Oração
Estou à espera
de um louco que fala;
de um outro que cala,
eu estou à espera.
Estou à espera
de algum outro que diga;
de algum morto que viva,
eu estou à espera.
À espera da terra
que me foi prometida.
À espera da antiga
razão de viver.
À espera da noite
que parece tão fria.
À espera do dia
para me aquecer.
Eu estou à espera
de uma nave do espaço;
de um homem de aço,
eu estou à espera.
À espera de olhos
que não vejam o que faço.
Trabalhar sem cansaço,
eu estou à espera.
À espera dos tempos
do juízo final.
À espera que o mal
se sujeite ao bem.
À espera também,
que não exista pecado
e que Deus e o diabo
não existam. Amém.
Sem resposta
Em que mundo vivo?
Perguntei mil vezes,
sem obter resposta.
Ninguém o sabe.
Desconhecemos as árvores,
as aves e ainda mais,
desconhecemos à nós mesmos.
Perguntaria aos nobres medievais.
Perguntaria aos eleitos.
Perguntaria aos decrépitos ancestrais.
Aos letrados em direito.
Perguntaria aos mendigos
e aos bastardos.
Aos que se encontram perdidos
e aos que se acham encontrados.
Perguntaria aos padres e aos ateus.
Teria inversa resposta
da razão e de Deus.
Perguntaria aos detentos e culpados.
Aos inocentes que são escravizados.
Perguntaria, enfim, à humanidade:
Em que mundo vivemos,
de verdade?
Moderninha
Não escuta as minhas queixas,
nem se deixa
enganar.
Onde anda,
antiga dona?
Eu preciso lhe encontrar.
Toma a frente,
quer pagar.
Sob a roupa transparente
quer ensinar a amar.
É só fico,
até mais,
depois de amanhã lhe encontro.
Passe sábado,
eu me apronto
e te levo pra jantar.
Onde anda,
antiga dona?
Eu preciso lhe encontrar.
Eu não posso na segunda,
é preciso trabalhar,
diz com naturalidade.
Ai! Que enorme saudade
do antigo e doce lar.
A tosse
Escrevo o que penso,
em silêncio.
Penso que os versos são meus.
Não há dono.
Não há posse.
Apenas o poeta tosse
os versos que não são seus.
UTI
Alcova branca.
Retalho de vida.
Mangueiras que suspiram meus gemidos.
Silêncio interrompido pelas máquinas.
Algumas vozes.
Alguns cochichos.
O arrastar de pés de pano e sandálias.
Sorrisos inibidos pela ética.
Moral estética
de um profissional cansado.
Picadas e zumbido de abelhas.
Casa sem telhas.
Uma escada sem sobrado.
Corpo despido, mal coberto
por ter feito um movimento involuntário.
Uma mão humana
de alguém que banha
e me livra de dejetos execrados.
Dom ou frieza.
Dor e tristeza.
O que faço eu aqui,
onde há lágrimas derramadas
entre os leitos.
UTI.
Eu
Eu sou um outro
entre os que me acham,
que esse eu
sou eu,
que sou eu mesmo
entre os que desejam,
que eu seja
outro
que não seja eu.
Afazeres
São tantos afazeres
e não há nem um prazer.
São tantos afazeres nessa casa
que eu esqueço de viver.
Meu filho me responde.
Meu marido não faz por onde
entender.
São tantos afazeres nessa casa
que eu esqueço de viver.
Vassoura, rodo e pano.
Fogão, pia e muito o quê fazer.
A vida onde está?
Só vejo desengano.
São tantos afazeres nessa casa
que eu esqueço de viver.
A filha, ainda pequena,
me tira a paciência.
De tudo, eu tenho que saber.
Onde está o caderno?
Um labutar eterno.
São tantos afazeres nessa casa
que eu esqueço de viver.
Acordo.
Já começa a rotina
que dura até o dia anoitecer.
Uma atividade que jamais termina.
Uma injusta sina
que me faz enlouquecer.
São tantos afazeres nessa casa
que eu esqueço de viver.
Soneto do ermitão
Procuro desfrutar essa vida,
vivendo escondido no anonimato,
no mais verde e denso mato,
como um santo numa ermida.
