Poesia no lixo
Há o riso, o amor, a liberdade,
uma prisão, a dor e a saudade;
também há flores, um barco e até o mar;
folhas, o vento, o tempo e um lugar.
Há incertezas, suas razões, confirmação,
o universo, um mundo inverso, indagação;
há quase tudo,
há todo um mundo,
o mais profundo de um coração,
dentro do lixo de um poeta.
O quadro mágico
Revi alguns amigos
num quadro mágico:
Henrique
poderia ser oitavo;
Jorge
mataria um dragão;
Ciro
seu irmão,
talvez romano;
não há engano,
Carlos,
um ator em aflição;
Mário
poderia ser Andrade;
Eudes
desenharia saudade;
Gladis
seria um gladiador;
Durval,
um verdadeiro gigante;
e Leonardo,
um Da Vinci sonhador.
Idem
Olhos vivos
que só vêem o que querem.
Molho de chaves na mão,
que abrem as mesmas portas.
No calendário,
um dia é igual ao outro.
A boca sopra
os mesmos verbos.
Ações cotidianas,
levantar,
andar,
sentar,
deitar,
são repetições humanas
(adestramento coletivo de infância).
Pernas que circundam
num leva e traz sem destino,
que se abrem
dando a vida,
que se juntam
face à morte.
Somos os mesmos,
temos a mesma cabeça,
e na busca dos desejos,
nunca esqueça,
quem fala mais alto
é o nosso coração.
Grita em repetição
cada face, como louca:
-Eu sou uma.
Tu és outra.
Somos a mesma expressão:
Olhos, mãos e boca,
pernas, cabeça e coração.
Pronomes
Sou eu
o que você é.
Ele é
o que eles são.
Tu és
o que vós
também sois.
Assim somos nós,
pessoas
não tão retas
como o caso.
Banco de praça
Estou sempre acolhendo
a quem passa,
simples banco
de praça.
Ouço pranto
entre lágrimas derramadas,
desencanto,
gargalhadas,
desunidos em reconciliação.
Casais jovens e velhos
abraçados.
Entre planos
que não são concretizados,
vejo loucos disfarçados
de sãos,
diferenças que os tornam tão iguais.
Entre gestos insanos,
ninguém mais
me parece humano.
Olhos vendados
Meus olhos copiosos de tristeza
não vêem o que se passa aqui;
enquanto vão chorando na vileza,
acreditam que um dia irão sorrir.
No viciado tinto da obediência,
escravizados a aceitarem o fim,
se perdem numa alheia consciência,
sem questionar o não e o sim.
Na devoção de uma vida em crença,
temem na experiência,
não distinguir o bom e o ruim.
Quem sabe abrindo eu a minha mente,
meus olhos
de repente,
possam ver?
Velho farol
Velho farol!
A sua luz foi o sinal
que me guiou
em meio ao temporal,
salvando-me do fatal naufrágio.
Velho farol!
Hoje, abriga meu infortúnio.
Nada me resta, só olhar.
Tudo afundou com minha nau.
Minha tripulação leal,
levou-a o mar.
Velho farol!
Talvez, tenha sido um presságio,
por duas noites ter sonhado
com a solidão de um farol.
Velho farol!
Que é simplesmente sombra ao dia,
à noite acompanha a lua,
e alumia
a escuridão deixada pelo sol.
Velho farol!
Até que duramos demais.
O tempo lhe deixou destroços
e a mim, um punhado de ossos.
Mostrou-nos que somos mortais.
Heroína
Das páginas relidas de um romance,
lembro-me de uma pequena frase
que falava de esperança e liberdade,
de uma personagem sem nome.
Sua vida atrás das grades
era apenas uma via.
Para ela, os seus dias
seriam flores na janela,
e suas noites, quem diria,
um amante que partia.
Desnortearam seu rumo,
seus amores.
Fortaleceram seu mundo,
suas dores,
madurando a menina.
Não é preciso guerra,
nem vilões,
nem invasores na Terra,
ou vulcões,
para que haja uma heroína.
A vida é feita de cenas.
Basta a maturidade
e duas palavras apenas:
Esperança e liberdade.
Mutante
Que sejam longos seus braços,
como tentáculos,
para alcançar sua presa.
Um dente saliente na boca,
um hematófago que alcança o que deseja.
Ficar a vida toda pendurado
de cabeça para baixo
no escuro de um quarto de hotel.
Quem sabe um pouco de mel
possa cessar esse zumbido de abelha,
e que a cera produzida no ouvido,
possa calar o uivo
de um lobo enlouquecido?
Andar pelas paredes numa teia,
viúva negra
de um morto que é comido.
Ser parte homem
e diversos animais
é o que nos faz
um ser mutante.
Livre arbítrio
Para Deus e o diabo
eu vou falar,
se alguém quer meu corpo
para ocupar,
disponível agora estou,
como casa alheia para alugar.
E minha alma,
se acaso alguém quiser,
que decidam na sorte,
o que der.
Se precisar, assino um papel.
Tanto faz,
o inferno ou o céu,
só não queria deixar
esse lugar.
Dos castigos,
a morte é o mais cruel.
Fogueira
Entre toras cruzadas
na raiz do fogo,
vê-se a fé do povo
crepitar em brasas.
Cabelos em tranças,
feito palha de chapéu.
Sob o escuro céu,
tradição em danças.
Dias de afã,
santo em fogueira,
queima a noite inteira,
cinzas do amanhã.
Felinos
O som constante
da agonia de quem deseja.
A febre acesa
no murmúrio penetrante.
A dor no golpe
de um carinho cortante
sobre o telhado
de uma cama tão coesa.
Luz ofuscante
abre os olhos na tristeza,
depois de um último
suspiro
inebriante.
Sobras
A abertura do olfato,
de fato,
o mau cheiro a vedaria;
se em meio ao lixo
fosse encontrado
o seu pão de cada dia,
que não nos dá
nem hoje, nem nunca.
Se eu não vejo saída,
essa é a única.
Se eu não comer sua sobra,
eu sobrarei.
Se é para comer sua hóstia,
eu rezarei.
Na escadaria da vida,
eu sei que somos iguais,
porém, em degraus diferentes.
