“Entrai pela porta estreita; porque larga é a porta, e espaçoso o caminho que conduz à perdição, e muitos são os que entram por ela; e porque estreita é a porta, e apertado o caminho que conduz à vida, e poucos são os que a encontram.” (Mt 7:13,14)
– O que deseja? Perguntou o caixa ansioso. Feito os pedidos e pago, cada um voltou para sua mesa, imerso em suas próprias reflexões, aguardando o soar da senha. O papo na mesa do simples corria animado. Antes mesmo do sábio sentar-se, a voz soou: – Estrupício, como demorou? Comentou Rogério em tom provocativo, ao que ouviu a queima roupa – Estrupício morreu.
Do outro lado da praça de alimentação João dirigiu-se ao simples dizendo: Cara, Rose não tirou os olhos de você, na fila. Simples voltou-se para ela e por um momento seus olhos se cruzaram. Simples sentiu-se queimar por dentro, teve um ligeiro estremecimento, temendo que tivesse sido perceptível. Fitou então seu copo de cerveja, já ligeiramente quente por causa da demora em adquirir as fichas no caixa. O perfume da Rose embriagava seu ser.
Há um provérbio popular muito citado quando alguém se coloca na fronteira entre a concupiscência (desejos intensos) e o pecado: “não se cutuca o diabo de vara curta”. Salomão colocou esta verdade em outros termos: “Pode alguém tomar fogo no seu seio, sem que os seus vestidos se queimem?” (Pv 6:27) ou “andará sobre as brasas sem que se queimem os seus pés?” (Pv 6:28). Foi por esta razão que José, quando se viu seduzido pela esposa de Potifar, ouvindo o canto de sereia: “Deita-te comigo!” (Gn 39:12), não fez outra coisa senão fugir, ainda que tenha deixado sua capa (Gn 39:13).
Tem gente com uma falsa noção acerca de ser nova criatura e sua relação com o pecado. Estes pensam que a transformação realizada por Deus em seu interior criou o senso da impecabilidade. Por esta percepção o verdadeiro cristão não se deixaria tentar, estando acima das fixações, atrações e seduções deste mundo. Por pensar de modo utópico, quando se descobrem tentados, se deixam enredar pelas teias dos seus desejos intensos, como algo que não podem reprimir sem desfigurar sua própria personalidade. Nestas circunstâncias a graça é vista como tendo imunizado o ser, permitindo-o permanecer no pecado para que a graça abunde ainda mais sobre sua vida (Rm 6:1).
O pecado é um termo execrado, abominado pelo homem moderno. Ele traz o mesmo preconceito da Aids, que diferente da gripe, não tem cura, portanto traz consigo o medo inerente à morte. Fugir da terminologia não impede de sofrer seus efeitos e conseqüências. Impede sim, de experimentar o poder regenerador do sacrifício feito por Jesus Cristo na cruz do Calvário. Antes a redenção em Jesus Cristo tem o poder de libertar o homem do pecado, ainda que, durante esta peregrinação, não tenha glorificado o corpo mortal. Esta é a razão porque o pecado permanece no indivíduo de forma latente, sempre pronto a pregar-lhe uma peça.
Tiago ensina, então que o pecado, enquanto raiz, sob o comando propício, regado pela tentação, adubado pela atratividade do objeto cobiçado, engodado pela natureza perversa do coração, maquinado pela concupiscência, ou seja, o desejo intenso da carne, fatalmente induzirá ao pecado (Tg 1:13-15). O problema não está no poder da graça, mas no exercício da vontade em se colocar diante de Deus, na escada ascendente da graça ou diante do mundo na espiral descendente da tentação.
– Não entendi, Estrupício morreu? Deixa eu dar uma alfinetada em você e verá que está vivinho da Silva, disse Rogério para o sábio. Foi com grande compaixão que o sábio fitou Rogério. Para ele o rosto de Rogério era como o rosto de Deus (Gn 33:10) porque via seu amigo como a imagem e semelhança de Deus (Gn 1:26), criado para o louvor da glória de Deus (Ef 1:12). Aquele olhar tocou profundamente Rogério, porque pela primeira vez via seu amigo como um ser iluminado, parecia sentir naquela mesa um perfume diferente, ficando incomodado por sentir um súbito amor por seu amigo (II Co 2:14). Por alguma razão Rogério sentiu que Estrupício realmente tinha morrido, não teria mais coragem de chamar seu amigo por este nome.
Exercer piedade para com o próximo é fruto da experiência de um homem regenerado, isto porque o amor de Deus foi derramado copiosamente em seu coração pelo Espírito Santo que lhe foi dado (Rm 5:5). O sábio sabia que não importava o quanto podia ser humilhado por seu amigo, tinha a convicção de ser amado de Deus (I Jo 4:10).
O sábio sabia também que, se não tivesse experimentado a graça de Deus em sua vida, ao ouvir a provocação de Rogério, teria feito como da última vez que fora chamado por Estrupício, anos atrás. Naquele dia, último do ano escolar, Rogério se dirigira ao simples dizendo – Estrupício, parabéns, você conseguiu de novo, passou com louvor em todas as matérias. O sábio não ouvira senão o apelido que tanto odiava e falou sem pensar – Estrupício é a mãe que o pariu.
Agora, naquele Shopping o sábio compreendera uma verdade que o marcara profundamente: ele próprio, ainda que não agindo com o mesmo sarcasmo de Rogério, tinha a mesma natureza caída. Ele vira a si mesmo como Paulo mesmo ressaltara ao ensinar seu discípulo Tito:
“Porque também nós éramos outrora insensatos, desobedientes, extraviados, servindo a várias paixões e deleites, vivendo em malícia e inveja odiosos e odiando-nos uns aos outros.” (Tt 3:3)
A compaixão pelo semelhante nasce no instante que o indivíduo conhece a essência de sua própria natureza, quando se descobre que é “coitado, e miserável, e pobre, e cego, e nu” porque deixou seus olhos serem regados pelo colírio da graça de Deus (Ap 1:17,18). É quando se descobre que o velho homem realmente está morto, que não há como ser humilhado, mesmo porque ninguém vive para si (Rm 14:7), antes está crucificado em Cristo Jesus, não vivendo mais senão Cristo nele, vivendo, desde então na fé do Filho de Deus (Gl 2:20).
Por esta razão a piedade tem como combustível a compaixão e por direção a vontade de Deus no trato com o semelhante, cumprindo a essência da lei: “Amarás ao teu próximo como a ti mesmo” (Mt 22:39). A piedade se sustenta no temor devido a Deus, sendo forjada por meio da obediência ao evangelho (I Pd 1:22). A verdadeira piedade reflete o impacto da revelação da palavra de Deus no coração do cristão, quando este deixa de ser um mero ouvinte para ser praticante da verdade (Tg 1:22).
O som da senha fez o sábio sair de sua introspecção para verificar se era sua vez. – Mais um número, graças a Deus e poderei matar quem está me matando. Foi quando se lembrou que aquela senha era a do simples. Foi quando viu o simples beijando as mãos de uma das moças, antes de se levantar para buscar o pedido, juntamente com seu amigo.
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