No nascer de cada dia,
vejo a luz no imenso lago.
Sem palavras eu me calo
quando o sol nele irradia.
Quando é noite enegrecida,
a lua nova é percebida
na água calma e iluminada.
A cabana que me abriga,
torna branda minha fadiga,
com sua porta escancarada.
O milésimo poema
Não é nenhum show,
nem estréia no cinema.
Não é nenhum gol,
nem prêmio da mega-sena.
Não é corpo infectado
que ficou de quarentena.
Não é nenhum cálculo
para solução de um problema.
Não é nenhum sermão,
nem celebrada novena.
Não é nenhum furacão,
nem a tarde mais amena.
Não é o dramaturgo,
nem mesmo o ator em cena.
Não é o frio noturno,
nem a tarde calorenta.
Não é tua solidão,
nem a mão que ainda acena.
É apenas o brotar de um grão,
meu milésimo poema.
A ilha inacessível
Por que a mãe ainda fala
com a filha,
se em sua ilha,
ela vira o rosto
e cala?
Somente à custa de esforço
e de palavras,
se atravessa esse fosso
de tempestuosas águas.
A juventude,
essa ilha inacessível,
com seu mar de inquietude,
torna quase impossível
conquistá-la.
Evolução
Sombras em cavernas,
mortas sobre lanças,
tornaram-se eternas
por meio de danças.
Conquistaram novas terras
através de matanças.
Desbravaram suas serras
por meio de andanças.
Criaturas modernas
de obesas panças,
de ações tão lerdas
e atitudes mansas.
Exílio
Vejo no rosto de quem chora,
a dor e o clamor de quem partiu.
Partiu para sempre,
foi embora.
Quem chora agora,
já sorriu.
Quem não lhe viu,
só tarda a hora.
No espelho, chora quem partiu.
Ainda espero sua volta.
Quem sabe mora
no Brasil.
Autoria
Eu estaria um dia,
em paz;
se meu eterno amor
sobrevivesse à mim.
Só assim,
nenhuma forma mais.
E nesse dia, enfim,
eu deixaria sinais
da enorme alegria,
em versos que jamais
seriam atribuídos
à minha autoria.
O anjo rebelde
Descer do céu não foi proeza,
forma dantesca
de alma cruel.
Aproveitou minha fraqueza,
ingênua presa.
Hoje, sou réu.
Rejeita os dogmas da igreja,
a mesma
que o libertou.
Enquanto minha face beija,
revela a página
que me enganou.
Eis o que o anjo ainda guarda;
meu satânico querer.
O meu desejo é sua arma,
é o seu poder.
O motivo que me cala,
não é o anjo,
é você.
Árvore desfolhada
Tal qual os galhos de uma árvore,
eu envergo-me
com o peso do silêncio e do fracasso.
Ainda resisto ao tempo,
tocando no solo talado,
onde não há frutos,
somente folhas secas
e vermes que se alimentam do passado.
Minha noite é sombria e demorada.
Minhas costas, às vezes, sedem
como a árvore tombada.
E tentando reerguer-me do chão que finco,
com afinco, o meu ser,
eu tento esconder as minhas mágoas.
No enxerto do querer, em ramo desfolhado,
sai um broto em solidão.
Minhas atitudes
como folhas de um galho emancipado,
mudam suas cores
na razão
e morrem na infinita incongruência
entre liberdade e insurreição.
Tato
Você não me enxerga
e também não me escuta.
No entanto, toca a minha face
e sente em três diferentes partes
o que falo.
Você anda descalço
e sabe como é o mar,
através da areia.
Esta é sua única maneira
de sentir.
Você é um ser profundo,
uma pessoa muito especial
que viaja de uma forma racional
perfurando o silêncio e a escuridão
do mundo.
E nessa imensidão,
está sempre só.
Todavia, através do tato
desata o nó
e se liberta
para a terra
dos sentidos.
Passatempo
Meu passatempo é literário.
Minha arte,
poesia.
Sou em parte
libertário,
como também
elegia.
Passo o dia
em meu quarto,
uma imensa cela vazia.
