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EVA
Enoc Borges

Resumo:
Eva é a personagem central do livro. Favelada, ela labuta na vida com vistas a uma situação melhor, para ela e para os seus vizinhos. É uma líder comunitária.
Luzia, sua filha de criação acompanha seus passos, com vistas a comunidade, e, vai mais além quando se depara com situações inusitadas.
É a década de 80, quando surgem as greves, os sem-terra, os sem-teto etc...
É uma reportagem-romance empolgante, histórico que não escapa nem o atual presidente Lula, quando de suas campanhas pelo Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo.

Enoc Borges
EVA

Boatos
Eva! Tão dizendo que os barracos vão ser derrubados,
disse Izildinha. É, eu também já ouvi essa conversa. Diz que
apareceu um tal de Daniel Amaral e está falando que as terras
são dele, respondeu Eva. Mas, o que vamos fazer? Estou aqui
já tem mais de dez anos. Logo agora que consegui aumentar
um cômodo pro Bastião que vem morar comigo, ficamos
num quarto e as crianças em outro, comentava Izildinha.
Vamos ficar quietas num canto e ver o que acontece. Não é
possível que as autoridades vão deixar acontecer uma coisa
dessas. Aqui tudo é trabalhador. Imagina se o prefeito vai
consentir, argumentou Eva.

Maria e o Repórter
Bom dia! Mas bom dia mesmo! A voz vinda de um
rádio se intrometia na conversa das duas. Aqui quem fala é
Senhor X. Hoje vou falar sobre um caso acontecido na favela
do Brasil. Safado, sem vergonha, covarde, prossegue o
radialista. Pegou Maria de apenas 16 anos, que retornava do
trabalho. A menina desceu do ônibus, eram mais ou menos
nove e meia da noite, daquela quinta-feira garoenta. Aquele
era o primeiro dia de trabalho de Maria. Ela morava ali na
favela Brasil e trabalhava no Ipiranga, na casa da professora
Marli, que não tinha com quem deixar seus filhos para poder
dar aulas. Até que apareceu Maria, jovem de boa aparência,
semi-analfabeta, mas trabalhadora. Naquela quinta-feira,
continuava o rádio, Maria tivera uma discussão no ônibus
pela manhã. Um cara ficou parado atrás dela se esfregando,
esfregando, esfregando. Maria impaciente e com muito custo
foi para o outro lado do corredor do ônibus, o cara foi atrás e
continuou esfregando, esfregando, esfregando. Maria mais
impaciente ainda foi para outro lugar, mas de nada adiantou o
marmanjo foi atrás esfregando , esfregando, esfregando e de
repente começou a fungar no cangote de Maria. Aí foi
demais, ela olhou para o cafajeste, um mulato magro, alto, e
falou para ele se esfregar na mãe dele. Na mãe não,
respondeu o mulato. O ônibus tá cheio, quer moleza, não
gosta de aperto, pega um táxi, disse rispidamente o homem a
Maria.
Após uma pausa, o radialista diz: Você que está me
ouvindo, se tiver uma dor no estômago, tome Estomazil. É na
hora. Agora, se você dona de casa, sabe, aquela cólica que
você tem todo mês? Aquela que deixa você indisposta, que
não dá vontade de fazer nada, nem lavar roupas, nem fazer
comida? Pois é, não pode não, viu? Tem que fazer a
comidinha pro marido que chega cansado do serviço. Não
sinta mais essa cólica . Tome Menstruazil. Tomou! daí a
cinco minutos é ir pro tanque lavar roupa.
Uma pausa e o locutor retoma a história de Maria.
Ela, Maria, sabia que era perigoso atravessar o trecho escuro
e com muito mato aquela hora da noite, mas o que fazer?
Preferia crer que com ela não aconteceria. Vamos ouvir o
depoimento de dona Marli, a professora patroa de Maria. Era
uma moça tão boa, as crianças já estavam gostando dela,
Marcelo e Priscila não se dão com ninguém e quando se dão
é isso que acontece. Moça bem asseada, eu não acredito
numa coisas dessas, tinha combinado de pagar o salário para
ela e mais a condução, apesar de nisso ir quase todo o meu
salário de professora, ela podia comer o que quisesse. Não
tranco a geladeira, porque eu sou assim mão aberta, tem
patroa aí que é tudo medidinho, tranca o forno e a geladeira,
mas eu não consigo. Posso pagar pouco mas empregada em
casa come de tudo.
Meu querido ouvinte, retoma o locutor. Sabe aquela
tosse, aquela tossinha dessa noite. Tome cuidado, ela pode
virar uma tuberculose. Para que isso não aconteça, vá agora
mesmo na farmácia e compre Tossil. Tossil e pronto, não
precisa tossir de novo. Tossil uma vez só e basta. Tossil não
precisa de receita médica, e por falar em receita médica, a
dona-de-casa pode ficar descansada que todos os remédios
que eu indico aqui no programa são garantidos por
laboratórios famosos, muito importantes. Eu não iria aqui no
programa O Seu Crime Não Compensa, cometer o crime de
indicar um remédio que fizesse mal para a senhora ou sua
família. Por isso, fique sossegada.
Eva? Chama Izildinha. Você tá vendo Senhor X? E a
voz do repórter policial Til Atanásio ecoava por toda a
favela. De todos os barracos saía aquela voz metálica
uníssona acordando muita gente nos barracos. Sabiam que
eram nove horas da manhã. O programa que chegou a atingir
o maior ibope do rádio brasileiro, ia pontualmente ao ar todos
os dias, às nove horas. Era o despertador, era a hora das
lavadeiras que se dirigiam para as bicas e tanques
comunitários. Era a hora da faxina na casa da patroa. Era o
radinho de pilha no bolso do peão que agora saía para fazer
um lanche, estava no batente desde as sete da manhã. Era
hora do café também na casa de classe média. Enfim, eram
nove horas, era inclusive o maior faturamento da emissora.
Dona de casa, retoma o locutor. Agora tenho uma
novidade. Você que sempre quis me conhecer e não pode,
não se preocupe mais, você me verá na televisão, pensou que
chique! Eu na televisão aqui e agora com grandes reportagens
policiais. Vou estar atrás do crime, onde houver um
criminoso eu estarei lá. Prometo aqui e agora na televisão.
Muito bem, ouvintes. Você ouviu o depoimento da professora
Marli. Maria era uma boa moça, excelente empregada. Agora
ouçam essa entrevista com a mãe de Maria, dona Joana
Maria. Dona Joana Maria conta pra nós como era Maria em
casa: Bem... eu nem tenho palavras... Vocês estão ouvindo,
ouvintes. A mãe de Maria nem tem palavras, diz Atanásio.
Esse é o depoimento de uma mãe sofredora, com voz
embargada, ela não consegue nem falar, que depoimento
comovente. Só uma mãe pode sentir isso, eu confesso que
também não agüentei quando fui falar com dona Joana Maria
em seu barraco na favela do Brasil, confesso que chorei...
Depois vem esses deputados e esse pessoal dos direitos
humanos e querem fazer da cadeia um hotel de cinco estrelas.
Ouviu, ouvintes, eles querem hotéis para os bandidos, e vocês
moram aí na favela.
Oh! que verdade, comenta Izildinha.
Com os ouvidos atentos a atenção volta-se ao rádio. Mas,
eles, os deputados, moram na zona sul maravilha de São
Paulo. Lá não tem bandido. Todas as ruas têm vigias com
cachorro policial e metralhadora, três oitão, rifles e o diabo a
quatro. Polícia não falta, mas para Maria, coitadinha, foi
atravessar sozinha aquele matagal entre o ponto de ônibus e a
favela e não pôde chegar no barraco. Senhor secretário da
Segurança, diz exaltado o radialista, quem precisa de
segurança é a periferia da cidade e não o Morumbi. Eu nem
agüento falar, isso me dá uma revolta. Após um suspiro,
retoma Atanásio. Se o seu neném passou a noite inteira
chorando, não deixando o seu marido dormir, não hesite, dê
chá de Camomila Camomil. Tomou, dormiu. E o seu marido
descansará em paz durante toda a noite. Esse Tanásio é um
santo homem, diz Maria da Graça que se juntara ao grupo.
Não sei não, responde Eva. Será que tudo o que ele diz é
verdade? Vamos conferir, ouvindo esse caso da filha da dona
Joana. Imagina vocês, diz Eva meio que espantada por ter se
lembrado, inda ontem eu estava vindo lá da bica com uma
bacia de roupa e a Maria foi ao meu encontro e me ajudou a
trazer a bacia de roupa até em casa. Cada dia acontece cada
coisa estranha aqui na favela, retoma a palavra Maria da
Graça. Uma hora é roubo, outra é briga de marido com
mulher, outrora é morte... agora... nossa, não dá nem pra
acreditá, fala meio choramingando Maria da Graça. Sei não,
diz Eva. Mas, esse malandro é daqui não.
Eva falava com absoluta segurança e conhecimento de causa.
Muito precavida e observadora, ela sabia que havia um
estranho código de ética entre aqueles que se dedicavam ao
trabalho do assalto, estupro, morte, tráfico, roubo de galinhas,
jaquetas etc. Dificilmente alguém agiria em seu próprio
bairro; um ladrão não rouba no bairro onde mora, mesmo os
pés-de-chinelo tinham receio de fazer uma ação no bairro,
sabia Eva.
Não longe da roda de papo das três amigas, um pouco
mais à frente, no barraco de número 17, o povo começava a
se aglomerar. Nele mora dona Joana Maria, nele morava
Maria. Dentro do barraco, em cima Não Compensa. Tome
cuidado! Qualquer dor no coração tome Coraçãozil e pronto.
Bate outra vez, é o lema do Laboratório Vida Nova. Bom dia!
Mas, bom dia mesmo!! Senhor X lhes diz: Bom dia! Mas,
bom dia mesmo!
Eva lentamente se levanta do banco em que estava
sentada em frente à porta do barraco, onde também se
esquentava ao sol, e caminha rumo ao barraco de dona Joana
Maria, vai até o rádio e o desliga, sem antes não deixar de
ouvir: Oi gente!
Bem pessoal, diz Eva, eu sei como é duro, não tem nada que
conforte a gente numa situação dessas, só sabe o que é luto
quem passa por ele. Mas é preciso ter forças. Dona Joana
venha pra minha casa, lá eu coloco mais água no feijão e a
senhora mais as crianças comem com a gente.
Eva era de uma calma e passividade assustadora. Ele sabia
que nada poderia ser feito, só o tempo poderia minimizar o
sofrimento de dona Joana Maria. Talvez, calejada pelo peso
da idade, Eva repetia: o tempo é o melhor remédio, porém,
apagar jamais.
Quanto à Justiça, Eva sabia que seria mais um caso a
ser arquivado. Policia nenhuma se interessaria em solucionar
tal crime, não havia recompensa. Afinal quem era Maria
senão uma pobre favelada que por azar tinha um par de
pernas bonitas, mas que era uma faca de dois gumes, só que
um mais afiado que o outro.
* * *

Gentes da Brasil
A tarde daquela sexta-feira fora igual a todas
as outras na favela. Já vinha chegando a noitinha e o
movimento aumentava em torno da Sociedade Amigos da
Favela Brasil, SAFABRA. A Sociedade de amigos mantinha
dois cursos à noite: MOBRAL e Supletivo. Por esses cursos
ela recebia uma verba mensal para pagar as contas de água e
luz, e mais um ilusório prestígio de quem está colaborando
com o sistema. Prestígio este que seu presidente, Paulo
Santana, doze anos no cargo, usava para influenciar os
poucos sócios e a população moradora da favela, com
promessas disso e daquilo outro, sempre reclamando que não
tinha apoio das pessoas, e que elas só queriam ganhar.
No MOBRAL trabalhava a professora Lourdes; no
Supletivo, professora Lílian. Hoje não haverá aula. Vamos
juntar as classes para um debate: A saúde no Brasil, disse
Lílian. Pessoal, o nosso debate de hoje é sobre a saúde no
Brasil. Como está a saúde do brasileiro. Ele come bem? As
nossas crianças estão bem de saúde? Para responder essas e
outras perguntas a escola convidou o doutor João, médicopediatra,
que trabalha num centro de saúde da zona sul de
São Paulo. Doutor João, a classe é sua. Boa noite. Eu sou
João o amigo de vocês, não o doutor, apenas um médico e
amigo de vocês. Agradeço ao convite da escola e
particularmente da professora Lílian, minha amiga de muitos
anos, mas vamos ao assunto. Uma vez o nosso Ministro da
Saúde Valdir Arcoverde queria saber como estava a saúde no
Brasil, especialmente das crianças. Então pediu que seus
auxiliares fizessem um estudo sobre o assunto. Vamos ver
agora o resultado desse estudo: No ano de l984 quantas
crianças será que morreram no Brasil? Isto antes de
completarem um ano de vida. Alguém da classe sabe
responder? Não. Pois nem o Ministro sabia. Porém, os
estudos indicavam 308 mil crianças. Isso mesmo! 308 mil
crianças. É como se fosse um pouco mais que a cidade de
Taubaté, no Vale do Paraíba. Agora, sabem o que o ministro
fez com essas informações?
Nada. respondeu Eva que assistia atentamente ao debate.
Isso mesmo! Disse o médico. Não fez nada porque se
ele começasse a falar ia revelar que seu ministério não
trabalhava. E nem poderia ser diferente, a lógica é que se o
seu ministério trabalhasse acabaria com a indústria da doença
no país. Aos donos de hospitais interessa que haja doentes.
Faço uma pergunta: será que grande parte das doenças não
podem ser prevenidas? O ministro sabe que sim.
A classe em silêncio e às escuras prossegue atenta,
toda atenção está voltada para o doutor João, que a cada
minuto vai trocando os slides com cenas de crianças,
mulheres e idosos doentes, como também hospitais lotados e
favelas, cortiços, mocambos...Agora vamos falar um pouco
sobre cesarianas. Para quem não sabe, cesariana é a forma de
se tirar o neném da barriga da mãe sem ser por parto normal,
o que algumas vezes é necessário para não complicar a mãe
ou a criança. Em 1970, de cada cem partos, 14 eram por
cesariana. Em 1980 esse número subiu para 31, portanto
dobrando, enquanto que nesse mesmo ano na Holanda, um
país da Europa, dos cem nascimentos apenas dois foram
cesárea. Bom agora chega de números. Mas doutor, porque
31 cesarianas no Brasil e somente duas na Holanda? pergunta
Helena, grávida de sete meses. Boa pergunta, começou a
responder o médico, isto porque com as cesarianas os
hospitais e os médicos ganham mais, elas são mais caras que
o parto normal. Vamos abrir o debate para as perguntas.
Doutor, eu quero falar uma coisa, diz Sônia. Não é
sobre doença. Eu explico: trabalho num laboratório
farmacêutico no Cambuci, e todo mês tem uma mulher que
vem ver se a gente está menstruada. A classe cai na risada.
Sônia prossegue: Ué, o que foi que falei demais? Pois é, diz o
médico, muitas empresas que empregam mulheres fazem essa
fiscalização. Se a menstruação de uma mulher atrasar, a firma
acha que ela está grávida e providencia imediatamente a sua
demissão. Tudo isto porque uma funcionária grávida é um
problema , pelo menos na opinião deles.
Pacientes fantasmas, fala sério Mário do fundo da
classe. O que é isso? A gente sempre ouve no jornal:
Pacientes Fantasmas. Muito boa pergunta, elogia o debatedor.
Em 1981, continua o doutor, do total de recursos para a
assistência médica, 72% iam para as empresas de saúde.
Nesse mesmo ano, o INAMPS constatou que a maioria das
contas apresentadas por hospitais particulares estavam
erradas. Os erros, em sua maioria, eram de pacientes
"fantasmas" e exames que nunca foram feitos. Pacientes
Fantasmas são as contas que estão em nomes de pessoas que
já morreram há muito tempo, outras nem existem e mesmo
assim os hospitais recebem o dinheiro do governo, pago pelo
INSS. E ninguém toma nenhuma providência. Uma
curiosidade é que os exames são pagos por "atos médicos",
isto é, cada exame pedido é um ato médico. Assim os
médicos pediam os mais diferentes exames para um único
cliente e, de preferência, os mais caros. Tudo sem a mínima
necessidade. Então o paciente é exposto várias vezes ao
Raio X e injeções sem nenhuma necessidade, diz o médico,
terminando sua palestra.
Mas com essa doença toda que o senhor fala,
então não existe saúde no Brasil, todos nós temos algum tipo
de doença? indagou Luzia. Não, não é bem assim, retoma o
médico. É importante saber que quem tem dinheiro tem
saúde, senão vejamos. No Brasil não se procura prevenir, é
melhor remediar. Depois a forma de assistência de saúde é
toda voltada para o setor privado, isto é, particular. As
empresas médicas só estão preocupadas com o lucro. O
atendimento público é muito ruim.
Nesse momento ecoa pela sala uma salva de palmas,
em homenagem ao médico. Muito bem, doutor, diz Eva.
Parabéns pela coragem de sua palestra falando sobre o Brasil
doente e podre, onde os donos do poder só pensam na riqueza
e nós "oh". Eva faz um gesto característico de que o povo
está se fodendo. A classe ri muito, o médico fica vermelho
mas depois acha tudo muito engraçado. A professora Lílian
passa por todos os alunos distribuindo um folheto com os
seguintes dizeres:" Os países ricos erradicaram ou
diminuíram bastante o número de muitas doenças infecciosas
através, principalmente, da melhoria das condições de higiene
e menos com remédios químicos. Nos países
subdesenvolvidos, 80% das epidemias transmitem-se pelas
águas. Muitas pessoas, principalmente as crianças, morrem
por hora devido ao consumo impróprio de água e a falta de
higiene. No entanto, para erradicar a maioria das doenças
infecciosas, é preciso combinar abastecimento de água, mais
o saneamento, amplos programas de vacinação em massa,
com a melhoria das condições de moradia e educação. O
diretor da Organização Mundial de Saúde, Haffdan Mahler,
considera que o "número de torneiras por mil habitantes será
um indicador infinitamente mais significativo do que o
número de leitos de hospital por mil habitantes", diz o
folheto.
* * *