Talvez eu sinta demais,
por que você nada sente.
Tristeza
Dorme ao lado de sua criança,
cheia de esperança
que o amanhã seja melhor.
Amanhece
com uma osga na parede,
próxima ao punho da rede,
movimentando a cabeça
sempre a lhe dizer que sim.
Levanta-se e água o chão,
acomoda-se num tamborete
olhando o filho na rede
enquanto a fome e a sede
assolam seu coração.
Olha pela janela,
vê uma nuvem no céu,
um novo fio de esperança
ou uma nova ilusão.
Fica indecisa
entre desacreditar-se
ou apenas entregar-se
à tristeza e solidão.
Um acaso
Todos os sentimentos existem de fato.
Podem ser vistos em atos.
Para ver o amor,
olhe uma mãe com o seu filho.
Para ver o ódio,
veja numa guerra, os feridos.
Para ver a tristeza,
olhe para alguém que perdeu um ente [querido.
Para ver a pureza,
olhe para a criança que dá um doce sorriso.
A alegria pode ser vista
quando uma menina ganha sua boneca [preferida.
Para ver a devoção,
olhe para alguém ajoelhado aos pés do altar.
Há muito mais para se ver, basta olhar.
E tudo isso se chama vida.
A vida é uma dádiva da Natureza.
A Natureza é obra do acaso.
E o acaso, por acaso, não é Deus?
Não, Deus é um acaso.
Uma terra
Casas demarcadas
em respeito à terra
anteriormente altercada
por almas massacradas.
Para descontentamento de seus olhos,
corpos
ali sepultados,
famílias inteiras de assentados,
seus pais, mulheres e filhas.
Recordações de família,
milhas e milhas
distante.
Terra agora verdejante,
antes não se tinha nada,
antes banhada de sangue,
terra agora abençoada.
Quase
Quase me esqueci
que ainda havia tempo
de encontrar o que perdi;
relembrar
o que não lembro.
Quase perdi o tempo
que ainda havia.
Não vi,
naquele momento,
que no tempo me perdia.
Quase acreditei
que ainda havia tempo
de saber
que nada havia.
Solidão de poeta
Não há diálogo,
não há correspondência;
sou o exílio de um poeta
em essência.
Falta-me o toque de uma opinião,
uma crítica, um elogio,
na intenção de iluminar
minha poesia
que é ilusão, desafio,
uma chama sem escuridão
para se notar.
Sou poeta em solidão,
não tenho par.
Suspeito
Assistia a tudo, calado.
Apenas a observar.
E todos sabiam que eu tinha razão.
Um olhar perdido, cansado
de se revelar.
Quem diria,
eu que nada dizia,
parecia gritar
o nome do verdadeiro culpado.
No seu rosto estava estampado:
-Fui eu.
Era um dia quente, um verão cruel;
não havia nuvem no céu.
Um imenso sol a nos irradiar.
O suor pingava do rosto
por causa do esforço.
Eram doze homens ao todo,
a se permutarem.
Quando o céu empalideceu,
foi um alvoroço,
um dos doze apareceu
morto.
Como explicar que o morto era eu?
Fuga
Encontrei, enfim,
um lugar para me esconder,
foi dentro de mim.
Virei as costas
para o mundo à volta.
À minha frente,
só uma saída,
enganar-me
com a doce ilusão
que ausente
eu mudaria.
Vivi
cada vez mais perto de meus medos,
cada vez mais longe dos demais.
Sofri
em um transe,
vendo minha imagem sem espelho.
Perturbava-me
ter que voltar atrás,
ter que voltar a ver-me
como sou,
humano.
Domingo
As conversas de casa
no almoço,
discussão de família,
alvoroço,
um domingo qualquer.
As cadeiras balançam no terraço,
som de vozes dispersas,
cansaço,
gritos de mulher,
choro de criança.
Fim de tarde,
despedida,
bênçãos de fé.
Pensar
Cada minuto da vida,
vale a pena pensar
na vida que ainda há
e em tudo que permanece.
Na flor
que um dia se abrirá,
no olho
que hoje não a percebe,
na mão que a colherá
e no lugar
que ela floresce.
Pense na vida que segue,
não na sua,
pense na lua
que continua tão linda
a brilhar.
Pense na vida que há.
Pensar na vida que finda,
não vale a pena pensar.
Porta
Porta
que se abre e fecha
a cada um que passa.
Maçaneta empunhada
que escancara.
Casa aberta,
cama descoberta,
pouca iluminada.
Porta que quando se fecha,
assiste calada.
Porta agora empurrada,
entreaberta.
Porta sempre aberta,
mesmo cerrada.
Prefiro
Se é para me espiar
de rosto permanente,
prefiro um olhar diferente
a me espreitar.
Se é para usar
os versos de forma divergente,
prefiro então rimar.
Talvez no mar,
encontre um par
de olhos
que enxergue na profunda escuridão
de não
enxergar.
Garoto de programa
Ao se vestir de mim,
corpo indecente,
me envaidece.
Quando estou ausente,
de mim se despe.
Eu não devasso
o meu colo
para rogar por piedade,
e sim,
para saciar minha vontade.
Enquanto estou nu,
sou objeto,
sou uso e abuso,
sou curvo,
sou reto.
Sob a penumbra da luz
sou cruz,
credo!
Quebra-cabeça
Não existe
tudo que existe.
Parte de tudo que existe,
não existe.
Esta parte de tudo que existe,
que não existe,
existe
como parte de tudo que não existe.
E tudo que não existe
também não existe.
Por que de tudo que não existe,
existe parte,
como existe a parte de tudo que não existe,
que não existe.
Assim,
tudo que existe,
existe em parte
e tudo que não existe,
em parte existe.
Avô
O suor escorria pelos riscos de sua mão
feito água nas frestas de um chão
rachado.
Olhos fechados
feito o caixão
onde havia um par de olhos
velados.
Tão longe podiam ver,
tanto que o espiaram,
sempre pra lhe proteger,
quantos cuidados.
Não consegue se conter,
põe as mãos no rosto,
suas lágrimas de dor
são por causa do avô
amado.
Aminigos
Aparente platéia sorridente
nas angústias de um dia de trabalho.