Entre dominós jogados,
sou a pedra duplo nada
que no momento oportuno,
toma conta da jogada.
Numa taça celebrada,
sou o líquido que derrama.
Sob o peso de minha campa,
eu sou luto
e mais nada.
Imorredouro
Ainda posso escrever,
mesmo que amputem minha mão.
Com os olhos,
pelo que vejo.
Pelo que sinto,
com o coração.
Não peço por piedade.
Nem imploro por perdão.
Não que seja vaidade,
é apenas decisão.
Mesmo que cortem minha língua,
meus versos não calarão.
E outras bocas, ainda,
na certa, declamá-los-ão.
Ferimentos
Ouço os gritos
de um povo que não chora.
Comovida,
vejo a tépida senhora.
Uma hora
atrás,
sua casta é dissolvida.
Uma questão resolvida,
nada mais.
As caveiras
não são marcas nas bandeiras,
são abantesmas
do novo amanhecer.
Nunca foram os piratas;
apenas ferimentos da espada
de quem usurpa o poder.
Só você
A quem devo olhar?
Em quem, posso me ver?
Não quero me espelhar
para deixar de ser.
Pra você ter que ganhar,
eu teria que perder.
Eu luto pra lhe encontrar.
Você para me vencer.
A quem devo perguntar?
Não queria me esquecer.
Mas esquecer é tentar,
tentar é sobreviver.
Pra você me enfrentar
é necessário viver,
viver muito além de mim.
Além de mim, só você.
Em plena luz do dia
Mesmo que eu pudesse desfazer as minhas [malas,
não poderia mais ficar.
Desfez-se o lar
na decisão daquela hora.
Não havia candura,
nem razão à altura
de nós dois
na durabilidade do agora,
na volatilidade do depois.
Havia tão somente,
dois caminhos diferentes
a seguir,
em nada convergentes.
E mesmo que um de nós
voltasse um passo atrás,
não poderia mais
o descobrir.
O amor perdeu-se ali,
em plena luz do dia,
com ele, a alegria
do sorrir.
Últimas lembranças
Na resistência infinita do mourão,
vejo as mãos
que um dia, o sepultaram.
O arame,
tantas vezes já trocado,
mantém-se frouxamente distendido.
A mesma voz ainda alcança o meu ouvido,
força voltar-me à procura do passado.
Vejo ao longe, o mais antigo telhado.
Continuo a descida,
sem compreender os meus passos.
É lá em cima
que estão suspensas
minhas últimas lembranças.
Triste milagre
Amar você
é tudo que importa.
É só abrir a porta
para me ver ajoelhado.
Não rezo
por estar o meu pecado
acima do meu erro,
além de minha alma.
Aquele que me acalma
é o mesmo que enlouquece.
De fato,
o amor ninguém merece.
É a mais alegre prece
e o mais triste milagre.
Talvez o mundo acabe
enquanto nos amamos.
Na esfera dos enganos,
você é a minha parte.
Raro entardecer
Não quis pensar,
apenas resolvi
que ia andar
por onde sempre a vi.
Em outro olhar,
eu vi o teu, sorri.
Sem entender,
a outra me acenou.
Palavra tola, amor,
para quem amava.
Eu caminho taciturno
como o raro entardecer
do dia em que a encontrara.
E mesmo deslocada pelo tempo,
ainda existe em mim,
a hora exata
de nosso alinhamento,
num eterno eclipse
lunar.
Disparates
Numa aldeia de doentes e loucos,
havia uma verdadeira lenda.
Um anônimo e estranho poeta,
conhecido por seus versos toscos.
Acreditava estudioso
de uma espécie diferente.
Viajava o mundo todo,
a procura do ser “gente”.
Seus diversos personagens,
entre eles um modesto,
autor de um só projeto
daquelas rudes paragens.
O surgimento da aldeia,
dizia um grande adulador,
foi há novecentos anos.
Há noventa, por favor.
Havia uma fazendeira,
que achava divertido
abrir e fechar porteira
para passar o marido.
Havia uma jovem calada.
Sua língua, quem comeu?
Já que ela não nos fala,
falamos você e eu.
Um pequeno coletor,
varria todo o jardim.