Até o Caboclo
Luzia, Laurinda, Lucélia, Fábio e Mário costumavam
sempre ao término das aulas acompanharem as professoras
até o ponto de ônibus. Naquela noite, além do doutor João,
Eva também foi. Lílian, a professora, estranhou a companhia
de Eva e perguntou a ela porque estava junto? É que estou
aproveitando a companhia, porque na volta eu vou passar na
casa da comadre Sebastiana, respondeu Eva.
Comadre Sebastiana era quem "recebia o Caboclo".
Muita gente do bairro, e de fora também, recorria a ela, ou a
Ele para saber sobre seus destinos. O que o futuro lhes
reserva, explica Luzia para o doutor João. Mas olha doutor,
diz Eva, mudando a conversa como quem se envergonhara do
esclarecimento de Luzia, a sua palestra foi muito boa. Essas
professoras estão de parabéns, esse negócio de debate tem de
continuar, é muito bom, vai abrindo a cabeça da gente, não
que a gente não soubesse, mas ajuda muito.
Subitamente Mário interrompe a conversa. Não
tenham medo, não façam nada. Aquela rodinha lá na frente é
de maconheiros, mas eles não vão fazer nada pois a dona Eva
está com a gente. Ao passarem perto da roda formada de uns
cinco rapazes e mais uma moça, sentiram um forte cheiro de
maconha, mas nada fizeram e nada aconteceu.
Logo mais à frente, seu Zequinha estava fechando a
porta da barraquinha, uma espécie de armazém onde se
vendia de tudo que pudesse ser consumido pela dona de
barraco, porém o que ele mais vendia era Amélia. Boa noite
seu Zequinha, cumprimentou Eva. ô dona Eva! Aqui a essa
hora! responde Zequinha. É, estou indo até o ponto de ônibus
acompanhar as professoras e o doutor João. Então vou
engrossar a caravana, complementa Zequinha.
No ponto de ônibus, apenas uma luz iluminava ao
redor. Nos outros postes todas as lâmpadas estavam
quebradas. Apesar disso, tinha-se uma sensação de
segurança.
Milagre essa luz ainda estar aqui, disse Luzia. É
Luzia, eu estou cansado de ligar para a prefeitura, senão nem
essa estaria aí, responde Zequinha.
Logo veio o ônibus, despediram-se. A turma no
caminho de volta pela Viela Sagrada. Nela acreditava-se que
não havia mal que não fosse revelado. Portanto o preço do
metro quadrado ou de um barraco ali era cinco vezes mais
que em outra parte da favela. Não caminharam muito e
chegaram em frente ao barraco de número 13, o de dona
Sebastiana, que ficava no fundo do terreno. Era um dos
poucos que tinha quintal. Isso era um privilégio, devido a
tanta disputa de terra na favela, um palmo valia ouro. E esse
privilégio Sebastiana gozava, mesmo que fosse uns parcos 30
metros quadrados. Ali ela cultivava muita Arruda, Alho e
Manjericão.
Entraram todos, menos Laurinda e Lucélia que diziam
ter de levantarem cedo noutro dia para trabalharem.
Que nada! Elas estão com medo, disse Mário.
Na porta do barraco, tiraram os sapatos, entraram de costas
fazendo três vezes o sinal da cruz de trás para diante e depois
beijaram o chão e viraram-se para o altar. Mário e Zequinha
ajudavam Eva a se levantar o que fez com alguma
dificuldade.
Dentro da sala cinco mulheres, vestidas conforme exigia o
ritual do candomblé, dançavam em volta de dona Sebastiana
que naquele momento começava a incorporar o Caboclo, sem
dificuldades agora curvava-se diante do altar com imagens,
dentre elas a de São Jorge ladeada de dois Exus, e ainda uma
vela branca ao centro, à esquerda uma marrom, à direita uma
vermelha e atrás uma vela preta, todas acesas dando um odor
característico ao ambiente.
Uma das baianas voltou-se para dona Sebastiana,
cochichou ao ouvido do Caboclo e depois fez um sinal para
que Eva se aproximasse, no que o Caboclo olhou e falou com
voz rouca e pausada: Eu estava te esperando. Fale minha
filha. Sim Caboclo, respondeu Eva, eu queria saber o que o
senhor está achando dessa situação em que vamos ter de
abandonar nossos barracos e ir para outro local. Eles tão
falando que vão acabar com a favela.
Seguiu-se um silêncio, os atabaques pararam e
Caboclo responde categórico: Eu estou sabendo, respondeu
categórico Caboclo. Não deve haver resistência, tudo é para
melhor. Daniel Amaral, o proprietário dessas terras, é um
bom homem, ele faz muitas caridades. Ainda hoje fez uma
boa oferenda pra uma guia minha em Santos, deu uma casa
na praia, pros espirito morá... Que que você acha, hem? A
casa tem um belo santuário, não que eu ligue pra essas coisas.
Agora, vê o que pode me oferecer. Ah! Vá lá, sei que não
tem posses. Mesmo assim eu gosto de você. Porém, não vou
contrariar o Homem. Me dê uma garrafa de Marafo, deixe
uns troco pro Santo e dê uma festa a Cosme e Damião. E não
se meta com Daniel Amaral, pois se eu tiver que escolher
entre vocês dois... Mas como? perguntou Eva indignada.
Vamos mudar para onde? As crianças estão nas escolas, as
pessoas trabalham, muitos estão aqui há mais de vinte anos.
Ninguém vai ter dinheiro pra pagar condução.
Eva falava num tom de certa intimidade com o Caboclo, mas
com resignação.
Ora já falei, disse rispidamente Caboclo. Não deve haver
resistência. Tudo é para melhor. Lá vocês terão mais
condições. O que querem mais? Chega, pode ir embora, antes
que me aborreça com você, o que não gostaria de fazer. Além
do mais, tem mais gente pra atender, a coisa tá feia.
Eva também deu a conversa encerrada, achou melhor não
enfrentar Caboclo. Afinal, tudo era falatório ainda e quem
sabe ele não tivesse razão e lá para onde tivessem de mudar
fosse melhor mesmo, vacilou Eva. O grupo se retirou de
costas. Fizera o sinal da cruz e saíram pela porta afora. Todos
ficaram espantados com a coragem de Eva, mas ninguém
ousou falar sobre o assunto com ela.
Na rua pouco andaram e passaram em frente à igreja
Católica ainda em construção e com um dos salões pronto.
Eva falou: Amanha à tarde tem reunião com a assistente
social da prefeitura aqui no salão paroquial Luzia e vocês
todos precisam comparecer.
Mal acabara de falar e já estavam em frente à igreja
Pentecostal, onde Mário falou: Domingo vai ter batismo,
sairá um ônibus para levar o pessoal, a senhora é nossa
convidada, dona Eva. O dona Eva, falou Zequinha, mas vê se
a senhora não perde o compromisso com a Seicho-No-iê.

Luzia
Luzia perdera sua mãe quando criança e morava com
Eva há dezenove anos, a quem tratava de tia, mas só na
intimidade do lar. Teresa, mãe de Luzia, vivera durante vinte
anos na casa de Eva, que a considerava como uma irmã.
Durante uma gravidez difícil, Teresa fora forte o suficiente
até o parto quando não resistiu e morreu. Sofria de
hipertensão, uma das doenças que mais matava as mães
parturientes.
Luzia então crescera sob a educação de Eva. Hoje
trabalha como costureira na Alpargatas, no Brás, cursa
Supletivo na escola da Sociedade Amigos da Favela do
Brasil, faz parte do grupo de jovens da comunidade São
Sebastião, onde discutem assuntos de caráter social,
problemas como a fome, o menor, a moradia, a saúde...
Assim Luzia ia formando sua personalidade em meio a
contradições como almoçar no refeitório da Alpargatas, onde
tudo era muito limpo, comida em quantidade e de qualidade,
e, as vezes não ter nada no jantar em casa, principalmente nos
dias que precedem o fim do mês, ou quando Eva resolve
ajudar alguma família mais carente ainda.
Outra contradição era de conviver com meninas de
onze, doze, treze anos já prostituídas com homens moradores
em torno da favela, isto é, no bairro onde estava localizada a
favela, em casas de alvenaria. Esses mesmos homens que em
conversas com suas esposas falavam da favela, dizendo que
tudo aquilo desvalorizava seus imóveis, os seus terrenos de
250 metros quadrados com 70 de construção. Ninguém iria
comprar suas casas. Suas esposas não deixavam por menos e
complementavam: É um mau cheiro, ninguém agüenta. E
essas meninas, só andam peladas e roubando o marido dos
outros, são umas vagabundas
Porém os maridos. Ah! Os maridos, marcavam
encontros com as meninas que julgavam ser as melhores. Os
encontros eram sempre longe dali. Enfiavam-nas num
Fusquinha 69 e iam parar numa esquina escura qualquer ou
num hotel de "alta rotatividade". Ali faziam tudo o que
gostariam de fazer com suas esposas com quem não tinham
mais prazer; pois se encontravam desdentadas, barrigudas,
flácidas, após darem a luz a mais de quatro rebentos. Então
iam buscar uns seios durinhos, vaginas apertadinhas cochas
roliças, lábios grossos com bocas redondinhas e bundas
durinhas.
Numa dessas, aparecia uma grávida e o bruto ia logo
dizendo: Toma dinheiro e arranca essa criança. Tiro não,
respondia a criança. Você não falou que gosta de mim, que
vai sair de casa para morar comigo? Falei, mas você sabe
como é que é, eu ainda estou preparando o terreno. A
Raimunda é uma pobre coitada, tenho quatro filhos, como
vou fazer? tenta se explicar o pai.
Foi numa dessas que Teresa, a mãe de Luzia, apareceu
grávida na casa de Eva. E hoje ali estava Luzia, filha de mãe
solteira, e criada por uma tia, vendo muitas de suas colegas
contarem os mesmos dramas, muitas tristezas e poucas
alegrias. Uma dormia com Pedro, outra com Dito, outra ainda
com Mané. Era muito bom, dava mais dinheiro que trabalhar
de doméstica. E Luzia só não estava nesta situação porque
Eva conversava muito sobre a vida, como era difícil
sobreviver. Sobreviver era sobre ou abaixo da vida? pergunta
Luzia.
Luzia estava na idade dos namoricos, mas ela era muito
arredia com os rapazes, achava-os "devagar" demais. Eles são
uns bobocas, que só querem saber de papo-furado, bailinhos e
amassos. É o que sempre dizia Luzia. Pelo seu
comportamento e inteligência eram poucos os rapazes que se
atreviam a paquerar, só mesmo os que não a conheciam.
Ultimamente estava pensando em mudar de serviço.
Queria trabalhar em indústria metalúrgica. Assistia pela
televisão à greve dos metalúrgicos e tinha prazer com aquilo.
Luzia achava o setor têxtil, onde trabalhava, muito "devagar",
constatava que no sindicato de sua categoria de trabalhadores
só tinha pelegos. Diretores que mais serviam aos patrões do
que defendiam os interesses dos trabalhadores.
Julgava que no sindicato dos metalúrgicos se daria
melhor, apesar do Joaquinzão, um pelego de primeira linha.
Havia a Oposição Sindical, composta por militantes de
partidos políticos como Partido dos Trabalhadores (PT),
Partido Comunista do Brasil (PC do B), Partido Comunista
Brasileiro (PCB), Partido Democrático Trabalhista (PDT) e
outras correntes ideológicas tidas de Esquerda.
O que será que seria esse tal de MR 8? perguntava Luzia.
Não obtinha respostas, mas não importava. Queria
era estar lá. E São Bernardo? Já pensou trabalhar lá, com
aquele barbudo, o tal de Lula? E os rapazes metalúrgicos, ah
esses sim? respondia para si mesma Luzia. Além de tudo
isso, o salário do trabalhador metalúrgico é melhor do que o
de outras categorias, acreditava Luzia. Os seus pensamentos
iam divagando, ferrou no sono. Eva foi até sua cabeceira,
desligou o rádio que tocava a música de Guilherme Arantes:
Planeta Água.
Luzia ia adquirindo consciência sobre a vida com Eva,
com a Escola, com a Comunidade, com a Vida.
* * *