Nos calçados um par polivalente,
o orgulho de haver-se suportado.
Mãos nas costas,
as mesmas falariam,
sendo as mesmas
as postas que comiam.
Não se entendem
e se entendem por demais.
Sua frente é sábia e eloqüente.
É grosseiro e indiferente
se ausente,
se presente, um a mais.
Na tristeza a dor que contagia,
a magia de logo se curar.
Um afago, a cara de alegria,
efusiva maneira de falar.
Doces beijos, um travo em suas bocas;
mentes loucas,
amigas imortais.
Mas, morrem quando deixadas soltas.
Quando afastadas,
são armas letais.
Relógio
Instrumento a corda
movido por mãos alheias,
que nos diz as horas
de alegria e de tristeza.
Pulsa sobre nossas veias,
seu coração de bateria.
E o pai da aviação no pulso o colocaria.
Na parede da cozinha,
por cima da geladeira,
esquecido em suas horas,
recoberto de poeira.
Olhos me espiam, escusos,
de cima da antiga cômoda.
No vazio do quarto escuro,
uma voz dentro me chama.
Nada mais, enfim, espanta,
sinais da modernidade.
Marcaram o tempo no tempo,
um tempo de pressa e de espera,
de solidão e saudade.
Repetente
Alguém vestido de palhaço,
um descontentamento permanente,
e nessa brincadeira, de repente,
um olho machucado.
A inteligência está em repouso absoluto.
Um sedimento de tristeza se deposita no fundo da alma.
Alguém perdeu a calma.
Com a imensa força do absurdo
esqueceu de pensar,
mais um osso fraturado.
Para desgosto de seus pais em suas casas,
um outro com o álcool se deflora.
Com a preguiça da ressaca
esquece a hora,
e mais um dia, o procuram na escola.
Um louco alucinado,
tremenda inteligência ali perdida,
a sua vida está entorpecida
com o poder da droga.
Os nossos filhos se dedicam
à uma vida irracional,
de perigos e conflitos.
Torna-se natural,
é nossa história.
A velha roupa na gaveta, esquecida,
agora é usada novamente.
Aquele mesmo olhar no descendente,
um vago olhar de crise existencial.
Talvez, você tivesse esquecido,
não é bonito,
mas é a vida real.
Mãos postas sob a fé incontestável.
Os jovens dias perdidos na desordem cerebral.
Livre dos vícios, mas não do fanatismo.
Perde a razão na hora de falar,
quer condenar
sem ter condenação,
quer salvação
se é livre para pensar.
Usar a cordura é raridade nessa idade.
Agredir somente o medo.
Viajar por entre páginas infindáveis
e aceitar a vida e seus segredos.
Adoração,
somente à liberdade.
Talvez, tanta energia acumulada
implode sua própria consciência.
Em vez de fazer versos ou ciência,
entrega-se a uma vida desregrada.
São camaradas
no palco das idéias absurdas.
Assim, se coadunam no desleixo.
A mão no queixo não os faz pensar.
Nos resta apenas esperar
que ultrapassem todas as barreiras,
com sua idiotia corriqueira
consigam enfim chegar.
Já que todos nós tivemos que passar
por esse trecho da estrada,
numa repetitiva caminhada,
nos vemos regressar.
Não há nada de diferente,
é apenas um ato repetente
em uma faixa etária de nossa existência.
Além da curva
Senhores que vejo agora,
entre horas,
donos de um mar de dúvidas.
Com luvas,
suas senhoras se isolam do frio.
Arrepio,
alma nua,
carne crua salgada ao sol,
dor no corte da ferida aberta.
Na terra inundada,
água evaporada em nuvens.
A caatinga cheira a mato molhado.
Um paredão de açude desabado.
No badalo, um gado que perdeu seu rumo
feito fumo na boca que sopra o fumado.
Além da cerca, há uma estrada,
uma curva acentuada,
um acento de madeira,
um bananal,
lá fica a minha terra natal.
Uma brincadeira junina,
uma faca de cozinha enfiada
sai com a lâmina manchada,
não de sangue,
mas com o nome da amada,
bananeira esfaqueada.
Um cachorro que acompanha a carroça.
Uma prosa,
candeeiro apagado com a rotina.
O dono do cavalo selado,
finado finda.
Por luas, de luto ficamos.
Moça, queira ser dona da roça,
da nossa colheita.
Um feixe de lenha, uma queixa,
queixume de quem não se deita
por excesso de sonhos.
Pé na estrada,
alpercatas levantam poeira,
e o acúmulo de bosta de gado
deixa o seu cheiro na chuva.
Além da curva,
molhado,
deixo às costas,
o adeus.
Cenas
Um velho amigo me acena,
um carro usado à espera,
à frente de uma antiga loja.
Novas pessoas na cena
que faz parte de um quadro
emoldurado pela janela
da sala que me aloja.
Desço degraus recontados,
paro diante da rua.
Agora, eu faço parte
daquela mesma figura.
Mas nunca me vejo nela.
Agora, vejo do quadro,
a minha própria janela.
Estou em cenas opostas,
mas nunca ao mesmo tempo,
ocupo um lugar no espaço.
Em cada cena, um momento,
deixo-as às minhas costas,
hora um ou outro lado,
qual moeda em movimento.
Ninguém nos avisou
Ninguém nos avisou
que era utopia
pensar que algum dia
o mundo mudaria sua cor.
Que no jardim da vida,
ainda restaria uma flor.
Ninguém nos avisou
que tudo é ilusão,
que cada coração
é uma bomba que explode em nossas mãos,
e que o nosso céu
é apenas um engodo no papel.
Quem tem percepção,
sofre a decepção
de ver sem mel,
o favo do amor.
Ninguém nos avisou,
por que é um de nós.
Perdemos o bom senso e a voz.
Quem sabe se o vento
não traz, em algum tempo,
à razão,
que não podemos ter
compreensão do mundo?
Ninguém nos avisou
que nossa existência
nem mesmo a ciência ou a religião
a tira do vazio sem direção.
Se vale a pena ou não, não é problema seu.
Para a vida, não importa quem viveu.
Se quer acreditar para aplacar a sua dor,
acredite seja lá no que for.