Gritava um beija-flor:
-Deixe um pouco para mim.
Não se sabia a verdade,
se ela já nascera um dia.
Havia a jovem inata.
Sua idade, qual seria?
A menina distraída,
de tudo já esquecera;
até mesmo que um dia
pediu pra viver, e morrera.
A bela virgem bióloga,
de todo bicho entendia.
Até que uma simples minhoca
deu-lhe uma rasteira um dia.
Sentia pena de tudo,
passava o dia animado,
acreditava que absurdo
era alguém ser maltratado.
Moça velha na janela,
não parava de fofocar.
Se acaso um dia ela pára,
vai danar-se a namorar.
Comia tudo, o glutão,
sai de baixo por favor!
Quando ele estava com fome,
era um terrível mau humor.
Papagaio friorento
passava o dia a reclamar,
quando o pingüim calorento
botava o circo pra gelar.
Queira o leitor desculpar
essa minha brincadeira.
Eu apenas quis mostrar
que também escrevo asneira.
Silente poente
Um dilema
que não tem mais jeito.
Uma bomba que explode no peito.
Um coração que arde.
Uma luva
em que a mão não cabe.
O mais silente poente.
Uma carta que não tem resposta.
A proposta
mais vil e indecente.
Um eterno demente,
isolado.
Mais volátil
que o éter derramado.
É assim a minha forma de amar.
Um passado que teima em voltar
ao presente.
Uma criança
Todos os meus dias
são enfado.
Além do meu escárnio,
o não sorrir.
Toda esperança no porvir.
Em uma fenda cai,
além do meu cansaço,
o meu fim.
Uma criança
toca em meu braço
e diz: - Vai.
Essa criança
me despiu de mim
e eu caminhei em paz.
Ainda mereço ser feliz
Vejo pequeninos
despojados
sob lâmpadas apagadas,
e mesmo assim,
ainda mereço ser feliz.
Vejo a raiz
de uma árvore desfolhada,
entre lâminas afiadas,
virar móvel que alguém quis,
e mesmo assim,
ainda mereço ser feliz.
Vejo a cicatriz
de uma face torturada
e reconheço seu algoz;
calo minha voz
por ver a sua mão armada,
e lá no topo da escada,
vejo o fim do meu país.
E mesmo assim,
ainda mereço ser feliz.
Vejo meus enganos
no espelho dos seus erros.
Passam-se os anos,
e o que vejo?
Que mesmo assim,
ainda mereço ser feliz.
O poema que eu quero
Quero um poema
que não fale de saudade,
onde a dor e a crueldade
não sejam fatos reais.
Que entre as páginas dos jornais,
seja relido;
não por tê-lo comovido,
mas por não sabê-lo mais.
Nesse poema,
que o amor não seja tema
para uma grande atriz,
e que a paz
não seja apenas um desejo.
Que o covarde perca o medo
de um dia ser feliz.
Que a verdade não escolha minha boca,
que escute uma outra
que ainda saiba o que diz.
Meu querido sertanejo
Nas palmas de tuas mãos,
tua história eu releio.
No rogar de uma oração,
meu querido sertanejo.
Na lembrança de um sertão.
Na sombra de um juazeiro.
No clarão do lampião.
No curral e no vaqueiro.
No inverno ou no verão.
No caminho do formigueiro.
Na colheita do feijão.
Na flor do algodoeiro.
Na enorme gratidão
de ter sido companheiro.
Nos teus filhos, na versão,
dos teus netos no terreiro.
Nas noites de solidão.
Nos dias que metem medo.
Na saudade de uma mão,
na pitada do tempero.
No canto do azulão.
Nas verdades, nos segredos.
No esturricar do chão.
No último e no primeiro.
Oito décadas de emoção,
foste em parte e não inteiro,
em pedaços de ilusão
como todo brasileiro.
Ilhado II
Não seria o amor
tão venerado,
seria vago,
sem ter uma companhia.
Se não houvesse
o ser lembrado,
amor negado,
em suas lágrimas,
ao seu lado,
afundaria.
Sob as águas
de um mundo afogado,
em meio ao lago,
uma ilha surgiria.