Roberto Carlos e a Desistente Social
Sábado, duas horas da tarde, a porta do salão
paroquial, na Viela Sagrada, estava aberta. Dentro Rose, uma
empregada doméstica, varria o chão de cimento rústico. Em
cima de uma mesa num canto do salão, um radinho a pilha
tocava uma música de Roberto Carlos: Café da Manha. Era
assim que Rose trabalhava, tanto em seu serviço como ali de
voluntária, sempre com um radinho ligado.
Rose varria ao som da música, Rose cantava a música. A
vassoura dançava com Rose. Rose dançava com a vassoura.
Rose cantava com a vassoura. A vassoura cantava para Rose.
Rose, porém, não sabia que aquele cantor Roberto Carlos,
lançou o LP com essa música em 1978 e teve a maior
vendagem com dois milhões e oitocentos mil cópias , que no
dia do lançamento a música fora executada 5.981 vezes nas
rádios. Não imaginava que, muito provavelmente, ela Rose
fazia parte da classe E, que portanto ganhava menos de um
salário mínimo, mas nem por isso deixaria de comprar um
disco do rei Roberto Carlos.
Rose estava ali fazendo aquele serviço como voluntária.
Trabalhava a semana inteira varrendo, lavando e limpando a
casa dos outros, agora ali varrendo a Casa de Deus, como ela
dizia. Sorte da igreja que assim não gastava um tostão com
esse tipo de mão de obra. Só os padres é que recebiam entre
um e dois salários mínimos..
Quase ao final da música chega Luzia que vai direto ao
rádio. Escuta, Rose, esse rádio não tem FM? Sem dar
importância e não esperando a resposta, Luzia muda a
posição de AM para FM, e imediatamente sintoniza a Rádio
FM Cultura que tocava a música: Nos dias de hoje. Assim
que a música termina o locutor anuncia o especial que está
sendo apresentado sobre o cantor e compositor Ivan Lins.
Em 1974, diz a voz do rádio, Ivan Lins se junta ao letrista
Vitor Martins e compõem Abre Alas, música que ouviremos
a seguir.
No seu modo de pensar, Rose tinha razão. A sua cultura não
lhe permitia certos gostos por músicas que não estava
habituada a ouvir. E também, não fora informada sobre outras
canções. Só tinha conhecimento das músicas que lhe
prometiam amor, um príncipe encantado vindo buscá-la num
fuscão preto. Bem ou mal, dessa forma Rose ficava livre dos
enlatados, isto é, 70% das músicas tocadas nas emissoras FM
ocupavam os últimos lugares nas paradas de sucesso
internacional. Essas músicas faziam parte do lixo cultural
imposto aos países subdesenvolvidos. Certamente quando
Rose descobrisse esse filão, não mais largaria.
Mas no momento Rose não se importava com nada e
nem estava preocupada se fazia ou não parte dos 88% da
populacho cujo conhecimento musical se limitava
exclusivamente às rádios em faixa de Ondas Médias, a mais
popular AM, conforme dados da Agência MARPLAN.
Luzia estava preocupada com a hora e saiu para buscar
Eva. Nesse momento, encerrando o especial sobre Ivan Lins,
o rádio tocava Aos Nossos Filhos. Rose demorou um pouco
como que tentando gostar daquela música, mas logo mudou a
posição do rádio para AM e ouviu: Tome Jurubeba Leão do
Norte, vinho concentrado que reanima. Minha amiga tenha
no seu rádio o melhor companheiro, na alegria e na tristeza, é
só ligar o rádio e aqui estamos tocando uma música, para
encher o seu coração de alegria. E agora com vocês, Tim
Maia, Gostava tanto de você. Naturalmente se fosse um
especial de Música Popular Brasileira, MPB, com a
apresentação de Tarik de Souza, ele não deixaria de falar:
Tim Maia, o lado negro da Jovem Guarda.
Logo chegou Mário perguntando se havia chegado alguém
para a reunião. Rose disse que Luzia tinha passado e foi
buscar Eva. Mário foi ao rádio e sintonizou a Bandeirantes,
onde o locutor das multidões Fiori Gigliotti anunciava:
Dentro de mais alguns instantes Corinthias e Palmeiras, um
jogo de vida e morte. Quem perde, sai. Mas, cerveja é
Antártica! A melhor cerveja do Brasil! Abra sua Antártica
agora. Cerveja? Antártica.
Já vi que hoje joga o Coringão, falou Eva, entrando no
salão com o peito arfando. Essa subidinha mata a gente,
concluiu. Com ela vieram seu Zequinha, Maria das Graças,
Izildinha e Luzia que pediu a Mário para desligar o rádio.
Mário apenas abaixou o volume. Luzia retrucou. Mário disse
que enquanto não começasse a reunião não tinha problema
ouvir o rádio num volume baixo. Eva consentiu e repreendeu
Luzia para que deixasse o menino. Menino! Ah esse
marmanjo, ironizou Luzia. Ele devia era arrumar o que fazer
em vez de ficar ouvindo jogo. O que ele ganha com isso?
Eu ganho cultura. Será que você tão inteligente não acha
ou considera o futebol cultura popular? Além de cultura é um
importante instrumento político. Nesse momento quem mais
fala em democracia são os jogadores do Corinthias, liderados
pelo "Doutor". Outro dia, o Osmar Santos falou que no meio
da arquibancada, bem no meio do povão, estava uma faixa
escrita: Queremos democracia. Diretas já!
Mário tinha razão. Ele se mostrava um estudioso no
assunto, e continuava a falar. Depois de muito tempo,
continua Mário agora para uma platéia mais atenta, este
esporte tão popular começava a dar sua contribuição para a
democracia, passando pelo Reinaldo, centro-avante do
Atlético Mineiro, que em março de 1978, dera uma
declaração ao Jornal Movimento, semanário opinativo,
editado por Raimundo Pereira, defendendo a anistia, a
constituinte e o voto direto.
Mário, entusiasmado com o silêncio da platéia, prossegue.
Desde que o futebol foi trazido da Inglaterra por Charles
Mülher, em 1894, não se têm notícias sobre manifestações
políticas de parte dos jogadores. Sim dos jogadores, já que os
dirigentes sempre se utilizaram do futebol para fazer política
ideológica ou partidária, como no caso de Arnaldo Guinle e
Antonio Prado, respectivamente, dirigentes da Associação
Municipal dos Esportes Atléticos, no Rio de Janeiro, e da
Liga Amadora de Futebol, em São Paulo, mostrando-se
contrários à entrada no time de quem não pertencesse à elite
local, ficando de fora os negros, pobres e mulatos. Isto no
começo do século.
Em contrapartida, continua Mário, surgiam times
populares, formados em sua maioria de operários, e até um
time anarquista, inicialmente de imigrantes, o Internacional
de Porto Alegre, que, no seu nome e camisa de cor vermelha,
fazia a saudação à Internacional Socialista. Outros times
populares são o Vasco da Gama, Corinthians, Ponte Preta e o
Atlético Mineiro.
Rui Barbosa, o famoso conselheiro da República, foi outro
que discriminou os praticantes do então novo esporte, é o
que informava agora o repórter popular Mário em meio à
programação esportiva no quadro Retratos do Brasil. O
conselheiro estava indo participar de uma reunião na
Argentina e na ocasião acontecia o Pan-americano, torneio de
futebol dos países do cone sul, naquele país. Como as
dificuldades eram muitas, os jogadores viajariam no mesmo
navio que o conselheiro. O time foi, só que de trem numa
longa viagem de 4 mil quilômetros. Rui Barbosa se recusara a
parlamentar com a plebe.
Getúlio Vargas, Juscelino, Jango e o general presidente
Médici foram governos que fizeram questão de serem
fotografados ao lado dos jogadores de futebol, após grandes
conquistas. E falando falar em general presidente,
interrompe Mário, durante o período pós golpe militar em
1964, o Conselho de Segurança Nacional toma as rédeas do
esporte e joga forte no futebol. Uma das imposições era o
condicionamento físico. Era o fim da técnica, o que valia
então era a força física, a arma dos europeus, os jogadores
tinham de correr os 90 minutos sem abrir o bico. O Conselho
chega ao ponto de criar o Regulamento do Atleta da Seleção
Brasileira de Futebol, onde entre outras coisas era proibido o
uso de cabelos e barbas compridos.
Outra proibição era o comentário, continua o repórter
popular Mário. Quando a Seleção ia jogar em outro país, os
jogadores não podiam falar nada sobre o regime político
daquela nação. Isso ficou evidente quando a copa do mundo
de 1978 foi na Argentina, dirigida então pelos generais. Bico
calado. Você está vendo, Luzia, como o futebol pode
governar um país? conclui Mário. Luzia ficou sem resposta.
Rose parou de varrer e sentou-se junto à porta para ouvir
Mário. Eva, silenciosa. Luzia, inquieta. Zequinha com a mão
no ouvido para ouvir melhor. Todos atentos. Mário como
que, de repente, descobre que qualquer um pode ser
professor, basta ter o que ensinar. Após a ditadura militar
veio a ditadura econômica, clubes começam a falir, não se
tem dinheiro para nada. Clubes estrangeiros, principalmente
os italianos, compram nossos jogadores em dólares. Bye bye
Cerezzo, Júnior, Falcão, Sócrates, Zico ... Ah! interrompe
Zequinha. Eu achava que os estrangeiros levavam nossos
jogadores para que, na ocasião da copa do mundo, eles
estivessem desentrosados.
Um comportamento mais recente, retoma Mário, os
jogadores vêm participando de comícios políticos, falam
sobre suas vidas particulares, são candidatos a cargos
públicos. Isto em muito se contrapõe ao tempo em que
Palhinha, atacante corintiano presidente do Sindicato dos
Jogadores Profissionais do Estado de São Paulo, disse:
Futebol, religião e política não se discute.
Pela porta do salão entra Dirce acompanhada de Válter.
Ela, assistente social há 10 anos na Prefeitura Municipal de
São Paulo. Ele, motorista dela. Após os cumprimentos Válter
vai falar com Mário.
Mário, me empresta o radinho pra escutar o jogo,
enquanto você fica na reunião. O rádio do carro pifou. Pois é,
Válter, sorte sua. Vê se quando marcar um gol você vem me
avisar, falou Mário.
Luzia? chamou Dirce. Me ajude aqui. Quebrou o salto do
meu sapato. Puxa vida, que azar, eu vinha vindo dali e fui
pular a valeta e olha só no que deu. Dirce mostra o sapato
com o salto quebrado.
Me dê o sapato que eu mando consertar. Enquanto
acontece a reunião, o seu Zé arruma. Vou mandar um menino
lá e daqui a pouco ele terá consertado. Mas eu vou ficar
descalça? pergunta Dirce. Ué, o que tem isso? Melhor do que
andar mancando, e daqui a pouco está pronto.
Luzia vira-se para um moleque que estava a catar pulgas
numa cadela. ô Chico, corre no seu Zé e leva esse sapato
pra arrumar. Avisa que é da dona Dirce da prefeitura, pra ele
andar logo. Olha, diz que é de graça, viu!?
Chico saiu correndo e logo que passou o portão, ao pular a
valeta, o sapato caiu. O menino começa a chorar e sai
correndo, deixando o sapato ali no esgoto.
Dentro do salão, Eva pediu aos presentes que se
acomodassem iam começar a reunião, porém foi
interrompida por Messias. Ele pedia para retardar o início da
reunião, porque o seu Paulo Santana, o presidente da
Sociedade Amigos da Favela ainda não tinha chegado,
portanto ninguém poderia decidir nada sem ele. Com isso
criou-se um impasse. Apesar de Eva ter a liderança sobre os
moradores da favela, legalmente não era a presidente da
sociedade-amigos.
Aliás, essa era uma discussão que às vezes Luzia tinha com
Eva e Zequinha. Chegaram até a pensar em fundar outra
entidade, quem sabe uma Associação dos Moradores, mas
deixaram para lá. Dirce, olhou em volta, percebendo a
situação de mal-estar que fora criada, insinuou a Eva que
seria melhor esperar Paulo Santana, porém Luzia não se
conteve: Pra que esse pelego aqui? O homem não faz nada,
só presta pra receber o dinheiro da água e luz.
Eva, porém, mais calma, ponderou para Luzia que além de
ele ser o presidente, dentre outras coisas, aquela reunião era
para receber o dinheiro da luz e água, gastas no prédio da
Sociedade amigos. Luzia se calou, mas ainda falou: Não vejo
a hora de ter eleição e tirarmos esse pelego daqui.
Messias, por sua vez não deixou por menos. Você terá a
oportunidade daqui a quarenta dias. Antes quero lembrar que
outros tentaram e, no entanto, Paulo Santana está
trabalhando pela comunidade há 12 anos E para participar das
eleições o sócio tem de estar quite com as mensalidades. Ah!
Você é puxa-saco, responde rispidamente Luzia. Puxa-saco,
não. Eu ajudo quem trabalha. O seu Paulo não é como vocês,
vagabundas, comunistas. Em vez de estarem em casa lavando
roupa, ficam o dia inteiro se metendo na vida dos outros,
gritou Messias. Vagabunda é sua nega. Eu trabalho, reagiu
Luzia. Eva interveio com toda calma e controle que tinha:
Seu Messias, não fique nervoso. Nós vamos esperar o seu
Paulo Santana. Não queremos atritos, estamos só
cumprindo os estatutos da sociedade que diz que deve haver
participação dos moradores e sócios da favela. Sei que vocês
trabalham muito, manter uma sociedade não deve ser fácil. É
uma pena que ela só é utilizada para bailinhos que quase
sempre terminam em brigas. O senhor acha que só de
bailinhos nós vamos melhorar a vida? E me diga uma coisa,
pra onde vai o dinheiro arrecadado no baile? O senhor não
acha que o povo está cansado disso? Só diversão barata .
Inclusive eu ouvi dizer que vocês estão querendo acabar com
a escola. É verdade, seu Messias?
Não é verdade, falou Paulo Santana, que no momento entrava
no salão. O que nós queremos é que sejam trocadas as
professoras. Elas estão com muita discussão. Andam trazendo
uns cabeludos e barbudos na escola, e ficam com essa história
de debates. Debater o quê? Acham que debate vai melhorar a
vida? O que Deus fez está feito. Nós nascemos pobres e
vamos morrer pobres.
Paulo Santana pára de falar, vira-se para Dirce que escondia o
pé descalço embaixo da mesa. Boa tarde, dona Dirce, me
desculpe o tom áspero em que falei, mas é preciso que umas
gentes aqui saibam que uma sociedade de amigos é para
ajudar o povo, e não para baderna. Paulo Santana afrouxa a
gravata e pede para Dirce explicar quais as funções de uma
sociedade-amigos, o que ela recusa sutilmente, dizendo não
ser necessário, uma vez que todos estavam ali visando ao
bem comum. E, bem, já que o senhor chegou acho que
podemos começar, apressou-se em falar Dirce, olha seu
Paulo, eu trouxe aqui o cheque para pagar água e luz. Façame
o favor de levar as contas na prefeitura a semana que
vem. Outra coisa, daqui pra frente a Eletropaulo vai cobrar a
luz coletivamente, isto é, alguém recolhe todo o dinheiro e
vai pagar na agência da Eletropaulo. Ela não cobrará mais
individualmente, barraco em barraco. Mas assim não dá,
falou Zequinha.
Quem gasta menos vai pagar por quem gasta mais? É
um problema sério, respondeu Dirce. Mas a Eletropaulo
decidiu e vocês vão ter que fazer isso, senão ela corta a luz.
Eu acho bom, disse Paulo Santana, assim pára esse
problema de, no dia de pagar a conta, tem que pegar ônibus e
ir até a agência. Muitas famílias se sacrificam para arrumar o
dinheiro da conta e ainda tem de pagar ônibus. Assim fica
resolvido esse problema. Aliás, eu me lembro quando estive
com doutor Paulo Maluf, nosso querido prefeito, ela já me
adiantou esse assunto.
Com isso iniciou-se um bate-boca eleitoral. Dirce, porém,
estava longe dali. Sua cabeça divagava. Será que o tal
sapateiro já arrumou o meu sapato? Mas que demora, eu aqui
com o pé nesse chão frio. Ah, que discussão mais besta.
Ganha quem ganhar a eleição. A minha situação vai ficar a
mesma. Outro sapato não vão me dar mesmo, nem Paulo
Maluf, nem Paulo Santana. Merda! por que fui sair de casa
hoje. Poderia ter trocado o plantão. Esse fedor de bosta.
Desgraçados, vivem nessa merda. Quero chegar cedo em
casa, desinfetar, tomar banho e ficar cheirosa para logo mais
à noite. Tenho que ir embora logo, senão perco a hora, eu vou
é me mandar. E esse moleque? Será que o desgraçado roubou
meu sapato. Ele tinha cara de trombadinha. Mas a Luzia não
acaba com essa discussão.Tenho de falar com ela. Cadê o
meu sapato!?
Dirce nem percebeu, perguntou espantada e em voz
alta o que chamou a atenção de todos. Sapato! Que sapato?
falou Paulo Santana. A senhora está sonhando? disse
Messias. Ah! Desculpe, respondeu Dirce enrubescida. Eu
explico. Dirce contou o ocorrido e logo Paulo Santana
interrompeu. É um sapato branco com salto quebrado? É sim,
respondeu ela. Chi! Eu vi caído dentro da valeta. Peguei,
joguei de lado, veio um cachorro, pegou com a boca e saiu
brincando. Ah! minha Nossa Senhora Aparecida! Mas
como? falou alucinada, a assistente social da prefeitura.
Agora me lembro, o cachorro é de seu Dito, disse Paulo
Santana. Vamos no barraco dele, o cachorro deve estar lá.
Assim saiu toda a comitiva pelo meio da favela.
Dirce manquitolando, Luzia chamando pelo cachorro,
Zequinha procurando pelos barracos, Paulo Santana
mandando Messias ir na frente....
* * *

Oi Gente!
Maconha! Maconha, senhores ouvintes, 200 quilos de
maconha foram encontrados pela valorosa polícia de São
Paulo. 200 quilos da erva. A polícia chegou num pente fino e
lá estavam os vagabundos. Vagabundo, sim. Eu não tenho
medo, vagabundo pra mim é na cadeia. Parabéns, policia.
Quem sabe onde foi? Eu digo já. Primeiro bom dia! Mas bom
dia mesmo! Com vocês Senhor X.
Agora vamos falar de Amélia. Amélia é a melhor.
Você está assim no fim da tarde,com aquela vontade, ou
antes do almoço, ou do jantar. Amélia vai muito bem. Não se
deixe enganar. Só Amélia é pura. Você que está sentado no
barraco sem fazer nada, só curtindo uma preguiça. Saiu e não
arrumou emprego? Não esquente a cabeça. Amélia está aí
para resolver. O senhor brigou com a patroa, Amélia consola.
Chegou em casa sem dinheiro, a velha achou ruim? Você se
zangou ? Amélia pra sua alegria. Esqueça os problemas da
vida. Amélia todo dia! Amélia, a caninha pura!
Após um som de estalido da língua o locutor retoma o
assunto da maconha. Bem, eu estava falando sobre os 200
quilos de maconha.
Vejam bem senhores, 200 quilos de maconha foram
encontrados pela polícia numa operação pente fino. Safados,
vagabundos, pilantras, depois ficam chorando lá na delegacia.
Não são homens não? Pra dar uns pegas são bons, né?
O despertar na favela era finalizado pelo programa do
Senhor X. Nove horas, o sol ia quase a pino, as lavadeiras
desciam com suas bacias para a bica d’água. No café da
manha, mingau de fubá já tinha sido tomado. Quem foi já
tinha ido, quem não foi estava se preparando, mas no ouvido
de todos ia Senhor X. O som do rádio era amplificado, em
todas as ruas, todas as vielas, todos os barracos. Em todos os
ouvidos, Senhor X.
Sabem aonde foi? Na favela do Brasil. Aquela que já foi
notícia outro dia. Aquela favela onde fizeram um "serviço na
Maria, aquela vagabunda. Mas, ouvintes, deixem eu falar
que o tempo está curto. Se você anda desanimado, amarelo
que nem cera, sem vontade de comer...agora tem um remédio
que é supimpa, levanta até defunto...Ferril. Este sim.
Amarelão, anemia, fraqueza, tome Ferril. Mesmo tomando
Ferril, você continua tossindo? Não tem problema Tossi e
pronto. Mas, ainda assim seu coração está fraco? Coraçãozil.
Tomando esses três remédios você fatalmente levantará do
caixão.
Vamos agora a mais um serviço de utilidade pública. Fala
o locutor agora numa rapidez de quem vai perder o bonde.
Manoel está à procura de sua irmã Teresa, que não vê há 30
anos. João Joaquim está à procura de seu avô Orestes. Juca
quer ver sua amante Zina. Joana quer conhecer Catarina.
Nossa, quanta gente perdida nesta cidade. E perdido estou
eu, se não acabar o programa em quinze segundos. Por isso
bom dia! Mas, bom dia mesmo! Não desligue, que vem aí:
Oi gente!
* * *