Ninguém nos avisou
que temos que sonhar,
pois só em sonho é possível explicar.
Mãos e bocas
A tua mão
e a minha
entrelaçadas
numa perfeita harmonia.
A tua,
frases escritas.
A minha,
linhas traçadas.
A tua boca,
da minha
não se separa.
Não há uma boca sozinha,
há duas bocas
caladas.
Mãos e bocas
ocupadas.
Esquecidos no tempo
Nas muitas marcas do passado,
não há pegadas do homem comum.
Seus esforços,
quase sempre explorados,
estão em formas de belíssimas criações:
templos, muralhas e complexas construções;
um legado
que custou as suas vidas.
Os seus nomes,
jamais foram registrados.
Suas almas
no tempo, esquecidas
pelos deuses por eles adorados,
Caminharam pelo tempo
de encontro ao eterno esquecimento
de suas vidas pessoais.
Como esses ancestrais,
caminhamos nós.
Espírita
Enquanto apreciava aquela vista
na popa de um antigo barco,
num súbito movimento se desvia,
desequilibro-me e caio.
Para minha surpresa,eu não nado,
as minha mãos estão na direção
de um velho caminhão
na estrada, disparado.
E de repente, numa curva não há tempo,
ainda tento desviar o animal.
Todavia, a carroceria em movimento
arrasta-me para baixo da encosta.
Escuto uma voz às minhas costas,
alguém me diz: - Vamos para casa.
E ao abrir os olhos, estou num trem
que lança uma imensa nuvem de fumaça.
Eu vejo então, o trem num túnel entrar.
Mas na saída, estou de volta ao mar
no mesmo barco que ainda me leva.
Achei que fosse um sonho, mas não era.
Segundo um médium amigo da casa,
eram as minhas vidas já passadas,
repassadas em uma regressão.
Levanto-me da cadeira em que estava.
Se era realidade ou ficção,
depende de acreditar ou não.
Ditador
Não temo ser cruel.
Não aspiro ao céu,
sou um ditador.
Conheço a falta de pudor
e a dor
de um conquistador.
Não dei chance ao rei
e nunca darei,
serei o meu senhor.
Agora sou um louco alucinado,
e diante do espelho da vida,
tento ver
meu reflexo existencial.
Sou tão mau quanto pareço.
Subjugo a utopia,
sou berço da tirania,
sou amado e odiado
e nunca esqueço
de que sou o que sou.
Imponho o medo e o terror.
Sou contra a democracia,
sou dono da burguesia.
Onde piso não há flor,
não há riso, só lembrança.
Apaguei a esperança,
a luz de cada sonhador.
Mas, não consegui por a mão,
até essa minha idade,
no sonho de liberdade
que há em cada coração.
Quermesse
Há um pároco
que chama de novo,
para falar de tudo
que já havia dito.
Chama o povo,
dito por não dito.
Em frente à igreja,
na terra pisada,
há barraquinhas improvisadas,
há comidas típicas e bebidas,
há prendas que são leiloadas,
há cenas aborrecidas,
há um homem bêbado,
há uma mulher grávida,
há um dom Juan e suas namoradas,
há sempre um grupinho numa calçada
falando da vida, quase sempre alheia,
há alguém sorrindo escandalizado,
há um outro sério e envergonhado,
há um céu imenso,
há uma lua cheia,
há uma dispersão neste aglomerado.
Quem dera
Quimera de vida,
a minha quem dera,
fosse quem fosse.
Quem era
que se escondia
da caixa de Pandora,
para não ser alvo
da ira mitológica
de uma lança sem mira
ou de uma flecha perdida
vinda do arco de Eros?
Quimera de vida,
fui atingido na mesma ferida
por uma flecha escolhida
e uma lança sem rumo certo.
Papai Noel
A inocência
é um grosso véu
que nos tapa a visão.
Eu fazia o meu papel
de aceitar uma invenção.
Uma vez,
vi papai Noel
viajando sem direção.
Uma noite
ele cai do céu
numa estrela,
rasga meu chão.
A verdade é como fel
amargando o coração.
Porém, na boca,
ainda sinto o mel
dessa doce ilusão.
Feito a sombra de um chapéu
que me cobre a razão,
uma parte de mim
diz sim,
outra parte de mim
diz não.
Passos
Cada passo
é um movimento de carne e osso
na direção do acaso.
É o meu, é o seu, é o nosso.
Cada moço
que se encoraja na vida,
por uma breve ou incessante conquista,
é um vencedor.
Cada homem
que acredita no caminhar comum,
que somos todos por cada um,
é um sonhador.
Apesar do oposto caminhar,
a humanidade mantém laços
na esperança de um dia parar
e rever os seus passos.
Vaticínio
Uma profecia
que viajou no tempo,
adormecida
nos braços do vento,
desperta
em estilhaços.
Explode a própria vida
num vago olhar
que vê nascer a lua.
Sob as fagulhas
de uma fogueira cósmica,
sol e chuva
em guerra,
um caldo vivo
repovoa a terra,
o asteróide que mudou de cor.
Velho amigo
Uma pessoa comum,
mais um, a tentar não se afogar
nessa gigantesca praia da vida
com suas marés altas e baixas
e sua imensidão incompreensível.
Porém, a sua lua parecia bem maior
que a das outras (como tantas outras).
Distanciava-se do burburinho
que havia
naquela noite vazia de sonhos,
era um pequeno grupo
que ali se encontrava.
Em seu caminho,
sentia um cheiro proibido de fumaça.
E na distância,
seu vulto percebia
que quanto mais distante ia,
mais de si, se aproximava.
O que mais o fascinava no mundo,
era não poder compreendê-lo,
muito menos, explicá-lo.
Calo-me
para pensar em meu bom e velho amigo.
Folhear
Parei
para folhear a minha vida,
nela havia
algumas páginas em branco,
falhas de uma amnésia real.
Em busca do meu ideal
de vida,
tristeza e alegria,
encanto e desencanto,
como um livro de poesia.
Não tentarei reescrevê-la
sem pranto,
foi no desencanto
que conheci a utopia,
e mesmo em pranto
nela sorria.