Assim, veria
a si mesmo,
amor ilhado,
como escravo
de sua própria companhia.
Gatilho
Era mesmo preciso
arrastar o meu corpo
entre valas de esgoto.
Na favela eu nasci.
Um pequeno indeciso,
com uma enorme ferida
que deixou cicatriz.
No meu mundo, eu via
quanto medo fazia
não poder ser feliz.
Nunca soube escrever.
O meu dedo era o giz
que marcava com um X,
quem devia morrer.
Era mesmo preciso
esconder o meu rosto
e o profundo desgosto
de um homem sem brilho.
Num império ilegal,
minha força era o mal.
Minha fé, o gatilho.
Goles
Minha senilidade de alcoólico
causa o sofrimento alheio.
Num choro incontido e derradeiro,
vê o meu último gole.
Vejo a superação de uma doença
e o prazer em subserviência
a um lugar eternamente melancólico.
Minha sensação
é que o tempo
passa e arrasta meu futuro.
Quando o vejo num profundo escuro,
peço perdão
por todos os meus goles.
Assim, como as ruínas
pela areia espalhada com o vento,
ocultam-se as marcas de meus porres
e volto a devastar a minha alma
sob escombros de uma triste vida,
mergulhado no líquido que embriaga
na entrada de uma porta sem saída.
Rude
O que um homem faria
sem seus modos rudes,
sem suas calças compridas;
entre palavreados,
sem verbos errados,
sem as mãos erguidas;
sem o desapego às suas amantes,
sem os erros constantes,
farras e bebidas;
sem as flores pisadas
por suas botas de couro;
sem as extravagantes risadas,
sem o dente de ouro;
sem o desprazer pela vida?
O que um homem faria
sem seu preconceito,
sem a dureza no peito,
sem sua grosseria;
sem seus atos inconseqüentes;
sem suas músicas indecentes;
sem a velocidade
que o aleijaria;
sem menosprezar o prato em que come
e sem dar seu nome
ao seu filho bastardo?
O que seria de um homem
sem sua tola frieza,
sem sua falta de gentileza,
sem seu mundo amargo?
Sobrevivente
Levo minha dor
por entre campos de concentração
e lágrimas no coração
por ter perdido a cor.
Campos sem flor.
Corpos que brotam do chão
rachado de rancor.
Não há abrigo que possa ocultar
o que passou.
Peço por favor,
que tentem escutar
uma triste e dolorosa canção
que fala de amor,
que fala de perdão,
que não fala de mim,
que sou apenas um fim
de antemão.
Churrasco
Goteja, a gordura
de um animal sangrado.
O fogo atiçado
na brandura
de meus nervos.
O sangue, a pouco lavado,
toma outro aspecto,
e eu por perto
salivando desejo.
E entre goles,
a conversa em tom alto,
a discreta fumaça,
o cheiro da cachaça,
os amigos ao lado
e o prazer de revê-los.
Alpendre
Sob a telha mal botada,
uma brecha
que ao sol não pôde deter.
Sob a casa assombrada,
uma sombra,
que não se assombra
quem a vê.
Entre armadores de pau
e pilares de argamassa,
olho o vento que espalha
a areia no quintal.
Vejo a vaca no curral.
Da coivara, a fumaça.
Minha avó achando graça
de algo que ela não entende.
É assim que a vida passa
bem debaixo do alpendre.
Vínculo
A comida que esfria
no fogão apagado
e a espera infinita
pelo seu doce amado,
desarmaram
o amor que sentia.
Mais um dia,
entre tantos,
roubado.
Onde estaria ele àquela hora?
Encharcado de bebida
como outrora.
Um sorriso enganado
de uma velha senhora.
Que vazio,
não ter passado.
Páginas em branco,
sua triste história.
Suas lágrimas não disfarçam suas mágoas.
Suas mãos fechadas
desobedecem sua vontade.
Ainda seria possível nessa idade,
recuperar o tempo perdido?
Um desespero escondido
dentro de casa.
Um ser anônimo.
Desse vínculo crônico,
tornou-se escrava.
Eu quero
Eu quero acordar bem cedo,
passar as mãos em teu rosto
e também em teus cabelos;
sentir o gosto de sal e sol em teu corpo.