Camarada, Nicássia e a Bunda
Eram onze horas. Camarada levantou, a cabeça doía,
estava com uma zonzeira e uma vontade de vomitar. Também
não era para menos, mais uma vez tinha exagerado no
"fumo"; mas era preciso. O plano era ousado e não podia
falhar, como não falhou. E ali estava ele são e salvo.
Ninguém iria descobrir, ele morando na favela, capaz de
executar aquilo. Imagina! Camarada era alcunha de Paulo
Armando. Tinha esse apelido porque junto aos seus
comparsas sempre fora quem dividia o produto das ações do
grupo. Na noite anterior, Camarada executara um plano que
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todos consideravam arriscado, mas ninguém recusou, pois em
vezes anteriores todos os planos deram certo. Não havia o
porquê desconfiar de Camarada. O negócio era "quente".
Paulo Armando tinha uma amante, uma advogada
que morava nas imediações da Moóca, num apartamento de
quatro cômodos com relativo conforto, onde várias vezes
Camarada pernoitava e repartia a fatura do dia. O nome dessa
amante era Vera, doutora Vera. Ela era encarregada de ir
para a delegacia relaxar o flagrante. Era advogada "porta de
cadeia". Para não dar na vista, Camarada ia ao "ap" de Vera
em casos de extrema necessidade sempre acompanhado de
Nicássia, outra amante moradora na favela. Para os vizinhos e
o porteiro do prédio, ele era primo de Vera.
` Por isso o "ap" de Vera era tido como "quente" e
ninguém desconfiaria de nada. Ali não tinha sacanagem, isso
só no motel, quando Vera se encontrava com Paulo Armando
num fusca 82 e iam para a Marginal. Nicássia não se
importava, sabia de tudo, mas tinha suas compensações:
muita zona no seu barraco, com muito "fumo" e "grana" e
também muitos presentes; porém Paulo Armando não admitia
que Nicássia tivesse outro, pois ele é quem a sustentava.
Um dia, Nicássia, uma morena do tipo escultural,
belíssima, apareceu com uns hematomas no rosto Laurinda
perguntou o que era. Foi o Paulo que me encheu de porrada,
respondeu Nicássia. Nós estávamos num ônibus batendo uma
carteira de um otário, deixei que o homem ficasse se
esfregando atrás de mim, enquanto o Paulo fazia o "serviço",
depois ele foi para frente e desceu. Eu como sou mais
gordinha, não consegui atravessar com a mesma rapidez e
passei do ponto. Foi o suficiente, Camarada achou que eu
estava gostando das esfregadas do homem e me cobriu de
porrada.
Camarada se sentia seguro na favela. Ali a polícia não
entrava, tinha medo, mas agora o golpe foi alto. Se
descobrissem alguma coisa, iriam atrás dele e de Vera;
passariam um pente-fino na favela. Ninguém podia "abrir o
bico".
O sol estava quente, Camarada saiu correndo de
cuecas de dentro do barraco, foi para fora vomitando , a
garganta apertava, queria pôr os "bofes para fora’ Nicássia
ficou nervosa e começou a gritar, o que chamou atenção dos
vizinhos que logo foram se aglomerando. A quantidade de
maconha misturada com coca fora alta. Pessoas começavam a
dizer que era bom ela levar o Camarada para um hospital,
pois a cada minuto que passava seu estado piorava.
Nicássia não sabia o que fazer, foi se apavorando, vestiu
o primeiro vestido que encontrou. Procurou um carro, não
achou. Foi para a avenida e parou um táxi. O motorista
titubeou, mas Nicássia gritou e disse que pagaria o que fosse
necessário. Ajudaram a colocar o Paulo dentro do carro e
foram direto para o Hospital Vila Prudência.
No hospital, após conversar com o médico que queria
saber o que ele havia feito para estar naquele estado, Nicássia
muito nervosa não sabia o que responder, o que levantou
suspeita por parte do médico, que pediu para Nicássia
aguardar fora da sala, ele iria fazer uma lavagem no Paulo
Armando. Nicássia obedeceu e saiu da sala.
O médico chamou o investigador de polícia de plantão
e lhe disse de sua suspeita, achava que o rapaz estava dopado
com alguma droga ou dose forte, o que portanto caberia uma
investigação. O investigador foi falar com Nicássia.
Ela fumava muito, estava muito nervosa, nunca tinha se
deparado com uma situação destas. O policial, com seu faro
canino, logo percebeu a palma da mão da mulata queimada
de cigarro. Marca típica de quem fuma maconha. Segundo o
policial, quando a polícia ou alguém inconveniente se
aproxima, o fumante vira o cigarro para dentro da palma da
mão o que lhe ocasiona queimaduras.
O policial começa a conversar com ela. Conversa vai,
conversa vem ela deixa escapar: "ontem foi demais, além do
fumo ele cheirou". Aí não deu outra, o policial disfarçado de
porteiro do hospital, levou ela para o "chiqueirinho" e fez
"abrir tudo", até as pernas.
Paulo Armando saiu da sala do médico e na porta o
investigador o esperava pedindo a ele que acompanhasse.
Paulo não desconfiou de nada, achando que era para pegar
algum remédio. O policial estava vestido de enfermeiro.
Perguntou sobre Nicássia. O policial disse que ela estava na
sala de espera. Levou ele direto para o chiqueirinho. Quando
Paulo Armando percebeu, já era tarde. Não reagiu, sabia que
não adiantava, tinha a cabeça no lugar. Chamou o policial e
ofereceu dinheiro, recebeu como resposta um soco na cara.
Pediu ao policial que não registrasse nada.
O investigador saiu e retornou horas depois. Paulo
Armando lhe ofereceu mais dinheiro. O negócio foi bom,
hem vagabundo? perguntou o polícia. Foi razoável, doutor.
Acho que dá pra gente se entender, respondeu serenamente
Camarada. Se entender o quê? Aquela vagabunda da Nicássia
abriu tudo, o bico, as pernas, a boca.
Paulo Armando quis reagir, mas sentiu que estava em
desvantagem.
O policial então propôs: Nós vamos sair daqui. Você
me leva ao "moço". Eu quero dois carros, um para mim e
outro para o médico. Ele sacou tudo, e também te salvou a
vida. O negócio é o seguinte: você manda a vagabunda ir
buscar a grana. Se ela não voltar dentro de duas horas, eu vou
fichar você. Depois ela fica aqui trancada e nós vamos buscar
um carro. Se você armar alguma coisa diferente, o médico
tem ordem para entregar a Nicássia. Entendeu? Tá
combinado?
Nicássia saiu do hospital com a orientação de trazer o
dinheiro e não dar "bandeira". Paulo Armando ficou trancado
no quartinho, torcendo para que tudo desse certo, pois até ali
estava limpo. Nicássia voltou dentro do prazo combinado,
com um pacote de dinheiro dentro da sacola.
Ah! você é boazinha mesmo. Que gostosa, que bunda!
Vamos lá pros fundos que eu quero ver toda essa grana e toda
essa bunda, disse com sorriso de lagarto o polícia.
Depois de terem feito tudo, o polícia soltou o
Camarada e reteve Nicássia. Disse para Paulo Armando que
agora era a vez dele. Que ele voltasse com o carro , e, se ele
desse alguma mancada, quem iria pagar era a negrona. Paulo
Armando saiu, o polícia contou a grana, fez um outro pacote,
entrou no chiqueirinho onde estava Nicássia e disse que
Paulo Armando não voltaria, porque ele tinha medo de ser
preso e com isso ele nem estava dando bola para ela, e que se
ela quisesse sair teria que pegar no pau dele e fazer tudo o
que ele quisesse. Nicássia obedeceu cegamente. Paulo
Armando não voltou, sabia que isso era uma arapuca e que
entre a apalavra dele e a do policia, ele perderia. O polícia foi
para o banheiro se limpar, saiu deixando a porta aberta.
Nicássia levantou, se limpou e saiu.
No mesmo dia, o polícia saiu de licença-saúde assinada pelo
médico que atendera Paulo Armando. O atestado tinha a data
de dois dias anteriores ao episódio.
A noite estava combinado que todos iriam ao "ap" de
Vera para dividirem o dinheiro. Todos foram, mas só
Nicássia sabia da história. Ninguém acreditou e acharam que
foi um golpe de Camarada.
* * *

Apagados no ap
Bom dia! Mas, bom dia mesmo! Senhor X lhes diz
bom dia! Hoje vou falar sobre um caso acontecido num "ap",
no bairro da Moóca. Antes porém, o meu recado para a
senhora que tem problemas com o marido. Se ele não a está
procurando mais é porque a senhora não está usando
Calcinhas Porta de Entrada. São as mais bonitas calcinhas
que uma mulher pode usar. Com as calcinhas Porta de
Entrada, ele não vai errar e se falhar... então, a senhora tem
de mandar ele tomar Jurubeba Leão do Norte e comer Ovos
de Codorna Levanta Vôo, da Granja Santa Felicidade. Não se
esqueça de pôr as calcinhas Porta de Entrada hoje à noite. Aí
se ele errar... então, troque de marido.
Bem na Moóca, num "ap", foram encontrados dois corpos:
um casal baleado. Uma morena bonita e um rapaz alto e
magro. Ela se chamava Vera, mas o engraçado é que na foto
ela está loira e dele não foram encontrados documentos. Não
havia sinais. A morena mesmo morta era bonita, uma negrona
gostosa. Ele, franzino. Até que formavam um belo casal. No
chão, algumas notas de dinheiro. O caso está intrigando a
polícia.
Bom dia! Mas, bom dia mesmo! Senhor X lhes diz
bom dia!
* * *

A Favela e a Sociedade
Você viu? O Paulo Armando e a Nicássia foram
enterrados como indigentes.
A morte de Camarada revoltara alguns moradores da
favela, outros não deram bola e muitos outros respiraram
aliviados. As revoltas eram por ser Camarada e seu bando
praticamente de crianças, que tinham toda uma vida pela
frente, mas acabaram daquela forma. Indigentes indi gentes
gentes in in gentes gentes down.
Foi com este raciocínio que naquela manha, seu
Zequinha da venda resolvera ligar seu aparelho de altofalante,
que há muito não funcionava. Começara a ler um
ponto que a professora Lílian lhe dera há um tempo atrás.
Seu Zequinha era um homem muito esforçado, apesar da
dificuldade de visão que tinha. Ao lado de Luzia era um
aluno exemplar, estudava com afinco, não faltava a uma aula,
era calado e por isso agora muitos se surpreendiam em ver e
ouvir seu Zequinha falando no alto-falante.
O alto-falante fora usado por Zequinha logo no
começo, quando ele havia se mudado para a favela. Tocava
suas músicas nordestinas. Porém, logo teve que guardar esse
brinquedo, pois a vizinhança reclamava do barulho. Seu
Zequinha entendeu que não era o barulho, mas sim as
músicas que tocava.
Seu Zequinha lia o ponto com dificuldades, tornando
quase incompreensível o texto, mas logo muitos começaram a
compreender o sentido. Estava no ar a Rádio Popular dos
Moradores da Favela. Zequinha começa a ler a Revista
Retrato do Brasil, número 26. A matéria é Nossos Pixotes:
"Em l984, o país contava com mais de 25 milhões de
menores carentes e abandonados devido sobretudo ao modelo
excludente, que gerou, em l980, cerca de 4 milhões de
famílias na faixa de pobreza absoluta".
Neste momento chega Eva, e também toma assento no
apertado quarto de Zequinha, que agora se transforma num
programa de auditório com gentes pelo quintal e outros
cômodos da casa e venda. Sua filha mais nova passa a
atender no balcão as pessoas que, enquanto ouviam o
programa da Rádio Popular dos Moradores da Favela,
aproveitavam para bebericar alguma coisa.
Logo das proximidades chegou Romeu, um estudante
universitário, cursando o terceiro ano de Sociologia, que pede
o microfone e começa a falar sobre a situação de miséria que
muitas famílias brasileiras padecem e com a sua empolgação
passa a falar dos institutos que abrigam os menores, que
brigam e brigam pelo não abrigo. Brigam com o abrigo,
brigando com a vida que os obriga a serem abrigados e
obrigados daquilo que abrigados terão de fazer, " quem
deveriam ser abrigados eram os pais. Assim não deixariam os
filhos desabrigados", fala Romeu. Quando Romeu fala a
palavra FEBEM, ouve-se um grito do meio do público
ouvinte: É, são esses cachorros que querem levar nossos
filhos para a FEBEM para poderem se aproveitar deles. Lá
eles ficam doentes, pegam piolhos e ainda os homens viram
maricas e as meninas prostitutas.
Muito bem! gritou outro alguém. Palmas e mais palmas.
Nesse dia Luzia dera sorte, não fora trabalhar a
pretexto de ir procurar emprego em uma metalúrgica, como
era o sonho dela. Tinha ido e voltado. Conseguira trabalho na
General Eletric, em Santo André. Não entendeu nada do que
estava acontecendo, mas numa rápida conversa se pôs a par
da situação. Ela foi ficando eufórica com tudo aquilo, era a
juventude em busca da verdade. Aliás, como diz o poeta
Roque de Souza" os jovens são eternos amantes da verdade".
E ali estava Luzia, de corpo e alma; Romeu, de alma e corpo;
Mário, de corpo; Paulo Armando, de alma; todos se
empenhando para que seu povo soubesse a verdade. Luzia,
sempre imaginara fazer aquilo, só que não sabia como fazer,
e essas coisas não se sabem com antecedência.
Seu Zequinha desliga o aparelho para esfriar quando,
de repente, levou um abraço e um beijo de Luzia, que não se
conteve e falou: Poxa, seu Zequinha, quem diria, logo o
senhor? É minha filha, boi sonso a cornada é certa! Mas
como o senhor foi ter toda essa idéia. Logo o senhor tão
quieto nas aulas!? Tá certo que está sempre disponível para
todos, mas sempre quieto e só fica atrás do balcão da venda,
vendendo pinga pro pessoal. Não é só pinga, Luzia, vendo
outras coisas também, mas vou satisfazer a sua curiosidade.
Há muito tempo atrás, lá pelos anos de l960, eu fazia parte
das Ligas Camponesas, do Francisco Julião. Você já ouviu
falar nisso? Ouvir falar já ouvi, mas eu não sei nada, não.
Nesse momento chega a professora Lílian, que
naquele dia tinha ido mais cedo, pois ela se comprometera
junto a um grupo de alunos fazer uma pesquisa na favela
sobre as condições de saúde do bairro. Viu todo aquele
rebuliço e chegou junto ao bar de seu Zequinha que foi logo
dizendo: Chegou a tempo professora, a Luzia está me
colocando na parede, querendo saber o que foram as Ligas
Camponesas, assim a senhora explica melhor. Não, eu não,
disse Lílian. Quem explica é o senhor que participou dela,
ninguém melhor que o senhor para falar sobre o assunto.
Mas a senhora sabia? perguntou Luzia. Sim. Um dia
eu e o seu Zequinha conversávamos sobre a vida e ele me
contou sua história. Agora, antes disso, eu quero saber tintin
por tintin do que está acontecendo aqui.
Luzia explicou para Lílian o ocorrido naquela manha.
Lílian depois de ouvir o acontecido, enquanto o alto-falante
esfriava, começou a falar sobre as Ligas Camponesas, pois
seu Zequinha saiu para atender o balcão. No Nordeste,
surgiram as famosas Ligas Camponesas, um dos movimentos
mais radicais conhecido no campo. Elas pregavam a reforma
agrária, legal ou à força, e tinham como objetivo despertar a
consciência sobre o modo em que viviam, despertar a
consciência política dos trabalhadores rurais através de
discussões sobre a realidade da vida.. Agora uma informação
importante: a Luíza Erundina, teve contato das Ligas
Camponesas, e conheceu Francisco Julião. Luíza Erundina
era uma assistente social da prefeitura que trabalhava na
favela, sempre preocupada com o bem-estar dos moradores
e suas condições de vida.
Nesse momento Eva entra no quarto e fala se Luzia
não vai comer. Luzia levanta-se, diz que Lílian está ali e a
chama para ir comer também. Não! diz Zequinha. Eu já
mandei preparar uns sanduíches pra nós aqui. Não é coisa
boa, mas dá pra engolir. Ora seu Zequinha, diz Lílian. Não
precisa se preocupar, eu almocei antes de vir pra cá. Deixa
de luxo, dona Lílian, vamos lá comer, vem também dona Eva
e você, Luzia, o que está esperando?
Após alguma resistência todos acabam aceitando e
vão comer. Zequinha mandara preparar carne moída com
molho, abriu algumas tubaínas e passaram a comer em meio a
risadas sobre as situações ocorridas naquela manha, e
também preparavam os planos da tarde. Havia a disposição
de se continuar com a Rádio Popular dos Moradores da
Favela.
Eva interveio na explicação e disse que o povo estava se
ajuntando e portanto era hora de recomeçar a transmissão da
Rádio e era importante que continuassem a falar sobre a
situação do menor. Nesse momento chega Romeu, o
estudante universitário. Junto com ele veio Tadeu, um
professor e amigo, a quem informara sobre o ocorrido e este
se interessou pelo assunto.
Zequinha começara a montar o equipamento,
colocara um disco para ir tocando e chamando a atenção
dos moradores. De repente entram no quarto, agora
novamente transformado em estúdio radiofônico, dois
garotos: Bola Sete e Febem. Conversaram num canto com
Eva e depois ela veio falar com o pessoal. Eles, os meninos,
querem dar o seu depoimento. Eles eram "clientes" da
FEBEM. Todos concordaram que deveriam falar e Romeu,
Tadeu e Luzia deveriam entrevistá-los.
Tadeu, sem cerimônia, pegou o microfone,
apresentou-se e depois de uma explicação sobre a situação do
menor, dirige-se a Bola Sete e Febem e pergunta: Como é o
tratamento dentro da Febem? Bem, diz Febem, nós estava
numa ala onde ficava os doentes da "cabeça", eles achava que
por eu ter a cabeça grande, eu era mongolóide e deixavam
o Bola Sete pra tomar conta de mim. Bem , lá dentro tem de
tudo, MC - 1 que é injeção para impregnar. Uma injeção que
a gente fica todo torto. A "sossega leão", que é uma injeção
para a gente ficar mole, dormir três ou quatro dias. Lá tem
problemas de tóxicos? pergunta Romeu. A gente cheirava
éter, diz Febem. Onde vocês arranjavam? quer saber o
professor. Lá na manutenção, responde Bola Sete. Eles
ponhava a gente pra trabalhar na manutenção e na hora do
almoço a gente trazia um saquinho de éter e a gente cheirava.
Eles, os inspetor, ficava a maior parte do tempo lá dentro da
inspeção conversando com as "tias", fazendo safadeza com
elas.
Eles faziam safadeza com os meninos também? quis
saber Luzia. Faziam, responde Febem. Tinha um tal de "tio"
Gilvan que fez safadeza com um molequinho. O menino era
meio bobo, não sabia se defender. Eles batiam em vocês?
quer saber Romeu. Batia. Tapa, soco no estomo pra gente
ficar mesmo gemendo meia hora no chão. Daí, quando eles
viam que não adiantava, eles falavam pro médico que a gente
tava muito agitado. O médico dava uma quantidade de
injeção e eles ponhava outra no meio pra gente ficar meio
bobo. Como você sabe ? perguntou Eva. Os
médico passavam uma injeçãozinha só pra ficar calmo, eles
pegavam e botavam o "sossega leão". E quando os pais iam
visitar? perguntou alguém da platéia. Tinha visita não. Pai
não se importa com a gente. Ia muito pouco e quando ia, os
médicos "desimpregnava" a gente pra não criar problema.
Isto é, eles sabiam que a mãe ia, aí não dava a injeção. Vocês
nunca falavam pra mãe? quis saber Luzia. A gente falava.
Um tal de Moacir falou pra mãe dele. Ela deu denúncia, mas
não adiantou nada. Falaram umas mentiras pra ela e ela não
falou mais nada. E também tem um moleque que fez o outro
comer merda no banheiro. Ele era outro bobinho e os "tios"
viram e não fizeram nada. O moleque pegava cocô e dava pro
outro comer. Todo mundo viu e ninguém fez nada. Ele fazia
isso sempre, os "tios" nem ligavam. Daí a gente ia ver o
garoto e ele tava botando tudo pra fora. Por que não faziam
nada com esse moleque que dava cocô pros outros comerem?
Ele era o preferido deles, disse Bola Sete. Ele é protegido
pois é muito puxa- saco. Ele dava cobertura pros "tios", isto
é, se havia alguma denúncia o moleque ia ser testemunha a
favor. O nome desse moleque é Fernando. Além do mais o
Fernando era quem conseguia a maconha. E também quando
os "tios" não queriam bater na gente, eles mandavam o
Fernando e o Luís Carlos. O Luís Carlos cortou o meu braço,
aqui oh, tá vendo a marca? Eu levei três pontos e falei pro
"tio": por que que o senhor não dá injeção nele agora? Não
adianta, ele já é doidinho, respondeu o "tio". Quer dizer que
os "tios’ sabiam que tinha maconha lá dentro? perguntou
Luzia. Tinha um tal de "tio" Lourival, que o próprio
Fernando dava maconha pra ele . Ai ele ia pros fundos e
puxava um fumo. Ficava doidão. Colocava o pau pra fora e
começava a mijar, depois ficava alisando e querendo pegar a
garotada. Esse tal de Fernando já foi internado umas sete
vezes. Ele não tem nada na cabeça. Os tios preparavam a
injeção e mandava ele bater na gente.
O povo se acotovelava em frente ao armazém de
Zequinha e se apertava no quintal, todos atentos aos
depoimentos.
O que mais acontecia lá? O tal de Luís Carlos uma
vez estuprou um moleque, ele e o tio Gilvan. O Luís pegou o
menino e comeu o rabo dele, logo depois chegou o Gilvan, o
moleque já estava meio sangrando, o Gilvan não quis nem
saber e enfiou o pau nele. Isso foi tudo à força.
A tarde se ia indo, e a população não arredava o pé
de ouvir a Rádio Popular, o índice de audiência subia a todo
instante. A rua estava tomada de gente. A entrevista com
Bola Sete e Febem estava acabando Luzia pegou o
microfone, falou alguma coisa e disse que agora quem falaria
seria Eva.
Esse parece ser o fim dessa juventude sem futuro,
começou a falar Eva, e nada se pode fazer por eles. É muito
fácil os ricos dizerem que não adianta querer ensinar o
pobre, pois ele é burro e não aprende. Isso não é verdade. Se
dessem escola, trabalho, duvido que isso teria acontecido
com essas duas crianças. Mas também que caminho foram
escolher. Ou será que foram empurrados para ele? Digo isso
como se eles pudessem escolher o seu futuro. A gente cuida
das crianças, faz esforços para só ensinar o bem. Bater
pensando que está ajudando. "Raia" com eles, vê o bichinho
crescendo, chora junto e depois dá nisso: morrem e levam
uma parte da gente. E o que é pior, sabemos que não serão os
últimos. Olhe lá Zezinho, Pedrinho, Daniela, brincando
pelados, uns no campinho de futebol, outros na bica, ali não
sentem frio, fome, sede, a gente chama pra comer e nem
ouvem. Que alegria, a bola é de pano, mas não se importam.
O revólver é de pau, mas nem percebem. Matam e morrem,
depois saem correndo. Qual será o futuro deles? A gente já
sabe, eles não.
Eva terminou de falar, seguiu-se um silêncio de que
mais nada precisava ser dito. Eva saiu vagarosamente,
dirigindo-se para sua casa, na esquina da viela, de onde
podia se ver a parte baixa da favela. Ela reclamava toda vez
que tinha de subir a escadinha cavada no barranco, em dias
de chuva então nem se diga. A casa não ostentava nenhum
luxo: uma cozinha e um quarto se misturavam e, para quem
não conhece esse tipo de moradia, não se pode de maneira
alguma distinguir onde começa a cozinha ou onde termina o
quarto.
Fora o fogão, no barraco havia duas camas de solteiro,
de armar, onde dormiam Luzia e Eva, um guarda-roupa
velho, umas tábuas por cima de tijolos imitando uma
prateleira, onde se viam alguns pratos, panelas e canecas de
alumínio, amassadas pelos muitos tombos que já tinham
levado. Muitos desses tombos provocados por Luzia quando
criança. Num canto, Luzia tinha uma grande caixa de madeira
onde guardava suas coisas e livros da escola. Suspensas
ainda, estavam duas tábuas, amarradas com arames no caibro
do telhado. Ali Eva mantinha alguns pacotes, e que também
serviam para guardar principalmente alimentos quando
chovia, pois o chão ficava num barro puro. Também o gato
Chamim costumava dormir aí e se esconder do Dick, um
vira-latas que Luzia ganhara e do qual cuidava com muito
carinho, mas que ainda não tinha se acostumado com
Chamim.
A noite vinha chegando, Eva estava rouca. Começava
a ficar um sentimento de "e agora o que fazer"? A resposta
não tardou. De repente, dois camburões da polícia adentraram
a viela que dava acesso à venda de Zequinha, cada um por
um lado, com as sirenes ligadas. Logo atrás, vinham duas
baratinhas e mais carros da polícia.
Soldados descendo com cassetete na mão e
dispersando os moradores, perguntando quem eram os
comunistas responsáveis por aquela baderna. Dois policiais
encostaram Nicanor na parede de um barraco e começaram a
cutucá-lo com a ponta do cassetete. Logo foi preciso que
viessem mais guardas porque Nicanor era forte, atarracado,
mas ele não abriu a boca.
Outros policiais entraram no quarto-estúdio de rádio e
fizeram todos ficarem de pé com a mão na cabeça. Enquanto
uns vigiavam com metralhadoras, outros começaram a
quebrar tudo: camas, banquinhos, alto-falante, microfone,
vidros, janelas, portas, até o penico de seu Zequinha foi usado
para apagar o fogo. Outros davam tiros para o ar. Aí não
ficou ninguém, só a polícia. De repente sumiram todos.
Enquanto tentavam apagar o fogo, começaram a ser
apedrejados. Já era noite, ninguém via nada. As pedras
vinham do alto. Imediatamente entraram nos outros carros e
sumiram. Apareceram os moradores e terminaram de
apagar o fogo da baratinha, para que não atingisse os
barracos.
* * *