Pena
Aliviou sua gente
ao gritar:
-Inocente!
Palavra ausente
em muitos corações.
A dor física na garganta,
conseqüente,
à sua leviana execução.
Essa é a boca
que prega a justiça.
Essa é a mão
que viola a ação.
Pena de morte
a quem morre de pena;
ao que prega o ódio,
absolvição.
Essa é a “grande nação”,
só entre aspas,
por ser pequena e baixa
em sua razão.
Essa é a farsa,
usar a farda e conter a podridão.
Por na cadeia
uma língua, uma cor,
uma ideologia, uma religião,
seja o que for.
Caçando almas em meio à multidão,
pregando o amor
a uma pátria de estrelas,
a qual seu brilho
cegou sua visão.
Poema em campo
Não preciso de um poema,
preciso de um verso apenas,
para dar o pontapé inicial.
Está aí, não é tão mau.
Assim, começa o meu poema, o jogo.
É meu o ataque, não há outro,
assim não vou me defender.
Pois ganho eu, não há você.
Eu digo isso sem reserva.
Sou o meu técnico, na certa.
Agora, estou no meio campo,
vou discorrer um outro tanto.
Meu atacante é a caneta.
O meu gramado é de letra,
plantado numa folha em branco.
Vou devagar, assim eu canso.
Minha torcida, os leitores.
Não tenho contusão, nem dores.
Cada gol, um novo verso.
A partida, um sucesso.
Um jogo e tanto.
O poema ficou pronto.
Observador
Preciso ver o sol
antes de pôr-se
atrás desse lençol
gigante.
O que aos olhos
parece distante,
à pele,
fere com ardor.
Parece até mudar de cor,
visto no horizonte.
E quando o gelo derrete
em minhas mãos,
ponho na boca
o líquido transformado.
À tarde,
os raios de sol
são retocados
num colorido que o ar
pintou.
A emoção de ver
tamanho quadro
enche meus olhos,
alivia minha dor.
Centelha
Os cabelos soltos,
regados
pela luz solar.
Suas lembranças o acordam
do letargo.
Um pesadelo ainda resta
a arpoar
sua lustrosa testa
e sua mísera vida.
De repente,
em lágrimas e suor,
sua alma espelha
o sol nascente
como uma centelha
na espera de um mundo melhor.
Espera
Estava eu confuso,
alheio ao burburinho,
tal passarinho sem ninho
num vai e vem
sem destino.
Estava eu sozinho
no meio de tanta gente,
numa infinita
demora,
um tempo sem tempo,
sem hora,
um passear sem caminho,
um caminhar diferente.
Estava eu na espera
sem mesmo saber quem eu era.
Queria que não fosse
agora.
Estranha imagem
Não sei o que me aconteceu
diante do espelho;
eu não acreditava,
aquela minha imagem
que ali estava,
olhava mais a mim
do que a olhava, eu.
A sua curiosidade
era latente,
descobria-me tão profundamente
que eu mesmo me desconhecia,
é que
dentro de minha agonia,
nela via-me
sorridente.
Excelso
Sob o chapéu,
o delírio da mente.
Um passo à frente
na forma como se expressa.
Um par de lentes,
por trás, olhos docentes.
Quem seria essa
Pessoa,
eternamente poeta?
Destino
Taça quebrada
que se brinda
a vida,
agora, vira
arma temida
que provoca
a morte.
Disputa a sorte
de quem vivo fica,
de quem fica e sofre.
Líquido vermelho
que se esvazia
na mão do caso
que o acaso
escolhe.
A última centelha
Talvez, não seja bom
nos elegermos,
pois nós, os ideais,
corremos risco.
Somos ainda
o último lampejo;
só tenho medo
de nos apagarmos,
e em nós,
as cores do arco-íris.
Sem ele,
a tênue chama da utopia
não será percebida
por nossa íris.
Enfim, a escuridão
da desistência
nos levará ao fundo do abismo.
Experiência
Sublime ser
que nasce e cresce
em suas mãos.
Esporos de minha carne
em contaminação
pela maçã mordida,
pela razão na vida.
Uma experiência evolutiva
mal sucedida;
um fungo demente
que se espalha lentamente
em sua direção.
Navegador
Navego em mares que não vou
em minha nau de pensamentos.
Percorro o mundo no papel,
guiado pelos sentimentos.
Nunca ganhei um só troféu,
mas fui ao céu,
domei os ventos.
O leme é minha emoção,
a direção,
os meus momentos.
Sou sonhador,
navegador de pensamentos.
Choupana
Entre paredes de barro cru,
sento-me numa esteira de palha
tal qual o telhado
que atalha
a chuva de meus pensamentos.
Minhas promessas
não são para o vento,
mas quem sabe,
ele alivia esse lençol de frieza?
E à porta
de meu abrigo de sonhos ilhados,
olho à distância,
esse pedaço de terra
que encerra meu mundo
nessa serra sem fim,
limitando-me.
Felicidade é conter-se
de vontades.
Choveu
A chuva que cai
não machuca
a terra queimada
de sol.
Lençol
de areia molhada,
poeira assentada
na mão do mormaço.
Um brilho no chão.
Cansaço.
Sertão perfumado,
sereno.
À noite, fogueira apagada.
Cancela de estrada,
rangendo.
Espera.
Esperança mantida.
Lembrança que um dia choveu.
Ciclo
De uma flor
nasce um fruto,
desse fruto nos servimos.
As sementes desse fruto,
no chão, introduzimos.
Haverá germinação.
Essas plântulas vão crescer,
belas árvores serão.
Novamente, um florescer
numa próxima estação.
Novos frutos pra colher,
uma nova refeição.
E as sementes fecham o ciclo,
replantadas
pela nova geração.
De um amor,
um ser
que ao conhecer
uma bela flor,
vai reescrever
com um novo ser,
a lição do amor.
Consolar-se
Acalentei saudade,
saudade que senti.
Sem ti,
acalentei a mim.
Não consegui
reconfortar a dor.
Dor,que dor,
é a dor do amor.
Não é tão fácil assim,
acalentar a si.
Coma
Quero voltar,
talvez já seja tarde.
Além do mais,
não sou o único a partir,
nem o primeiro a querer voltar.