Eu quero ver refletir como um espelho
sob o céu azul,
a água que escorre em teu corpo nu,
e esquecer meus pesadelos.
Eu quero mergulhar em teu pranto
para dizer que te amo tanto
que não posso mais viver.
Eu quero enfim, morrer
e em minha lápide escrever
o mais triste verso,
aquele que não fala de regresso,
apenas diz para esquecer.
Eu quero renascer um dia,
para reencontrar na alegria,
a minha humilde atitude
de ajoelhar-me aos teus pés.
Quero adorar quem tu és,
não pelo teu sorrir,
mas pela minha quietude
em te ver partir.
O impostor
Um valente sedutor,
conquistador exigente.
Comentava toda a gente:
- É um homem vigoroso.
O poeta cauteloso,
observa indiferente.
Isso não é condizente
com seu trejeito jocoso.
É um grande traidor;
sempre uma mulher diferente.
Não dá a elas valor;
ao amor é indiferente.
O poeta percebia
com os seus olhos sagazes,
e para si repetia:
- Ele gosta é de rapazes.
Chamas e solidão
Eu estava tão sozinho,
um passarinho sem ninho
que não podia voar.
Tendo eu criado asas
desde o primeiro piar,
via o meu jardim virar
uma torre de fumaça.
A fonte em que eu bebia
tornou-se lama escorrida.
Vi meu ninho se queimar.
Entre chamas e solidão,
na palma de uma mão,
fui tirado do lugar.
Num jardim ensolarado,
lembro do ninho queimado
e da mão a me salvar.
A morta II
Era outono,
o vento soprava seu frescor.
A sua mini-saia encardida,
deixava à mostra
suas pernas tortas
como as árvores desfolhadas
do matagal onde fora assassinada.
Havia sangue impregnado em suas roupas
e nas folhas secas
onde seus cabelos desgrenhados
acomodavam o seu crânio exposto,
enquanto a docilidade de seu rosto
parecia,
com seus olhos arregalados,
pedir inutilmente:
-Deus, não me deixa morrer.
Afazeres II
Já lavaste o rosto,
menina?
O sol já vai raiar.
Bota a água no fogo,
Menina,
pro café eu tomar.
Já botaste o alpiste,
menina,
para o teu sabiá?
Vá aguar o terreiro,
menina,
pra poeira baixar.
Onde está meu chinelo,
menina?
Quero me levantar.
Põe mais lenha no fogo,
menina,
pro feijão cozinhar.
Vai lavar as panelas,
menina,
pra fazer o jantar.
Apaga o candeeiro,
menina,
que eu já vou me deitar.
Peço a tua bênção,
mamãe.
Vou também me deitar.
Que Deus te dê destreza,
menina,
pra amanhã trabalhar.
Com as duas dormindo,
leitor,
posso a história acabar.
Bem-te-vi
Não percebeu?
O bem-te-vi estava morto.
Seu canto ouço,
longe, quando havia vida.
Faltou comida.
Virou comida.
Viu, as formigas sob as penas?
Teve pena,
ou apenas deu às costas por não ver uma saída?
Estranho silêncio
faz seu bico na areia.
Na velha teia,
a aranha se balança;
em sua dança,
faltou o canto de alegria.
Quase um bom-dia,
um desejo de esperança.
O revoltado
Revoltado com tudo,
com todos, consigo mesmo;
com tudo que ainda impõe medo;
com tudo que lhe faça mal;
com aqueles que dizem amém;
com os que não crêem também;
com aquele que se vê, é louco;
com aquele que se diz normal.
Revoltado com a própria revolta,
com o mundo que gira à sua volta;
com tudo que é dito importante;
com tudo que é tornado banal;
por não ter se revoltado antes
da sua revolta final.
Reavivadas
Não faça de seus passos
uma simples caminhada.
Sinta o vento
na antiga estrada,
o que dizem as aves,
as árvores e o caminho.
E mesmo estando sozinho,
não esqueça de sorrir.
Todas as pegadas
reavivadas,
devem ir
a uma pequena ilha
que se encontra situada
no oceano do existir.