Mário e a Madrugada
Isso é o fim do mundo! disse irmã Madalena, a
presbítera da Igreja. Onde já se viu? É o Apocalipse. Que
loucura, devemos orar por eles. Estão com Satanás! falou
Messias. Bem irmãos, começou a
falar Mário, não é bem assim. A polícia já chegou batendo.
Ninguém tem sangue de barata. E quer saber mais? Durante
toda aquela confusão, o irmão Messias estava de cochicho
com Paulo Santana. Quero saber se foram vocês que
chamaram a polícia?
Houve um silêncio na igreja. Todos se entreolharam
como que perguntado sobre o atrevimento de Mário em
questionar uma coisa daquela e ainda naquele tom,
desrespeitando a uma pessoa mais velha e, ainda, presbítero
da igreja! A pergunta de Mário ficou sem resposta. E foi
aquele blá...blá...blá...até as dez da noite. Antes porém, Mário
deu um jeito de sair para nunca mais voltar.
Mário não conseguira dormir direito. Ninguém
dormiu direito. A casa de Eva ficou cheia de gente até tarde
da noite. Ficaram conversando sobre o acontecido. Mas
Mário precisava dormir, tinha de ir cedo para a feira, onde
marretava miudezas.
Eram três horas da madrugada. Mário dormira mal. A
vontade era de continuar na cama, mas qual, não tinha
dinheiro nem para o almoço. Com muito esforço levantou,
pegou um caneco de água fria, abriu a porta, sentiu um ar
gelado, lavou o rosto e deu uma espreguiçada. Fez um café,
tomou, pegou a mala de miudezas e saiu.
A praça Marechal Mascarenhas de Moraes estava
começando a ficar movimentada. Homens e mulheres com
giz marcando seus lugares, quadrados ou retângulos de um a
dois metros. Ali colocariam um pano ou um plástico no chão
e em cima mercadorias.
Aqui tá ruim, disse um senhor. Eu vou ficar aqui,falou uma
mulher. Mário se ajeitou num canto perto de um poste. Já
tinha onde se encostar, aí vezes até cochilava.
Noutro canto, um menino tremia sob o frio da
madrugada, acompanhava sua mãe em todas as feiras. Mário
ficava pensando no sofrimento daquela criança. Sem dormir,
sem comer direito, sem escola, acompanhando a mãe, desde
cedo aprendendo sua profissão. Ficava encolhido, olhando o
movimento. Estivesse fazendo o que tivesse, ele só se
alegrava quando a mãe chamava: vai no bar tomar café. Pede
um pingado, pão eu trouxe de casa. Eu quero encher a
barriga, falou o menino. Não adianta fazer birra, compre só o
pingado, disse com ar de braveza a mãe.
A mãe falava daquele jeito, mas era incapaz de negar
alguma coisa para o garoto. Daquele pingado, provavelmente
ela só tomaria um gole; com a outra parte ele se deliciaria.
Dinheiro para dois pingados não tinha.
bar aos domingos abria bem cedo, para poder atender
aquela freguesia dos marreteiros. Um café bem quente, leite
fervido, pão e manteiga era o pedido dos vendedores. As
vezes saía um pão com mortadela, alguns tipos de bolinhos e
pastel, todos feitos pela dona do bar.
A neblina ia desaparecendo aos poucos, conforme o
sol surgia. As barracas estavam arrumadas, miudezas,
roupas, chinelos, cereais, carnes, de tudo podia se encontrar
em qualquer feira livre de São Paulo. Interessante era como
esse tipo de comércio convivia com as casas comerciais
estabelecidas em prédios próprios ou alugados. Ou melhor,
como esses estabelecimentos conviviam com as feiras, já que,
historicamente, as feiras livres surgiram primeiro.
De repente, a falação era geral, começava como um
passe de mágica. Movimento, muito movimento, pessoas
surgiam de todos os lados para comprar, passear e especular.
Todos falavam ao mesmo tempo: "Olha o chinelo. Vai
levando, tá quentinho. Moça bonita não paga, mas também
não leva".
No final da rua terminava a feira. Lá havia uma
aglomeração. Pessoas se acotovelavam, querendo ver e ouvir
aquele homem vestido de terno, que falava: Meus ilustres
senhores, bom dia, eu não estou aqui para fazer propaganda
ou para soltar uma cobra. Mas sim para lhes trazer a cura
definitiva para todos os males. Fígado, bílis, rins, estômago,
úlcera, coceira. Tenho cura para tudo. Já andei por toda a
América Latina, Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai, Peru,
Bolívia. Estou com viagem marcada para os Estados
Unidos. Falo inglês, castelhano, português e a nossa boa
língua: o baiano. Agora os senhores poderão dizer: Se tem
tanta cultura porque não vai trabalhar num bom lugar?
Acontece que não gosto de ser prisioneiro, tem os que gostam
e precisam, eu não condeno. Mas, eu não tenho vocação para
agüentar chefe. E por falar em chefe, eu vou declamar uma
poesia para vocês.
O homem passava um lenço pela testa, o suor
escorria, o sol ia alto, o calor era muito. Afrouxava um pouco
o nó da gravata, ia para um lado e outro. Abria uma garrafa
de água, bochechava e cuspia fora. Pronto, lá vai o poema. O
nome dele é A Cor da Dor.

Me adescurpe, não faço mais
Cabeça baixa
Lágrimas a escorrer
Dependência
Não podia responder.
Máquina quebrada.
Produção parada.
O lucro mensal
já fora atingido.
Ganância
Atingido foi
o Homem
Que pela sua cor
se via a tamanha dor.

Então é isso, senhores. Eu não tenho sangue pra ser
um homem como esse da poesia, que devido à precisão tem
de agüentar os almofadinhas. Bom, mas vamos falar do meu
produto de mil e uma utilidade. Alguém do povo pergunta:
Isso faz a gente parar de beber? Olha, minha senhora, esse aí
não, mas essa garrafada com certeza vai deixar seu marido
sem nenhuma vontade de beber. Não tem coisa melhor, diz o
vendedor. Então me dá logo duas garrafadas. Aquele diabo
dessa vez vai ver. Já não compro, falou outro alguém. E a
platéia caiu na risada.
Aos poucos o homem ia vendendo suas garrafadas,
chás, raízes, ervas... De repente ouve-se alguém gritando:
Bega, bega...esse menino pegou meia de Salim.
O turco furioso corria atrás de um moleque
branquinho, pelo meio da feira. Em outra banca, uma menina
pediu uma banana. O vendeiro pegou uma já meio passada e
deu para ela. A feira prosseguia, meninos se ofereciam para
carretos, outro menino à frente choramingava porque a mãe
não queria comprar um pirulito, era um berreiro. O menino
ganhava era um cascudo.
Era dia doze, a feira prometia ser boa. Dia dez o
pessoal tinha recebido o pagamento. Os negócios em geral
iam bem. Mário vendia bem, a mulher em frente também.
Todos fazendo compras. No fim da rua, o raizeiro vendia
bem, tudo normal, até que alguém grita: Olha o rapa!!!
E começou a correria. Os marreteiros pegavam o que
podiam, enrolavam no pano e saíam correndo. Muitas
mercadorias caíam pelo chão. As pessoas pegavam e iam
atrás dos vendedores para devolver.
Larga tudo aí, disse um funcionário da prefeitura. Ele
estava dando uma de fiscal. Aliás, essa era uma prática
normal na Prefeitura. Faltavam fiscais, então as equipes de
busca e apreensão eram completadas por outros funcionários:
faxineiros, porteiros... (estes mais queriam trabalhar no
"rapa"), ali completariam o baixo salário que recebiam.
Vocês não vão levar minhas galinhas, disse exaltado o
galinheiro. Larga aí, senão chamamos a polícia, respondeu o
funcionário público.
O galinheiro não teve dúvidas, abriu o caixote e as penosas
saíram voando. Muita gente correndo atrás das galinhas,
embaixo das bancas, dentro dos quintais das casas. Só o fiscal
que não pegou nenhuma. O vendedor saiu dando risada de
prazer.
Depois o galinheiro conseguiu reaver uma boa parte das
galinhas, já que a molecada e muita gente conseguiu pegar e
vieram devolver, todos dando muitas risadas e comentando o
fato.
Menos sorte teve outro fiscal, conhecido por Toninho,
que trabalhava na Administração regional de Vila Prudente,
AR-VP. Ele foi pedir os documentos para um pasteleiro e
como o vendedor não apresentava a licença, o fiscal disse que
toda a mercadoria iria ser apreendida.
O pasteleiro diante da situação jogou o tacho de óleo
quente para cima do fiscal, que mesmo pulando para trás
ainda teve uma parte de suas pernas queimadas.
Imediatamente veio a polícia que sempre dava cobertura para
os rapas. Assim os polícias conseguiam também entrar na
divisão das mercadorias. O pasteleiro, por sua vez, conseguiu
fugir. Outro vendedor jogou toda uma banca de peixes dentro
da valeta de esgotos. Outro entregou as mercadorias e deu um
murro no fiscal, conhecido como Bom Cabelo. Uma
vendedora, dona de um belo corpo, chegou aos ouvidos do
fiscal e falou: Deixa eu sair de mansinho, que depois a gente
se encontra no jardim. Ele acreditou direitinho, e está
esperando até hoje.
Em mais ou menos uma hora estava tudo acabado.
Mário conseguiu sair sem ser pego. A mulher e o menino não
tiveram a mesma sorte, levaram toda a sua miudeza. Um
caminhão da prefeitura, cheio de mercadorias, ia embora.
Tinham sido em vão, o frio , a fome, o tempo. O menino
chorava num canto, a mãe falando muito. Mário saía da casa
onde se refugiara e agora consolava o garoto.
O jeito era arrumar dinheiro, ou comprar fiado, para
fazer a próxima feira, outra coisa não tinham a fazer, a não
ser...
Assim acabou a feira para aqueles que, primeiro na
história do mundo, a tinham começado: os camelôs.