Querer voltar
não é acovardar-se,
é rever-se.
Levei um susto,
não por ser mortal,
mas por vê-los tão mal
sem mim.
Quero voltar
pra que não sofram mais
assim.
Só vejo flores,
não vejo o jardim.
Parece que estou longe demais,
tarde demais
para voltar a mim.
Convivência
De tanto ver o lado da sujeira,
comer ao lado da lixeira,
sinto-me lixo,
negativo revelado na miséria.
Sou mesmo, o lado avesso na história.
Sou distinto,
emoldurado na memória.
Sou prolixo.
Meu instinto
mergulhado na amnésia.
Meu caminho,
um contínuo caminhar de ancestrais.
Libertei-me do domínio
dos demais.
Sou agora,
um a mais
pela trilha da revolta.
Uma volta
que circunda o poder,
evitando apodrecer
o lixo.
Dizer
Às vezes, pensar é sofrer.
Metade de mim, você.
Um cheiro no ar, delirar.
Um doce querer, reviver.
Em nosso jardim,
as flores não falam de mim,
só lembram você.
Razão para eu dizer,
outra vez,
você.
Sou eu que lhe peço a mão.
Você que me diz o sim.
Sinal para eu sonhar;
em vez de me acordar,
acordo você em mim.
Razão para meu viver,
outra vez,
você.
Cadafalso
No cadafalso,
cada degrau é falso.
Cada um que sobe, má sorte.
Que desce, é morte.
Bem mais forte
que meu pescoço
quebrado.
Nas minhas mãos,
as marcas são poucas.
Troco meus pés pelas mãos,
minhas mãos são outras.
No cadafalso,
sou outro falso.
Sou falsa vítima,
enquanto o culpado
me assiste no palco
do cadafalso.
Em um sistema falso,
constantemente falho,
o cadafalso não falha.
Eu piso em falso,
e o cadafalso me cala.
Tipóia
Um par de punhos
de cordão,
feito a mão,
a sustentar no ar
o meu corpo.
Dependurado em armadores
numa extensão de tecido,
a aliviar
minhas dores
de amores
perdidos.
Rede que pesca comigo,
meus sonhos.
Tipóia
que me apóia
na preguiça.
Urbano
Por trás do muro,
ainda existe mato,
e pelas grades da janela
dá para ver a liberdade.
De fato,
é uma querela
que não tem idade.
Parecemos mudos,
pois ninguém se escuta.
Uma história longa,
uma vida curta,
infelizmente
não veremos o final.
Qual de nós
Você me acorda cedo
para me ver ir embora.
Eu chego em casa tarde,
encontro ela vazia.
Pensei que fosse eu
aquele que partia.
Porém, mais tarde ainda,
você está de volta.
Mas quem começa, finda,
o ciclo do adeus.
Você perdeu a hora.
Pergunto-me agora:
-Qual de nós
perdeu?
Religiões
No dobrar do sino,
o povo vai sorrindo,
mesmo desamparado.
Dando louvor em hino,
a multidão
vai seguindo
um louco alucinado.
Sob o sol do deserto,
morrendo a céu aberto,
sentindo-se livre,
mesmo escravizado.
O povo
é de certo,
seu próprio carrasco.
Simplesmente viver
Viver,
maravilhosamente incompreensível,
todos os sentidos
e não há sentido
em si.
Morrer,
pavorosamente indizível,
todas as opiniões
e não há razões
em si.
Viver e morrer
é preciso,
viva
e esqueça o castigo,
que é simplesmente morrer.
Seresta
Goma de mascar
faz bola.
Bola de bilhar.
Brilho de estrela
à noite,
seresta ao luar.
Gole de bebida
entoa
conversa de bar.
Passos entre mesas,
beijos,
casais a dançar.
Fim de festa,
desencanto,
sol nascendo,
chega o sono,
hora de pagar.
Há muito mais
Dar ordens
é muito mais fácil
que obedecê-las.
Contudo, para dar ordens
é preciso sabedoria,
e por não tê-la
é que a história
foi assim, escrita.
Há muito a ser dito
e mais ainda a ser lido.
Se está no bico da caneta,
no papel preso na prancheta,
ou mesmo dentro da cabeça,
talvez, no eco de uma consciência,
no grito triste da ausência,
ou no simples aceitar,
onde está, não sei.
Porém, sei que há,
basta acreditar.
Coralina
Cora
cara,de vergonha.
Vergonha de não ler
Coralina.
Cora ainda,
no meu entender.
Corante,
tinta que pinta,
pinta versos
de menina.
Coral que ali se aninha
e num bote poético
me fascina.
Agora,
meu rosto cora
ao ler uma linha
de Coralina.
Cânticos
Cânticos,
vibrações de cordas vocais,
vozes em corais,
em som
uníssono.
Cânticos,
traduções de notas musicais,
soma de sinais
distintos.
Cânticos,
revelações de sentimentos reais,
pulsos venais,
um dom
infinito.
Nômade eremita
Quem jamais parou,
não ficaria,
um lugar seria o fim.
Caminhar sozinho,
necessita.
Sua vista, enfim,
não se limita.
Sempre a viajar
pelo mundo, incerto,
pela vida.
Entre trilhas vazias,
pelas vilas.
Entre pás de ferro,
pelas linhas
de trem.
Entre sonhos diversos,
pelos versos
de alguém.
Do lar
Dobrou a língua
ao dobrar a roupa.
Saiu de casa
para não ficar louca.
Usou meus lenços
para enxugar as lágrimas.
Pôs as idéias
sobre o travesseiro.
Surpreendeu-me em seus pensamentos.
Deu-me um tempo
ou deu a si mesma,
a mesma chance
que ela nunca teve
de poder viver.
Aplausos e vaias
Os aplausos
são para quem fez rir
e fez chorar também.
As vaias, de onde vem?
Quem não gostou,
sua vez.
As luzes nos focalizam,
nos destacam individualmente
no palco da vida.
Ao mesmo tempo,
estamos na platéia
aplaudindo ou vaiando a nós mesmos,
atuando, sorrindo ou chorando.
Aquele que vaiei, sou eu,
eu atuo muito mal.