O interruptor da sala
Reservo-me
a compor pedaços de letras
que falam de amor.
Um dote perdido,
um beijo esquecido,
uma abelha sem flor.
Escorre o mel
do favo apertado na mão.
Em pingos,
do céu
cai a água que enche
o rio de qualquer mês.
Nomes fictícios.
Acreditamos em santos,
que são vocês.
Entre artifícios,
fogos,
artífices que se encontram em prantos.
Rebelados,
revelados em um negativo,
e na tomada fecho o circuito
com meu dedo positivo
e ilumino a sala,
enquanto a vala do esgoto
está a céu aberto,
seu corpo descoberto
e pútrido.
Quem será o primeiro?
Todo dia
é a mesma fumaça
que se dispersa
no café que esfria
na caneca.
O jornal
não me dá alegria.
Mas, a crônica lida
faz-me achar graça;
a autora foi muito esperta
numa crítica que disfarça.
Ao dobrar e guardar o jornal,
sinto o peso da vida real
entre os meus dedos.
Quanto à vida, tornou-se banal.
Tanto medo
desse mundo que espera, lá fora,
pela hora
de quem for primeiro.
Busto
O meu rosto cinzelado
no estuque de madeira
é a mais triste maneira
de me ver.
Não importa
de que forma fui moldado.
Nem importa
de que forma vim morrer;
se entre credos e marias,
dentre iníquas poesias
ou no talhe do querer.
Sem meus braços,
meu abraço vou perder.
Pouco mais que a cabeça,
que o mundo não me esqueça
sem me ver.
Eis um tronco de pau oco
sobre a viga,
como um totem adorado,
erigido pelo fado,
renegado por você.
A luz que vem do quadro
Na escuridão,
vive quem não pode ver.
Não poder ver
é não poder enxergar.
Para enxergar
é preciso saber ler.
Para saber ler
é necessário aprender.
Para aprender,
basta alguém para ensinar.
Seja na infância,
como adulto ou idoso;
a educação
é o mais nobre legado.
O tempo todo,
há alguém do nosso lado,
o professor,
uma luz que vem do quadro.
Na paciência,
com extremoso cuidado,
imprime à voz,
sua ofuscante doutrina.
Benevolente
nesse duro aprendizado.
Caminho andado
sobre passos, que ensina.
Luz que ilumina
o caminho aos letrados.
Que recrimina
sempre com nova lição.
E compreende
que o verdadeiro sábio,
num eterno aprendizado,
vive em comunicação.
A colméia
Numa grande extensão de terra,
há uma enorme colméia
dividida em duas classes:
operária e zangão.
O zangão é o enjoado,
com seu quepe na testa quebrado
se diz o dono da lei,
com empáfia e pose de rei.
Engraçado é ver um zangão
dizendo: - Sou autoridade.
Não sabe ele na verdade,
que não passa de um bestalhão.
No enxame de zangão,
destaca-se o preconceito.
Para eles não tem jeito,
é uma regra sem exceção.
Toda operária tem direito,
que é sempre violado.
O zangão fica irado
e não tem nenhum respeito.
Há operárias marginais
que deveriam ser presas
e aguardar condenação.
Porém, seria pedir demais,
pois o pulha do zangão
exagera nos maus tratos.
Para ele é condenado,
mesmo que tenha razão.
Gosta de meter a mão
ou chutar com suas botas.
O zangão é um idiota
travestido de machão.
As abelhas operárias,
pela violência e o medo,
vêem cenas arbitrárias
e as guardam em segredo.
Operárias traficantes
têm o trato diferente.
Os zangões ficam gentis,
com a cara sorridente.
Quando uma operária voa,
detonada no asfalto,
zangão que cuida de tráfego,
uma multa não perdoa,
para ele é coisa pouca.
Humilha e dá um castigo,
quando não um estampido,
morre uma operária à toa.
Os zangões são perigosos
com suas mentes perturbadas.
Corruptos e maliciosos
mantêm as operárias assustadas.
Zangão é despreparado
para tão grande missão;
manter a ordem e a lei
e ainda ser respeitado.