Luzia e a Experiência
Luzia que há poucos meses trocara o setor têxtil pelo
metalúrgico, agora tinha um salário melhor e uma
participação política dentro do movimento dos trabalhadores.
Talvez tivesse agora a oportunidade que esperava: O
movimento reivindicatório fora deflagrado. Os metalúrgicos
não estavam contentes com as perdas salariais que vinham
tendo nos últimos anos.
Naquela manha, ela avisara Eva que chegaria mais
tarde, pois teria uma reunião à noite no Sindicato, onde iriam
decidir se parariam ou não. Ela estava toda decidida pela
greve, sem mesmo ter conhecimento da real situação. Na
General Eletric, Luzia fora eleita para a Comissão de Fábrica,
portanto tinha o compromisso de estar presente nas reuniões
onde decidiriam sobre a "vida" de seus colegas. Sim, sobre a
"vida". Era dessa forma que ela encarava a situação.
Durante o dia todo, Luzia ficou de um lado para outro
conversando com os colegas e falando sobre a importância de
irem à reunião logo mais à noite. Duas vezes fora advertida
pelo encarregado da seção onde trabalhava. Foi aconselhada
pelos colegas que ficasse quieta, pois o chefe pegava muito
no pé, e eles sabiam da importância da assembléia. Com
impaciência aceitou a opinião dos colegas.
à noite, junto com os trabalhadores, foi para o Sindicato. E
nas conversas que antecediam a assembléia, ela era firme
pela conquista dos 15,6% de reposição salarial e pelo
reconhecimento das comissões de Fábrica. Os patrões só
ofereciam 3,8%. Alguns poucos diretores do Sindicato e mais
algumas Comissões de Fábrica eram contrários à greve. Luzia
radicalizava na proposta de greve e não dava brechas para
outras conversas.
Para toda uma geração, a palavra greve era nova aos
ouvidos. Jovens trabalhadores, criados e educados sob o
regime militar. Somente há pouco tempo tomavam
conhecimento do significado da palavra, bem como do gosto
pelas conseqüências. Greve é a arma da classe trabalhadora,
significa braços cruzados, diz Luzia.
O Brasil, desde o seu descobrimento, sempre fora um
país de classes, poucas vezes o povo tinha essa consciência,
além da consciência, a condição de, enquanto classe, poder
desfrutar de uma união entre si para poder barganhar
situações que favorecem a classe menos privilegiada.
Caetano, um velho imigrante que estava prestes a se
aposentar, contava com firmeza para Luzia.
Pero Vaz de Caminha, prossegue Caetano, em sua
primeira carta ao rei de Portugal, escreve sobre o que viu
aqui, e diz o seguinte: "Pardos, nus, sem coisa alguma que
lhes cobrisse suas vergonhas". Diretamente Pero Vaz se
colocava na condição de civilizado e superior. Os nativos
aqui encontrados, inferiores.
Os portugueses acreditavam que realmente eram
superiores, fala o imigrante italiano. Davam como exemplo o
fato de terem cruzado o Atlântico com suas embarcações
avançadas para a época. E nisso eles tinham razão...
Tecnicamente eram um dos povos mais avançados da época.
Outro exemplo era o manejo das armas de fogo com toda
destreza. Os nativos não acreditavam no que viam, paus
cuspindo fogo e o fogo queimando. Se tecnicamente os
portugueses estavam avançados em relação aos nativos, no
campo social tinham-se dúvidas. Como assim? pergunta
Luzia.
Caetano, o velho imigrante que estava prestes a se
aposentar, era um antigo ativista dos movimentos paredistas.
Desde os velhos tempos do anarquismo, quando criança,
carregava bombas caseiras para os revolucionários,
escondidas dentro das calcas e paletós, explicava Caetano, e,
que pelo fato de ser um moleque, a polícia não desconfiava
de nada. Tomou gosto. E ainda hoje, depois de muitas lutas,
ele ia para mais uma batalha, quem sabe a última.
Eu te explico melhor, disse Caetano, é que os nativos
tinham um forma de vida social muito bem dividida, como
exemplo: A terra era a sua melhor posse. A pesca e a caca,
assim como a agricultura eram rudimentares, praticavam em
grupo. Propriedade particular!? Nem pensar. Não sabiam o
que era. Os nativos trocavam presentes todos os dias, era um
peixe pra lá e uma caca pra cá. Outro recebia um cacho de
banana e dava em troca uma macaxeira. Acredito inclusive
que ficariam envergonhados se soubessem que algum vizinho
passava necessidades.
Em Portugal, como na Europa em geral, prossegue
Caetano, a sociedade em sua organização era estratificada,
isto é, dividida em classes. Em cima estava a nobreza e o
clero, depois vinha uma massa de representantes das cortes,
constituídas de comerciantes e mecânicos, depois os
assalariados da agricultura, do comércio e pequenas
indústrias e, por fim, os escravos. É exatamente essa divisão,
essa visão social, que os portugueses tinham como certa e que
traziam para o Brasil das tribos nativas. E o social português
vem para o Brasil, trazendo uma realidade nova e iniciando
de fato uma divisão de classes, dando ênfase à escravidão.
Puxa, interrompe Luzia. Então não é de hoje que somos
escravos? É minha filha, essa situação vem de há muito
tempo. Em l6l9, outro português, Ambrósio Fernandes
Brandão, escreveu um livro, talvez o primeiro que fale sobre
a divisão de classes no Brasil. No livro ele escreve que,
naquela época o país tinha seis condições de gente livre:
marinheiros, mercadores, oficiais, mecânicos, assalariados e
ao fim os agricultores. Abaixo dos homens livres estavam os
negros escravizados que trabalhavam na agricultura, pecuária
e mineração. Tinha uma categoria conhecida como "negros
de ganho" que trabalhavam no transporte de gente e
mercadorias, e que tinham a obrigação de, ao final do dia,
entregar ao senhor uma parte de sua renda. Alguma coisa
parecida com o que acontece hoje nos serviços de táxi.
Após tomar um gole de água e se informar se a assembléia ia
começar, Caetano retoma a aula para Luzia. Os jagunços
constituíam uma classe de homens que teve um papel
importante. Eles moravam de favores nas fazendas dos
senhores, eram também os que iam caçar os escravos
fugitivos nas fazendas dos senhores, e por isso ficavam do
lado dos senhores em brigas e revoltas dos escravos.
Nessa época surgem também os posseiros, diz Caetano, que
eram os desbravadores de terra, sendo conhecidos também
como intrusos. Nas terras que ocupavam, eles praticavam
agricultura de subsistência e comercializavam o excedente.
Porém, eram sempre expulsos pela expansão dos latifúndios,
cujos fazendeiros diziam que as terras ocupadas pertenciam a
eles.
Epa! mas isso acontece ainda hoje, diz Luzia. Lá na minha
favela, apareceu um tal de Daniel Amaral dizendo que as
terras são dele e quer tomá-las de volta. Nós já estamos lá há
mais de vinte anos, essas terras eram totalmente
improdutivas, só tinha mato. Pois é, diz Caetano, a única
novidade na História é a técnica, pois os processos são os
mesmos.
Nesse momento um dos diretores do Sindicato
interrompe a conversa. Ele queria saber se tanto Luzia como
Caetano, que faziam parte de Comissões de Fábrica, se
necessário, fechariam com a posição de greve. Ora, que
dúvida. Não só fechamos com essa posição, como se for
preciso Luzia vai ao microfone defendê-la. Não é Luzia?
indagou Caetano. Claro! Nós temos que botar esses pelegos
para fora. Acordo com os patrões não tem cabimento.
Diante dessas informações, o diretor disse que a
assembléia iria demorar mais de meia hora para começar,
pois tinha chovido muito durante a tarde e muitos
companheiros ainda não haviam chegado. O diretor se retirou
e foi conversar com outras comissões.
Luzia aproveitou a interrupção, convidou Caetano
para ir ao bar do Sindicato e tomar um lanche, o que
prontamente Caetano aceitou.
Bom, Luzia, prossegue Caetano, é importante notar
que a nossa "Independência" também entra nessa luta de
classes, senão vejamos. O processo de independência foi
articulado e defendido por grandes comerciantes de
exportação e latifundiários, ficando de fora o escravismo, a
base do sistema produtivo. Com esse novo país, agora
independente, o Estado é fortalecido. Ganharam força o
surgimento de um Exército Nacional, em sua base formada
de jagunços e uma nova força de profissionais liberais
urbanos. Estava definida a estrutura social do Brasil, que teve
seu auge no império. Veja como era o censo de 1872, o
primeiro realizado no País: 4.560.149 manufatureiros,
fabricantes, comerciantes, guarda-livros, caixeiros,
funcionários públicos, costureiras, operários, artesãos,
lavradores, criadores e assalariados; 1.510.806 escravos;
27.216 militares e 31.863 capitalistas e proprietários.
Após dar um gole num guaraná Antárctica, Caetano
prossegue. Com o fim oficial do escravismo, em 1888, e
também do Império, em 1889, surgem mudanças na estrutura
classista brasileira. Há uma articulação dos "coronéis",
governadores e até do presidente da república e também do
congresso com a eleição de deputados, que sempre eram
oriundos das elites, ficando mais uma vez o poder com os
tubarões. As elites agrárias vão quebrando no sertão e fogem
para a cidade, reforçando a categoria dos profissionais
liberais como funcionários públicos, médicos, advogados,
sedimentando os setores médio-alto.
Agora Caetano, após dar uma bocada no lanche, limpa
a boca e prossegue. Na classe pobre, os escravos são
substituídos pela nova categoria que surge, os chamados
trabalhadores livres, conhecidos também como colonos, na
região sul, e com moradores, no nordeste. Formada
essencialmente de ex-homens livres, imigrantes e ex-escravos
que não deixaram as fazendas. Eram então os semiassalariados,
pois recebiam uma parte em dinheiro e outra em
terras para o plantio de uma cultura de subsistência, podendo
inclusive vender o excedente. Essa divisão vai até o início do
chamado processo de industrialização, que novamente mexe
com a estrutura de classes. Aí nasce de fato a classe operária,
aliás, muito combativa e barulhenta, apesar de pequena.
Talvez devido à influência dos imigrantes e seus
descendentes, e pelo movimento anarquista europeu.
Caetano, preocupado com o início da assembléia,
procura acelerar as explicações. Muitas greves aconteceram.
Infelizmente, a exemplo de hoje, também tinham os furagreves,
do tipo mão-de-obra reserva, concentrados nas
cidades. Em épocas de greve, eram requisitados para
ocuparem os lugares dos paredistas. Nesse vai e vem, o
processo histórico vai se consolidando. De um lado a
burguesia industrial e do outro os operários, sendo que em
1950 estes se firmam de vez e são fundamentais para a nova
divisão de classes no Brasil. Veja que esse processo dura
aproximadamente setenta anos e, de lá pra cá, foram mais ou
menos 30 anos e ainda temos muito que aprender em termos
de organização da classe trabalhadora.
Caetano olha para o relógio, começa a se preocupar
com o retardamento do início da assembléia, porém como
ninguém dá aviso de que vai começar, ele continua sua
explicação. Hoje a burguesia controla mais de 346 mil
estabelecimentos e só um pequeno grupo de 180 famílias,
junto com o capital estrangeiro e o Estado, dominam a
economia e a sociedade brasileira. Em contrapartida a isso,
apenas três grandes indústrias: Petrobrás, Volkswagen e
General Motors cem mil funcionários. Veja bem, Luzia,
sempre fomos maiores em números, mas até hoje
continuamos sem o poder. Mas eu acredito que antes de
minha morte ainda hei de votar para presidente num
trabalhador e colocá-lo lá em cima, governando junto com
outros trabalhadores esse imenso gigante adormecido,
roncando em berço esplêndido há quase quinhentos anos.
A assembléia foi rápida e não houve tumultos. Os
defensores de se aceitar o acordo com os patrões retiraram a
proposta da pauta. Em reunião realizada antes do início da
assembléia, avaliaram que não havia clima para defenderem a
proposta patronal, uma vez que a categoria estava muita
insatisfeita. Estrategicamente iriam furar a greve,
incentivando alguns trabalhadores que estivessem com medo
e outros que começassem a ter necessidades.
Luzia estava eufórica. Sonhava com aquilo, mas não
achava que viria tão cedo. Chegou tarde da noite em sua casa.
Eva a esperava sentada na beira da cama: Então, Luzia, por
que demorou? Como é que foi a reunião no Sindicato? Ué,
não passou na televisão? Estava lá uma equipe da TV Globo,
e a senhora não viu no Jornal Nacional? Não, espondeu Eva.
Eu assisti na casa do seu Zequinha e não passou nada.
Aqueles bandidos, respondeu com ironia Luzia. A equipe de
TV chegava a atrapalhar a assembléia, filmaram tanta coisa e
não passou nada! Tá vendo! Eu vivo falando pra vocês não
assistirem essa porcaria. Bom, mas o negócio era o seguinte:
deu greve. Ninguém trabalha a partir de amanha. Logo cedo,
eu vou para o Largo de São Mateus fazer piquete nos ônibus.
Eles têm que ir para as fábricas vazios. Se tiver um furagreve
dentro, nós vamos tirá-lo. Cuidado menina, esse
negócio é perigoso, falou Eva.
Nos primeiros dias de greve tudo ocorreu com certa
normalidade. Não havia fura-greve, as assembléias eram
cheias e ninguém cedia, nem patrões nem trabalhadores. Com
o passar do tempo, a situação foi ficando difícil. Alguns
trabalhadores começavam a passar dificuldades em casa. O
fundo de greve do Sindicato mal dava para começar. As
emissoras de rádio a toda hora veiculavam mensagens
patronais dizendo que os trabalhadores teriam prejuízos, que
os dias parados seriam descontados no pagamento, que
haveria demissões. O Jornal Nacional só transmitia as
entrevistas com opiniões dos patrões. Isso influía muito nas
donas de casa e muitas delas começavam a pressionar os
maridos para retornarem ao trabalho.
A situação piorou quando a direção do Sindicato caiu,
isto é, foi presa, após declaração de ilegalidade da greve pela
Justiça do Trabalho. Cresceu o medo e a tensão. Assumiu
uma segunda diretoria, só que na clandestinidade, da qual
Luzia e Caetano faziam parte. Eva ficou apreensiva, temia
pela segurança da menina, mas sabia que tudo aquilo fazia
parte da vida e da luta por melhorias do povo.
Na comunidade de São Benedito, Eva organizou um
fundo de greve. Durante dois dias passava junto com outros
moradores em todos os barracos da favela arrecadando
mantimentos para os grevistas. De canequinha em
canequinha, conseguiram quase três sacos de arroz, dois de
feijão, macarrão e outras coisas. Muita gente estava solidária.
As professoras Lílian e Lourdes arrecadavam somente óleo.
O estudante de sociologia Romeu e o professor Tadeu faziam
um fundo de greve na Universidade e traziam o dinheiro para
Luzia.
Certa noite, alguns trabalhadores foram procurar
Luzia em sua casa, e lá contaram a ela que alguns ônibus que
saíam do largo de São Mateus estavam com trabalhadores
dentro. Luzia disse que a ordem era parar qualquer ônibus de
fábrica e arrancar quem estivesse dentro. Porém, não
deveriam fazer aquilo ali em São Mateus. Moravam no bairro
e isso poderia facilitar a ação da polícia e dos dedos-duros.
Eles devem ir para outras regiões, como Sapopemba, por
exemplo. Iriam para lá e os grevistas de lá viriam para São
Mateus. Assim foi combinado.
Três horas da madrugada, o grupo se encontrou e foi
para o Sapopemba. Lá tiveram uma grata surpresa. Em um
dos ônibus que já ia sair para São Bernardo, estava o chefe da
segurança da Folks, um sargento aposentado da Aeronáutica.
Luzia foi alertada sobre o fato por outros grevistas que
conheciam o homem. Ela combinou com os companheiros
que entrariam no ônibus, como se fossem trabalhar, e depois,
dentro do veículo, tomariam alguma atitude.
Ao entrarem foram barrados pelo motorista dizendo
que não levaria gente estranha. Todos se identificaram como
trabalhadores e disseram que estavam com dificuldades de
pegar condução em seus pontos de origem. Os grevistas
estavam batendo em todos que queriam tomar o ônibus, e que
muitos carros já estavam com os pneus furados.
Convenceram.
Entraram e se espalharam. Homero sentou ao lado do
sargento que logo começou a dizer bravatas: Bando de
comunistas. Esse Lula é o mal do Brasil. Se fosse quando eu
estava na ativa e ele caísse na minha mão, nunca mais iria
fazer greves.
Mal terminou a frase e o sargento se mexeu no banco, como
se alguma coisa tivesse picado seu traseiro. Que diabo e
isso!? Parece que alguma coisa tá me picando. Mas, como eu
ia dizendo, esse bando de comunistas é o atraso do Brasil.
Será que eles não vêem que com isso só prejudicam a Pátria?
Aumento! A crise está feia. Ninguém tem dinheiro. Eles
deveriam dar graças a Deus de terem um emprego. Não vêem
no estrangeiro? É só guerra, e aqui só paz.
Mal o sargento acaba de falar, ouve uma voz marota
vindo de trás: Que bunda gostosa você tem! Mas o que é
isso? Você está louco? Quem é você? E partiu na porrada
para cima de quem estava atrás. Homero sentado ao seu lado
tentou segurá-lo, mas não conseguiu, o homem virou uma
fera. Os outros entraram no meio e tentavam acalmá-lo a todo
custo. Eu? Quem sou eu? Sou uma dessas comunistas que
tanto o senhor abomina? Não dizem que comunista adora
comer criancinha? O senhor não é nenhuma criancinha mas
que tem uma bunda gostosa tem. O grupo aproveitou que o
homem estava retido por uns três ou quatro grevistas e todos
passaram a mão em sua bunda.
Se vocês são homens mesmo, por que não me
enfrentam um por um? Por acaso o sargento quando está
na segurança da Folks e pega um peão, você bate nele de
homem pra homem, ou chama seus capangas? Sua puta,
comunista. Vai cuidar de sua vida. No mínimo você dorme
com todos esses aí. Olha aqui, seu filho-da-puta, cala essa
boca imediatamente, que você não está na Folks não,
responde Luzia, e dá uma ordem para o pessoal. Tirem toda
roupa dele, deixem só de cuecas, pichem ele com spray
vermelho e vamos deixá-lo no Largo de Vila Prudente. Não
façam isso comigo. Sou pai de família, fala meio chorando o
sargento. Não se preocupe não, ninguém vai te bater, ou
comer-lhe o rabo, para lhe quebrar o topete, como vocês da
ditadura fizeram com os trabalhadores. Mas, de cuecas vai
ficar sim, diz Luzia.
Chegando no Largo de Vila Prudente, bem em frente
ao Cine Amazonas, fizeram o sargento descer de cuecas e
tocaram o "bonde" para frente. desceram na Ford do Ipiranga.
Antes, porém, recomendaram ao motorista que ele não tinha
visto absolutamente nada e que tirasse licença-saúde.
Desceram do ônibus, foram para a estação, tomaram um trem
direto para a Lapa.
Homero indagou de Luzia por que estavam indo em direção
oposta a São Bernardo. Luzia respondeu que em pouco tempo
a polícia estaria ali atrás deles, e com certeza estaria também
em Santo André e São Bernardo atrás do grupo. Por isso era
mais seguro despistar e aproveitar para conhecer a Lapa.
Daquele dia em diante, Luzia não retornou para a sua casa,
enquanto durou a greve.
No largo de Vila Alpina, outro ônibus foi parado pelos
grevistas. Dentro não tinha ninguém, porém alguém resolveu
abrir o porta-malas e encontraram seis fura-greves. Foi uma
gozação geral. Tiraram a roupa de todos, deixando-os só de
cuecas. Alguns resmungaram, levaram uns sopapos e foram
aconselhados a não mais fazerem isso. Era muito feio.
A situação ia se complicando para os operários. Era
pressão de todos os lados: patrão, governo, parte da
sociedade, imprensa, família... As greves iniciadas em maio
em São Bernardo do Campo, entraram pelos meses de junho
e julho e se espalharam rapidamente por toda a região do
ABC, Mauá, Ribeirão Pires, Osasco, Jandira, Cotia, Taboão
da Serra, São Paulo, Guarulhos, Campinas, Piracicaba,
Sorocaba, Jundiaí e Itu. A greve reacendia uma velha prática
entre a classe trabalhadora: a troca, a solidariedade.
Uma assembléia foi organizada com o intuito de que
dela participassem as esposas e familiares dos trabalhadores,
visando dois objetivos: o de mostrar à família a verdadeira
força do movimento, e por outro lado mostrar aos
trabalhadores o valor da união e da força. As esposas
precisavam sentir que o movimento era grande e forte, pois
enquanto elas estavam em casa recebendo desinformações do
Jornal Imperial, via canal 5, não conseguiam sentir a
organização e a força dos grevistas.
Como antes ninguém tinha organizado uma assembléia para
os familiares, a própria diretoria do Sindicato não sabia como
conduzir uma com essa particularidade.
O Paço Municipal de São Bernardo do Campo estava
tomado de trabalhadores. O início previsto estava atrasado.
Acertavam nos bastidores a ordem dos oradores, mas
ninguém chegava a um acordo sobre quem falaria primeiro.
Sabiam da importância de que quem abrisse a assembléia
daria o tom para todos os discursos seguintes e também a
direção dos trabalhos.
Como estava difícil o acordo, Luzia interveio nas
negociações e disse: Eu tenho uma pessoa que poderá falar
primeiro, tenho certeza de que o que ela vai falar só dará
ânimo para o pessoal. Vocês não a conhecem, mas confiem
em mim. Um diretor do Sindicato abriu a assembléia com os
dizeres de praxe, e confiando em Luzia, disse: Companheiros,
vai falar agora uma dona de casa. Ela e a mãe de criação de
uma grande companheira nossa. Chamamos aqui ao
microfone a companheira Eva!
Eva, que estava logo abaixo no palanque, tomou um
susto e não acreditava que pudesse ser ela. Falar para uma
multidão daquelas, talvez mais de cem mil pessoas. Esperou
que repetissem. Chamamos ao palco a companheira Eva, mãe
de Luzia.
Aí não tinha mais jeito. Era ela mesmo. Meu Deus do
céu, o que eu vou falar para essa multidão? A Luzia me
apronta cada uma. Subiu no palanque. Luzia disse em seus
ouvidos para que falasse o que mandasse o coração, que não
tivesse medo, e que dela dependeria o prosseguimento do
movimento até a vitória final.
Meus amigos, meus companheiros. Olha que vista
bonita a gente tem daqui de cima, essa gente tudinha aqui na
praça para ouvir as pessoas de bem, de entendimento. Eu
mesma vim aqui para isso, mas quá. Chamaram eu pra falar.
Oi, gente, eu tenho acompanhado o movimento de vocês
desde o começo, é pela televisão, pelo rádio, e pela boca de
Luzia que quando pode aparecer em casa me conta tudo. É
uma maravilha ver a força do trabalhador. Olha quanta gente
eu tô vendo daqui de cima, e os que não estão aqui, e os de
outras cidades e desse Brasil afora. Mas quá, sempre viveram
como carneiros, sempre foram a maioria. Me lembra a época
da escravatura, que meus avós me contava. Eram dez, quinze
negros e um só feitor a chicoteá eles. Que vergonha.
Negrada! Avança nesse feitor e lhe tomem o chicote, amarra
o bicho no tronco e lhe dêem dez chibatadas. Mas não é só
ele não. Vão atrás do senhor da fazenda, pega esse danado,
tira a roupa dele, batam nele com o chicote e botem
salmoura. Mas não é só ele não. Peguem o governo, a esse
sim, só sabe governar para os ricos. Peguem o governo, tirem
a roupa dele, batam nele com o chicote, bota salmoura e
desonrem sua filha na frente dele.
Eva passa a mão pela testa para limpar o suor, a
multidão calada quer ouvi-la. Imaginem que dez negros não
podiam com um feitor? Que cem negros da fazenda não
podiam com o senhor, que milhões de negros e mais os
brancos pobres não podem com o governo? Sozinho
ninguém faz nada, mas juntos somos fortes. Tem muita
mulher por aí pressionando seus maridos para voltar ao
trabalho. Ora, parem com isso suas Marias Mijonas. Vocês
preferem que os maridos morram aos poucos numa
estamparia, que perca sua mão porque se distraiu em seus
pensamentos de ódio por estar ganhando uma miséria e que
não poderá levar para casa a compra que você quer, o
brinquedo que o filho sonha, o material da escola que a
mocinha precisa!?
A multidão ouvia de ouvidos abertos.. E depois? Aleijado,
vai receber as esmolas da Previdência. Dona de casa seja
forte, nesse mundão ninguém passa fome não. Se ele for
demitido, tem muita coisa para se fazer, inclusive arrumar
outro emprego, pois não há patrão sem empregado. Pra
ganhar a miséria que ele ganha, qualquer coisa que for fazer
na vida vai ganhar até mais um bocadinho. E depois como é
que o patrão vai demitir a todos? Ele não vai parar a sua
produção. Eu... na minha casa, só tenho a minha Luzia, venha
cá, minha filha, e deixa eu te dar um abraço. Ela trabalha aqui
com vocês. No fim do mês leva seu dinherinho pra casa,
compra os remédios pra mim, graças a Deus nós não
pagamos aluguel, moramos num barraco na favela. Vida mais
desgraçada que a nossa não pode ter. No entanto, em
momento algum pedi a Luzia que furasse a greve, que fosse
trabalhar. Se ela perder o emprego nós não temos dinheiro
para o dia seguinte, mas teremos força nem que seja pra
marretar na feira. Luzia, seja forte, seja honesta, mas não
seja escrava, já chega sua avó. Hoje você tem que trabalhar e
ganhar o que merece. Chega de engordar o patrão. A Wolks
comprou uma fazenda na Amazônia, e os seus funcionários o
que é que ganham com isso? Só ganham filhos, a família
cresce. Os cômodos vão ficando apertados, as bocas querem
comida, os pensamentos, educação. A barriga ronca, o ódio
suicida, as mãos roubam e só eles enriquecem.
Mais uma pausa. Eva continua a falar passivamente e sempre
a contemplar aquela multidão. Para que isso, minha gente?
Vamos trabalhar de cabeça erguida, receber um salário certo.
Nós fazemos a riqueza deles. Pensem: e se todos os
trabalhadores do mundo cruzassem os braços!!!? Vocês
acham que o patrãozinho vai sentar na máquina e trabalhar?
O filho do patrão vai acordar às quatro da madrugada e só
dormir às nove da noite? Não. Vocês sabem que não. Eu já
estou me alongando muito. Vou terminar com o exemplo da
viúva pobre. Aquela que nada tinha, mas que a sua única
moeda ela deu de esmola para aquele coxo. Quantos de nós
hoje estamos sendo essa viúva pobre? Respondam.
A praça ficou muda. Mais de cem mil pessoas, e não
se ouvia um só respiro, até que após alguns minutos o
diretor do Sindicato pegou o microfone e disse: Vamos
colocar em votação a continuidade da greve. Todos
levantaram as mãos.
* * *