Agora, quem me aplaude sou eu,
sou meu próprio fã.
Preciso de um divã,
urgente.
A dama e a flor
Uma flor de senhora,
toda noite,
era minha eterna companheira.
Bem cedinho,
quando abria a janela
e olhava passivo, o jardim,
era ela
numa flor que abria-se para mim,
com as pétalas
repletas de perfume,
que eu tinha certeza,
era ciúme.
Exalava um cheiro
sedutor,
era o mesmo
que vinha do vazio de minha cama.
Uma dama
que de dia, era flor.
Uma flor
que à noite, era dama.
Afogado
Atravessei a nado
o lago da mentira,
momento algum eu vi
do que foi dito, algo.
Diante da vaidade,
tão perto do que é certo,
na margem do regresso
não havia verdade.
Difícil travessia
com tantos ao contrário,
e a todos parecia
que eu era
o afogado.
Vergonha
Pelo desgosto do pai
que vê seu filho
guiado
por mãos erradas.
Pela mulher que chora
diante de seu filho
com as tripas de fora.
Por seu amigo de infância,
outra criança,
filho do vizinho,
que agora, sozinho,
foge pela estrada.
Pela menina
que escova os dentes
na porta da frente,
com um copo de água
na mão,
esboçando um sorriso
sem graça.
Por seu irmão
que não vai à escola
por ter que pedir esmola
na praça.
Pelo bêbado veterano
que vive jogado,
mas insiste que é decente,
só que a sua própria gente
já não o ver assim.
Pela senhora que ora,
pedindo para Deus
mudar aquelas cenas
obscenas
e ter a metade
da piedade
que ela tem.
E por você também,
que não enxerga
um palmo à sua frente.
Expressões perdidas
A nação
que escuta o próprio hino,
movimenta a boca sem cantar.
A bandeira,
o mais forte símbolo,
já não mais representa o lugar;
suas cores não fazem mais sentido,
hasteada
se perde pelo ar.
Expressões que ninguém dá mais ouvido.
Pátria minha,
derrotada sem lutar.
Sorte
Uma ave silenciosa,
pousa
nos braços de um jacarandá.
Seu filhote pia à toa,
quando a ver se aproximar.
Solidão de ave
que talvez prescinta
um olho a mirar,
com um pio frio de morte,
anuncia ao seu filhote.
Antes do som do serrote,
uma dor vem arrancar
dos braços da velha árvore,
sua velha amiga ave.
Sem poder lhe segurar,
o velho jacarandá
tomba com o profundo corte.
Somos todos responsáveis
pela sorte
da árvore,
da ave
e do filhote.
Congênito
Quando nasci,
em vez de chorar, sorri.
Infeliz, por que és tão feliz?
Talvez por viver
em um mundo caótico e neurótico,
feliz com sua infelicidade.
Eu não consigo me conter
de tanta felicidade.
As vezes que choro é por não ser triste.
O meu sorriso se desfaz, mas não desiste.
Diante das misérias, as lágrimas limpam a alma;
depois vem a calma
trazendo de volta a euforia
nas primeiras felizes horas do dia,
continuando até ao anoitecer,
quando enfim,
minha felicidade dorme.
Alguns sonhos tristes,
fora da realidade
de minha própria felicidade.
Tendo ou não o que fazer,
tenho vontade de correr
e arrancar de minha raiz,
a semente que me faz tão feliz.
O que devo fazer,
se o grito em mim contido,
apesar da dor,
é de prazer?
Será que quando eu morrer,
o meu último suspiro
vai ser
uma risada?
Coleta
Talvez eu tenha encontrado
bem mais do que merecia.
Colhi uma flor do mato
que no jardim não florescia.
Uma mão sentia o orvalho,
a outra estava vazia.
No peito foi redobrado,
o aperto que havia em mim.
A dor de não ter lembrado
que amar seria o meu fim.
Expressivo olhar
Expressivo olhar
de uma bela dama,
a empalidecer minha alma,
a corar minha face.
Uma mão no queixo,
um disfarce,
onde expõe a boca
para me beijar.
Fica em seu lugar,
a doce lembrança
e a esperança
de vê-la voltar.
Todos os meus dias, fico a procurar
pela face dela,
em cada janela que vejo passar.
Nunca mais a vi e fui infeliz.
Pois em cada dama
que encontrei na cama,
eu pude notar
que havia o mesmo
expressivo olhar.
Opinião
O que seria de você sem discordar?
uma marionete com voz em falsete,
que acha feio, mas usa um bracelete
que é para assim, a moda acompanhar.
A hipocrisia vai um dia lhe dominar.
Fazê-lo sorrir com boca alheia,
de uma piada de mau gosto e feia,
só para agradar.
Sua opinião deve ser respeitada.
Ninguém é obrigado a concordar.
Uma competição pode ser empatada,
não importa perder ou ganhar.
Toda opinião pode ser mudada,
certa ou errada, não faz diferença.
É bem melhor dizer o que se pensa
do que seguir uma opinião formada.
Ser racional é poder questionar,
dizer que não, que sim, talvez,
que nunca ou está bem.
Um indivíduo que pode pensar por si só, deve opinar também.
Enclausurado
Ao olhar a rua
pelas grades do portão,
aumenta a dúvida:
dentro ou fora da prisão?
Os cadeados, as fechaduras,
toda uma vida em armadura.
Ter medo de altura é pura ilusão,
ao rés do chão é que o perigo se afigura.
Quem é honesto ou ladrão,
já não há mais distinção;
isso é loucura,
a vida virou ficção.
Ninguém mais sabe o quanto custa.
A lei ficou sem ação,
com as próprias mãos, é injusta.
Pelas grades da prisão
aumenta a dúvida:
dentro ou fora do portão?
A culpa é sua.
Deserto
Já não escrevo,
não porque tenha me faltado idéias,
mas faltou tinta à caneta.
No meio do mar de letras, forcei-a
a nadar em busca de poesia.
Porém, o sangue azul em suas veias,
já não havia.
No universo dos versos
não sei se eu fiz o certo
(É certo que eu sabia
que a vida sem poesia
é deserto,
noite e dia.
À noite não há estrelas.
Sem estrelas não há guia.