Um zangão condecorado
por bravura e heroísmo;
uma operária torturada
entre gritos e gemidos.
Há uma distância enorme
entre operária e zangão;
enquanto um tem o porte
a outra nada na mão.
Se uma operária denunciar
como agem os safados,
vai na certa encontrar
resistência e maus tratos.
A colméia tem problemas
de violência e de droga,
mas se não existisse zangão,
seria outra, a história.
E as operárias marginais?
Perguntam seus defensores.
Leiam as páginas dos jornais;
eles próprios são os autores.
Como ficam as marginais
sem controle e sem lições?
Se contarmos, dá bem mais,
com a existência dos zangões.
O sistema esta falido
pelo abuso do poder.
O zangão está armado.
Operárias a sofrer.
Agride o inocente;
o culpado sempre apanha.
Entretanto, a lei é diferente
e o zangão não a acompanha.
Invade o casulo alheio
sem ordem de sua rainha.
Se a operária reclamar
é levada na horinha.
Ele se acha diferente
e também superior.
Onde o zangão arranjou
essa indiscreta patente.
O zangão tem urticária,
diarréia e dor de dente.
O que o torna diferente
é sua mente perturbada.
Tenho pena da operária
e do filhote, coitado.
Pois, o zangão tem prazer
em mantê-los humilhados.
Quando usa o seu ferrão,
uma operária é atingida.
Por sua corporação, o zangão
é uma abelha protegida.
Acha que é merecido
e deve ser respeitado.
Todavia, não respeita a operária
que está do outro lado.
Quando a operária é filhote,
admira o zangão,
acredita que ele é forte,
mas é apenas ilusão.
A fraqueza é o que faz
um zangão ser violento.
Ele não deseja paz,
pois na paz, não tem talento.
Seu talento é a fúria,
a revolta, o preconceito,
a estupidez, astúcia
e a falta de respeito,
a violência e o sarcasmo,
a soberba e a maldade,
o abuso de poder
por sua incapacidade,
autoritarismo e fuga
do que na verdade é,
uma abelha revoltada
que não aceita quem é,
um inútil desprovido
de amor próprio e consciência
que em troca de humildade,
oferece violência.
A colméia então seria
um paraíso de glória
se não houvesse zangões
nos anais de sua história.
Obstinados
Sob o tempo,
os que se falam e beijam,
os que se queixam,
os que não querem rir.
Depois de algumas horas,
o silêncio torna-se
aterrador.
A flor
brota entre espinhos.
Na sua testa,
ainda escorre o vinho
de um ato de fé.
No campo,
o joio mata o trigo;
um inimigo
em superação.
Enquanto em vão,
à ampulheta viram,
perdem os amigos
e morrem em solidão.
Cordel
Eu registro no papel
o mais singelo poema,
a poesia de cordel,
onde o mote vira tema.
Cordelista é bacharel
que rima sem ter problema.
Tal qual beata em novena,
fica o povo a escutar
dois cantadores em cena,
cada um em seu lugar,
tornando assim uma lenda,
a poesia popular.
Faz o país se encantar,
a poesia do matuto.
Com seu rude linguajar
ainda é o mais astuto.
A rapidez em pensar
torna-lhe um homem culto.
Para quem pode estudar
não leve como um insulto.
Para um sabiá cantar
não precisa de estudo;
já nasceu com o bê-á-bá,
o sabiá e o matuto.
Do interior do nordeste
para o resto do país,
coisa de cabra da peste
que mantém sua raiz,
o cordel ainda se veste
com o talhe da matriz.
Às coisas de sua terra,
não cansa de elogiar,
os rios, os vales e as serras,
a mata seca e o mar.
História de como era
o sertão, põe-se a contar.
Eu só tenho a aprender
com tanta sabedoria
de um povo pobre, a sofrer,
que não tem melancolia,
que leva o tempo a escrever
a mais humilde poesia.
O cordel é uma lição
ao mais ilustre poeta.
A fonte de criação
que no cordelista desperta
é a essência do sertão,
o cheiro de sua terra.
Posso agora descansar
sem peso na consciência.
Tive a honra de versar
sobre essa nobre ciência,
a poesia popular;
cantador me dê licença.
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