A Rádio Sistemal
Bom dia! Mas bom dia mesmo. Sob o patrocínio de
Estomazil, Menstruazil e Amélia, Senhor X lhes diz: Bom
dia! Agora mais um programa Só o Seu Crime Não
Compensa. Aqui a dona de casa vai ser melhor informada
sobre os acontecimentos do dia. Dia esse muito agitado,
muita baderna acontecendo, vagabundos, comunistas, todos
querendo iludir o pobre do trabalhador. Dona de casa, você
que fica ouvindo o choro do filho com fome, então mande
seu marido trabalhar, o salário pode ser pouco mas dá pra ir
levando a vida. A situação. O está ruim para todos. É a crise.
Aperte o cinto. Deixe de comprar algumas besteiras. Compre
só o que você precisa, aí você vai ver como o dinheiro dá.
Veja que os diretores do Sindicato fazem greve e vão pescar.
Uma cambada de vagabundos... nestes dias você fica ansiosa.
Tá vendo a vagabundice de seu marido, ele te deixa neste
estado. Fale para ele que se não trabalhar, não come. Mas, se
você está com cólicas, aquela dorzinha incomoda, você já
sabe. Menstruazil. E ponto final.
O radialista naquela manha estava com a voz meio
rançosa. É com esse tom que ele narra os episódios de seu
programa, e assim ele começa a sua história: Como fazia há
dez anos, o Sargento Neto, da gloriosa Polícia Militar de São
Paulo, saía de sua casa com o seu fusquinha e ia para o
batalhão, onde se apresentava ao tenente e saía para fazer
rondas. Averiguação de assalto, socorro a parturientes, tirar
bêbado do meio da rua, apartar briga de vizinhos... Mas
naquela manha e durante o dia inteiro a ronda seria diferente.
Desde quando ele entrara para a Polícia Militar, nunca tinha
ido policiar uma greve, nunca fora convocado para um
movimento paredista. Sargento Neto saiu na ronda com mais
três PMs, um cabo e dois soldados. Foram direto para a
avenida das Nações, em Santo Amaro, onde a maioria das
fábricas estava parada e em suas portas estavam os
piqueteiros. Piqueteiros nada, ouvintes, baderneiros, bando de
comunistas.
Não esqueça. Na primeira dor de coração. Coração.
Mas se você for comunista não tem perdão, é paredão.
Sargento Neto começou sua patrulha. Ao passar pelos
piqueteiros, tomava uma vaia, mas ele não se importava,
seguia em frente, até que chegou na porta da Sylvania e, ali,
um grupo de vagabundos impedia a entrada dos
trabalhadores. Vejam bem, minhas ouvintes, como foi a
coisa. Como a gente acorda e não sabe se vai dormir.
Naquele momento, na favela do Brasil, como em toda
a São Paulo, a maioria dos rádios estavam sintonizados no
policial repórter patronal. E por falar em dormir, dizia o
radialista, se o seu filho, à noite, começa com aquela
gemeção, não deixando ninguém dormir, e ele se contorcendo
de dores, você já deu um chazinho e não adiantou nada, você
fez massagem e nada. Acabe com isso de uma vez por todas!
Estomazil. Naquela terça-feira de manha, um grupo, que se
diz de trabalhadores, foi até a sede do Sindicato pedir reforço
para irem parar a fábrica Sylvania. E do Sindicato saíram uns
vinte grevistas e foram para a avenida das Nações, na
Sylvania, e no meio deles um tal de Santo Dias da Silva, um
dos cabeças da greve. Esse aí só queria era ganhar bem...
trabalhar que é bom, nada.
Eva em sua casa era das poucas, que apesar do rádio
ligado no programa Só o Seu Crime Não Compensa, não
prestava atenção. Mas ao ouvir a palavra greve foi em direção
ao Motorádio e aumentou o volume. A voz fluía por toda a
favela: Chegaram na porta da fábrica e foram querendo parar
os companheiros à base de porrada. Nesse momento, passava
pelo local a viatura comandada pelo Sargento Neto. Os
vagabundos começaram a vaiar e a provocar os policiais.
Estavam cheios de ódio, eram violentos. Uma das
testemunhas, um próprio trabalhador, disse que os policiais
não usavam nem cassetetes. Com espírito de paz, Sargento
Neto desceu e foi conversar com os piqueteiros. O policial foi
barrado, ele recuou, foi um outro soldado em seu socorro e os
grevistas agarraram os dois, enquanto se aproximavam mais
baderneiros. Vieram os outros policiais e também foram
agarrados, o sargento pedia calma e que eles os largassem e
fossem embora, pois todos ali tinham famílias.
O locutor faz uma pausa, toma um gole de água, e
retoma a sua estória: Um dos trabalhadores, o que mais fazia
ameaças, o tal de Santo Dias, deu uma rasteira no policial.
Nesse momento chegavam mais piqueteiros, e eles ficavam
mais violentos e começaram a agredir os policiais. Foi uma
confusão, uma pancadaria geral. Os PMs ficaram acuados e o
sargento não teve outra alternativa, sacou o revólver e atirou
em legítima defesa. Santo caiu, se arrastou um pouco, o tiro
pegou por baixo da costela, assim meio de lado. Ele gritou,
caminhou alguns metros, com a mão no ferimento, correndo
muito sangue. Aí caiu de braços abertos. Os policiais
pegaram ele. Vejam, ouvintes, depois de tudo isso, os
policiais ainda tentaram socorrê-lo. Colocaram com todo
cuidado dentro do camburão e saíram em disparada na
direção de um hospital. Mas não deu tempo. Santo morreu.
Senhor X faz nova pausa, como que com pesares, e
retoma: Vejam bem ouvintes! Aí fizeram toda uma onda para
cima da polícia. Aliás esses comunistas são especialistas
nisso. Levaram o corpo para a catedral da Sé. Onde se viu
isso! Corpo comunista sendo velado na igreja!!! Ah! Mas,
não podia ser outro a rezar a missa senão o Dom Paulo
Evaristo Arns. Se revezam na missa numerosos padres e
bispos dessas comunidades de base, falavam eles de umas
tais injustiças sociais e da luta do tal de Santo.
O discurso de Senhor X traz uma ponta de ironia. Da
catedral da Sé saiu um cortejo com pouco mais de 500
pessoas. à saída do corpo, foi cantada a Internacional
Socialista, sabe o que é isso, ouvintes? É o hino dos
comunistas, e cantado dentro da igreja, foram ditas ainda
palavras de desordem como "Abaixo a ditadura",
demonstrando todo ódio que esses grevistas têm. O corpo
seguiu para o cemitério de Campo Grande, no bairro onde ele
morava. Lá outras poucas pessoas esperavam e, insufladas
por comunistas, diziam que o sangue de Santo seria vingado.
É, ouvintes, e o pobre do Sargento que tantas vidas defendeu,
que muitas vezes expôs sua vida em defesa da nossa!! O
sargento, pobre indefeso, defendeu a sua vida e a de seus
comandados,e vai agora responder processo militar. Mau dia!
Mas, Mau dia mesmo!
* * *