A direção a seguir,
não tinha como sabê-la.
Ao dia eu cegaria
olhando o céu em fogueira),
concluir esta poesia
usando outra caneta.
Aeroplano
Passos incertos,
olhos postos para o céu,
um pequenino caminha sem direção.
Ave gigante, é apenas um avião
num vôo rasante.
Vê o seu ventre de flandre
que o assusta
por um instante,
mas recobra a emoção.
De asas abertas,
ele pousa à sua frente.
Tão fascinado
por vê portas e janelas,
e por trás delas,
por vê gente.
O sol de antanho
à fuselagem irradia,
fazendo voltar ao dia,
em que um aeroplano
seu destino aterrissou.
A chegada
A fonte de esperança
que brota do choro de nossa criança,
transborda
em lágrimas que inundam a sala,
e em nós, a voz embarga.
Nos olhamos,
e em nossa lembrança,
voltamos ao dia em que começamos.
Aquele beijo que foi dado outrora,
selava agora,
o nosso destino.
A sós
Entregue ao sono está o nosso filho.
Estás perdida, deixa-se levar.
Encontro a paz nesse teu sorriso.
Meu corpo tremido,
teu doce gemido,
ai que vontade de morrer de amar!
Perco a voz, sussurro no ouvido.
Um cheiro místico a alucinar.
Tento calar a voz dos sentidos,
minh'alma grita em busca de abrigo.
Corpo estendido, sem poder lutar.
Cumplicidade, somos mais que amigos.
Juntos passamos por dor e sorrisos.
Já não há nada que faça mudar.
E a tudo, o nosso amor resiste.
Entre nós não existe
um só,
somos par.
Procissão
Cabeças e pernas
superam-se ao cansaço da longa caminhada
por entre ruas e calçadas.
A multidão vai rezando uma ladainha indefinida,
no meio dela
os pingos de vela
alvejam as mãos da santa.
A fé nas contas de seus terços,
pressionados pelos dedos,
a exorcizar todas as suas maldades e vícios.
Cânticos de um coral afinado pela fé.
Um fanatismo crônico disfarçado pela necessidade de crer.
Concentrada e espremida,
de volta a seu templo,
a turba alcança o ápice de sua devoção,
de mãos dadas e corações distantes,
mentes unidas numa força inebriante
de oração.
Após a dispersão,
cada um regressa às suas tarefas infindáveis,
ao lamento de seu dia-a-dia,
ao seu mundo de gloriosos e miseráveis,
às suas tristezas e alegrias.
Anônimos e famosos
desejosos de sobressairem-se
até mesmo onde deveriam ser humildes.
Dia após dia,
retiram os seus pedestais de santo,
e mais uma vez no outro ano,
voltam a construí-los com a participação de seu próximo,
e seu próximo com a sua.
De volta, a turba
recomeça a procissão.
Mais um ano, outro aniversário,
superou a anterior,
são os comentários.
Serão sempre devotos,
e de voto em voto
não dão conta que as contas de seus terços
não pagam suas dívidas,
não saram suas feridas,
não param com a dor
da falta do amor comum.
Desdém
Cresci e me perdi
com os pés arraigados
na miséria.
Revi-me num garoto
que por um outro
futuro,
ainda espera.
Um homem amargurado
que fecha os olhos
para a dor à sua volta.
Já não há mais revolta,
sou agora,
um ancião solitário.
Bons olhos
Aos bons olhos de Javé,
somos maus,
matamos o seu filho.
Animais!
Aos bons olhos do animal,
Deus é mau,
condenou-o ao inferno.
Satanás!
Aos bons olhos de Lúcifer,
o Homem é mau,
por tê-lo dado o conhecimento,
é inimigo mortal.
Aos bons olhos,
cada um tem sua razão.
Aos meus olhos,
foi uma grande invenção.
Paciência
Mesmo que o dia tenha acabado,
mesmo que a lua tenha anunciado
que a noite enfim chegou,
não há motivo para ficar cismado,
não há motivo para ficar zangado,
o amanhã ainda não chegou.
No despontar do sol que já raiou,
um outro dia foi recomeçado,
todo o seu tempo foi recompensado,
o seu problema foi despedaçado,
cada pedaço foi recolocado
de uma forma que o solucionou.
A paciência o livrou do fardo.
O dia claro o iluminou.
O céu de novo está ficando pardo,
e desta vez você aproveitou.
Cada momento, observou calado.
Admirado, se emocionou
por um instante ter até pensado
em desistir de tudo que amou.
Antes
Antes de chegar,
ela em mim já estava.
Antes de adentrar,
eu a senti.
Mesmo antes de vê-la,
eu já a conhecia.
Quando a vi falar,
reconheci sua voz.
Antes de se apresentar,
eu lhe falei sobre nós.
Ela não me entendia,
interrompia-me,
eu me calava.
Ela enfim, compreendera
que antes,
muito antes
de fazer esta poesia,
antes mesmo de nascer,
um dia,
eu já a amava.
Ambos
Encontrava-me perdido
e você a procurar,
sem sabermos que estávamos
no mesmo lugar.
Eu estava em seu sorriso
e também em seu olhar.
Não podia lhe ver sorrir ou chorar.
Só podia lhe enxergar
na imagem do espelho.
Você ficava a se olhar,
várias horas, pensativa.
Você já não estava lá,
era eu a admirar,
em silêncio,
minha diva.
Eleição
Não me entrego ao ator
que fala.
Não me submeto
à profundidade da cara
por parecer fiel
à fiel vida de agora.
Não sou um lapso
de memória.
Revejo a história.
Não esqueço que sou um cidadão.
Não acredito no abraço.
Dou mais um passo
antes de corresponder ao aceno de mão.
No embaraço,
para não ser mal educado,
digo que sim, no não,
digo que não, no sim.
Assim,
voto consciente.
Olhar a si
Às minhas costas,
há um par de olhos fixos.
Em uma volta
fecho o círculo
e fito-me sem negar-me,
inspirando-me em mim.
Sou parasita que persegue-se
no inverso,
sou apenas meu paradigma.
Olho o belo ausente
nas costas
largamente
opostas
ao que há na frente,
um par de olhos,
os meus.
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