A Rádio Popular
Na favela do Brasil, Zequinha novamente arma o seu
alto-falante, agora outro, claro, pois aquele fora arrebentado
pela polícia. Os moradores ao vê-lo colocando o aparelho em
cima do telhado começaram a se aglomerar. Luzia, de volta à
favela e com a participação de mais alguns diretores do
Sindicato pegam o microfone e começam a contar a história
de Santo, o operário assassinado, a cena do crime: "Os
metalúrgicos de São Paulo estavam na campanha salarial,
exigindo um aumento de salário para diminuir um pouco a
situação de dificuldades. Usavam da única arma que a classe
trabalhadora dispõe: a greve.
Luzia, ao contrário de Senhor X, estava nervosa ao
narrar os episódios que acometeram o operário Santo Dias da
Silva. Santo, diz ela, era um entre as centenas de líderes que
participavam da greve. Por pouco não estava entre os 113 que
foram presos na sub- sede do Sindicato em Santo Amaro, na
noite do último domingo. Na terça-feira, um grupo de
trabalhadores da Sylvania chegou na reunião do comando da
greve na Zona Sul, pedindo ajuda para poderem paralisar a
sua fábrica, e para lá se dirigiram uns 20 trabalhadores, Santo
era um deles.
A frente da venda de Zequinha estava lotada de
gente, querendo saber detalhes do assassinato. Quando
estavam na porta da fábrica, distribuindo folhetos e
chamando a turma para a greve, vieram os policiais, fazendo
provocação e tentando prender os piqueteiros. Eram violentos
e não usavam cassetetes. Desde o início do movimento que a
polícia só agia armada de revólveres, sempre ameaçando.
Eva e mais Maria da Graça chegavam agora para
perto do balcão e ouviam a Luzia ao microfone. O polícia
agarrava um e a turma ia libertá-lo. Era fácil perceber que a
polícia esperava reforço e estava fazendo hora até que
chegassem outras viaturas. Era fácil perceber a tática usada
pelo sargento a quem os soldados chamavam de Neto. Como
os grevistas conseguiram parar a Sylvania, um companheiro
pediu para que todos fossem embora, esse companheiro era
Santo Dias da Silva. Então, um policial, que era o mais
fazedor de ameaças, deu uma rasteira no companheiro que
tinha pedido para que os outros fossem embora. Nessa hora
chegava o reforço. A polícia ficou mais violenta. a rasteira
dada pelo polícia causou reação dos paredistas e começou a
confusão, foi uma pancadaria. A polícia começou a atirar
para cima. O sargento abaixou a arma apontou para Santo.
Atirou. O tiro pegou meio de lado, por baixo da costela,
saindo pelo outro lado. Ele ainda gritou e caminhou alguns
metros, com a mão em cima do ferimento, correndo muito
sangue. Aí, caiu de braços abertos. Os policiais pegaram-no,
jogaram dentro do camburão e saíram em disparada. A
polícia ainda prendeu três operários, acusando-os depois
como autores do crime. Rodaram um tempo com o corpo de
Santo dentro do camburão e tentaram esconder o operário
assassinado, mas os companheiros do líder se movimentaram
de imediato , pediram ajuda de advogados, deputados
comprometidos com as lutas populares e a Igreja. Então
encontraram o pronto-socorro onde Santo estava, já morto.
Descobriram toda a trama da polícia para esconder o crime
praticado pelo Sargento Neto.
Um dos diretores do Sindicato pede o microfone a
Luzia, e continua a história: No dia seguinte, no seu enterro,
as fábricas da zona sul começaram a ser fechadas, por menos
de cem companheiros. A polícia estava começando a aparecer
de novo, com suas ameaças e violências. Mas, ao grito de
"companheiro Santo, você está presente" os operários
enfrentavam a ameaça e iam trazendo mais trabalhadores. A
passeata ia crescendo, as fábricas iam fechando e os operários
indo para a rua e engrossando a passeata, mais de dez mil
pessoas gritavam "Companheiro Santo, você está presente".
Outro diretor do Sindicato, também presente na Rádio
Popular dos Moradores da Favela Brasil pediu o microfone.
Gostaria também de dizer algumas coisas. Eu acho que esta
foi a melhor homenagem dos metalúrgicos ao seu líder: o
protesto bem alto e forte, a multidão na rua, as lágrimas do
povo trabalhador e o silêncio das máquinas. E para finalizar,
algumas palavras do Santo, em uma das nossas assembléias:
"Nós ainda estamos fracos em relação às forças do patrão e
do Governo. Mas já estamos muito mais fortes do que há
tempos atrás. Essa greve vai ser difícil, mas deve acontecer.
Tem condições. E acontece que cada luta, cada ação da classe
operária ajuda a favorecer a consciência de nós,
trabalhadores. Vamos encontrar mais gentes, vamos crescer.
Devagar, mas firme. Acho que ninguém mais segura o
crescimento da consciência e da luta dos trabalhadores".
A preparação, a ocupação e a morte
10 horas da noite. O barraco de Eva recebia pessoas,
todos falavam baixo, com medo de que pudessem ser ouvidos
e delatados. Sabiam que o plano poderia vazar. Luzia se
aproximou de Eva e apresentou dois homens: esses aqui são
as pessoas de quem lhe falei, Misael e Elgito. Eles fazem
parte do movimento dos trabalhadores e, há dois meses,
invadiram uma área de terra na Zona Sul e tiveram sucesso.
Estão lá até hoje e o governo está atendendo as suas
reivindicações.
Eva os cumprimentou com força, apertando suas
mãos, e disse que a palavra era deles. Boa noite,
companheiros, disse Misael. É como Luzia disse, nós
invadimos uma área na Capela do Socorro, pertencente ao
INAMPS. O Estado colocou a polícia em cima, nós fizemos
corpo duro. Eles não queriam negociar. Mas nós não saímos e
agora já chamaram a gente pra negociar. As terras estão lá e
são improdutivas, e nós trabalhadores, sem um lugar para
morar, assim como vocês na favela.
O importante é estar organizado, disse Elgito.
Escolher uma área que não seja de particular, e ali podemos
construir nossas casinhas, afinal nós também pagamos
impostos nos produtos que consumimos e esse dinheiro vai
para o Estado, então porque não podemos ter a nossa casa e
trabalharmos sossegado? Agora, só vamos conseguir a vitória
organizados e unidos, assim em caso de força policial
podemos resistir. Organizados, os lotes podem ser
distribuídos sem que briguemos entre nós mesmos. Essa é a
pior fase. Se um consegue o lote e o outro não, pronto, é
briga na certa e já vão logo falando para os repórteres que
estiverem presentes e tudo isso leva à desunião.
Messias pede a palavra. Isso é muito importante, organização.
Tudo tem de ser feito democraticamente. Chamem a todos e
dêem a eles a oportunidade de escolher como vão dividir os
lotes. Isto é, vamos todos juntos invadir e aí cada um vai
demarcando o que é seu, ou, invadimos a área toda e depois
sorteamos os lotes. Essa é uma das decisões mais
importantes. Outra coisa, o advogado tem que estar junto,
porque a polícia vai aparecer logo de manha. Temos de
chamar a atenção da opinião pública. Portanto, só deve dar
entrevista para a imprensa uma comissão autorizada pelo
movimento. Esse pessoal vai ser chamado de Comissão de
Imprensa. Ela tem de falar a mesma língua, isto é, explicar a
condição de vida do trabalhador que com um salário mínimo
não tem como morar, o dinheiro não dá nem pra compra do
mês, quanto mais pagar um aluguel, e por isso somos
forçados a morar em favela, em condições precárias de vida.
Isso tem de ser enfatizado.
Elgito pede a Misael que fale mais baixo um pouco, e dá
seqüência às explicações. Todos nós somos trabalhadores,
não queremos esmolas. Nos propomos a pagar os lotes, desde
que sejam prestações que possamos pagar, senão a situação
fica igual ao aluguel, e isso não queremos. Outra coisa, não
arrumar encrenca com os vizinhos da área invadida. Muito
pelo contrário, fazer boa amizade, pois são eles que vão nos
socorrer com água, comida, etc... Temos também que chamar
um vereador, um deputado, e se descobrirmos na regional da
prefeitura alguma assistente social que se identifique com
nossos problemas, melhor ainda, temos de convidá ela pra
ajudar.
Luzia pede a palavra. Bom, nós já conseguimos
contato com o vereador Walter Feldman, e com a assistente
social da prefeitura, a Luíza Erundina, e mais o doutor
Miguel.
Tá bom, são pessoas competentes e de confiança,
falou Misael. Agora de quem é a área? E da Santa Casa, diz
Eva. É, mas tem gente falando que não é não, disse um dos
presentes. Mas, é sim , disse Luzia. Tem 50 mil metros e está
abandonada. Melhor, diz Elgito. A camionete está carregada
com as madeiras? Sim, diz Zequinha. Acabamos de carregar.
Outra coisa, diz Misael, só vai gente que não vai atrapalhar,
isto é, crianças com menos de dez anos fica.Os mais velhos
sim , eles têm de aprender a luta desde cedo. Mulheres
grávidas, doentes e muito idosos ficam, vão depois de
invadido e levam toda molecada. Assim fica mais
difícil a polícia bater. Vamos sair em grupos para não chamar
a atenção Levem pás, enxadão, foice, enxada, martelos,
pregos, madeira, tijolos, sobras de telhas, picaretas, enfim
tudo que possa ajudar. Isso tá tudo prontinho, fala Mário.
Muita coisa eu, o Bola Sete e mais o Febem já arrumamos.
Todos ficam em silêncio escutando se vem alguém.
Elgito diz: vamos começar a construir assim que chegarmos
lá. Com as casas já meio levantadas, a situação nos favorece.
Não provoquem a polícia, mas também não afinem. Não
levem armas de fogo, de jeito nenhum. Aquele que aparecer
lá armado está expulso do movimento.
A área escolhida ficava a uns três quilômetros da favela. Era
uma boa caminhada. A frente, foi a camionete de seu
Zequinha, com Eva e dois homens. Um deles era Elgito.
Atrás iam em grupos as pessoas com sacolas, ferramentas e
esperança.
Muitos moravam na favela do Brasil há muitos anos. Era
duro deixar aquilo para trás, mas não tinham a posse, ainda
mais agora que aparecera esse tal de Daniel Amaral.
Munidos de muita esperança, procuravam uma vida mais
digna para seus filhos.
Num dos grupos ia Luzia junto com Mário e toda a papelada:
cadastro das famílias, situação econômica, educacional, e
números de telefones de pessoas que pudessem ajudar.
Cachorros latiam à passagem da caravana. A camionete ia,
esvaziava e voltava buscar mais material e gente. Uma
garrafa de café ia junto, a de Amélia também, que era para
esquentar a madrugada. Felizes, caminhavam na busca da
terra prometida, que sempre esteve ali, ao lado deles. Ela,
desde o começo do mundo. Eles, desde a sua mudança para a
favela. Ela, desabitada. Eles, com sede de habitação. Ela,
virgem. Eles , desonrados. Ela, tenra e verde. Eles, esquálidos
e amarelos. Porém, a redenção parece que chegara. Era um
sentimento diferente que sentiam durante aquela marcha. Não
parecia possível que após tanto tempo ali, nunca tivessem
pensado nisso: a possibilidade concreta de se ter uma casa,
como qualquer pessoa, e com isso passariam a condição de
cidadão, não sendo úteis só na hora do voto.
Quando o grupo de Luzia chegou, muitos já estavam cavando
buracos, fincando varas e demarcando aquilo que seria uma
futura vila operária. Cachorros da vizinhança latiam. Logo
alguém saiu para ver o que era e, diante daquele monte de
gente chegando, saiu e foi conversar. Ao tomar conhecimento
da situação, pedia para que o cadastrassem também, não
agüentava mais pagar aluguel. Assim crescia a lista de Luzia.
Logo pelo manha chegou o vereador Walter Feldman.
Deu uma palavra com o grupo e se colocou à disposição
deles. O advogado já estava presente e mais tarde chegou a
assistente social Luíza Erundina. Ficaram todos por ali,
ajudando numa coisa e noutra.
Muitos faziam os alicerces de suas casas. Outros,
em comissão, saíam pelas casas e depósitos de materiais para
construção, explicando a situação e pedindo ajuda. Não
demoravam em encher a camionete. Alguém sempre tinha
um resto de tijolos que sobrou de sua construção.Telhas,
areia, ferro, pedras. Na área invadida aqui e acolá, fogos
eram acesos e muitos começavam a fazer alguma coisa para
comer. Haviam trabalhado a noite inteira. Chegavam algumas
doações para o almoço, também remédios, roupas e até
brinquedos e broncas, muitas broncas.
Vão fazer uma favela aqui. Deus me livre! Agora
nossa casa perderá valor. Bando de maloqueiros. Essa noite já
sumiu uma bicicleta do meu quintal, diziam vários vizinhos
da área invadida.
Era preciso muita conversa. Um carro da polícia
começa a rondar o local, depois outro e mais outro e pararam
a distância. Desceram e vieram a pé. Um tenente se
aproximou e procurou alguém para conversar, foi recebido
pela comissão, pelo vereador, advogado e assistente social.
Conversaram um tempo, foi convidado a almoçar.
Apareceram outros advogados, de pretensos donos da
terra.Do Daniel Amaral, da Nesplé, da Folks, da Santa Casa e
a situação foi ficando difícil. Todos diziam ser donos das
terras, inclusive os invasores. A comissão não sabia como
negociar. Parece que a invasora não era só eles.
A questão foi para a Justiça. Os invasores, estou
falando dos favelados, foram terminando suas casas, tudo
aparentava tranqüilidade. Já tinham uma Associação dos
Moradores. Seu Zequinha estava com seu armazém. A Igreja
já tinha um salão, onde também era escola, a mesma que
funcionava na favela. Na favela só ficaram umas poucas
famílias, dentre elas a de Messias. Paulo Santana por sua vez,
tinha se mudado de mala e cuia para a Vila Operária. Mas,
por enquanto estava quieto.
Numa bela tarde, de sol inclusive, veio um oficial de Justiça,
acompanhado da polícia. Em suas mãos uma ação de
"reintegração de posse". A Justiça havia decidido que as
terras pertenciam mesmo à Santa Casa.
Foi convocada imediatamente uma reunião para
discutirem a situação. Enquanto discutiam, o tempo passava e
a noite ia chegando. Dessa forma a reunião foi transformada
em assembléia, muitos moradores já haviam chegado do
serviço. Na assembléia decidiram ficar. Propuseram que
chamassem os advogados da Santa Casa para discutirem uma
mensalidade dos lotes. No outro dia, em comissão, iriam
conversar com a direção da Santa Casa e propor o negócio.
O oficial de Justiça retornou com essa proposta,
inclusive ninguém em especifico estava sendo notificado e
ninguém quis assinar o mandado de reintegração de posse.
A polícia chegou cedo. E foi concedido mais um
tempo para que pudesse haver a negociação. A comissão
voltara no início da tarde e encontrara um clima tenso entre
os invasores e a polícia. Um jovem capitão, sem experiência
alguma, comandava a operação.
De repente, sem motivo aparente, lá na frente começou uma
discussão entre um invasor e um policial. A discussão tornouse
briga, a comissão correu para apartar e, no empurraempurra,
o policial sacou o revólver e deu dois tiros. Um tiro
pegou no invasor e outro em Luzia.
O capitão quase conseguiu transformar tudo numa
guerra generalizada, não fosse pela ação de Walter Feldman,
ordenando ao capitão que se contivesse e colocasse a cabeça
no lugar. Os feridos foram imediatamente socorridos no carro
do vereador e da assistente social, mas já chegaram sem vida
ao pronto socorro.
Luzia morreu com um tiro nas costas que perfurou o
pulmão. Leôncio, o outro invasor que também era soldado da
PM, morreu com um tiro certeiro no coração.
O velório foi na Vila Operária. Eva sempre quieta,
triste, perdera ali sua filha. Mais um líder da classe
trabalhadora que ia embora. Imediatamente a Santa Casa quis
pagar todas as despesas do féretro. Foi recusado.
Se a Santa Casa quiser fazer alguma coisa, ela que
aceite nossa proposta, falou Maria da Graça. Luzia ficaria
muito contente sabendo que não morreu em vão. Ficará feliz
por nos ver morando em nossas casinhas de tijolos, em
termos "nossas propriedades", título,besta de uma sociedade
besta, como é a capitalista. Preço muito alto para se viver.
Alguém sugeriu que o nome do bairro fosse Vila Santa Luzia.
Eva recusou. Luzia não iria gostar disso. Se tiver que ter o
nome dela, que seja Jardim Brasil Operário. Gente, é muito
duro. Quase que não tenho mais forças. Acabaram-se os meus
braços, a minha alegria. E agora? Quem vai brigar por nós?
Adeus, Luzia.
O caixão foi fechado, coberto com uma bandeira do
Sindicato e uma do Brasil. O cortejo seguiu rumo Vila
Formosa, passava por entre casas e vilas onde Luzia
costumava participar das lutas dos moradores. Passou em
frente à ex-favela do Brasil. Luzia vivera toda sua vida ali e
na primeira vez que saíra era para nunca mais voltar.
Luzia não gostava de favores, por isso estava
resmungando dentro do caixão, por estarem carregando-a.
Com certeza, gostaria de ir sozinha.
Seu Caetano, seu Zequinha, Feldman, Erundina, Mário e
Lílian agora carregavam o caixão. Logo atrás vinha o corpo
do soldado Leôncio, que se cadastrara com Luzia e
conseguira um lote para morar. Já tinha construído uma casa
de dois cômodos. Com ele vinha um cortejo de policiais.
Agora, todos misturados, invasores, polícia, todos chorando
seus mortos.
Ali, naquela mistura, ninguém nutria ódio pelo outro.
Eva sabia que a culpa não era do soldado que atirou, embora
devesse ser punido, mas sim do sistema. Eva pedia calma
para todos e que todos se despedissem de Luzia e Leôncio,
sem mágoas. Porém, a luta continuaria, agora é que eles não
sairiam e que a polícia não aparecesse por lá, dizia Eva.
O caixão foi baixado à sepultura. Uns jogavam flores.
Outros, três punhados de terra. A mulher de Leôncio passava
mal, estava grávida de oito meses. Eva a chamou para ir
morar junto, ela prontamente aceitou. Uma consolaria a outra.
Ela foi levada direto para o hospital, lá teve uma menina a
quem foi dado o nome de Luzia.
Junto com a terra, que ia cobrindo o caixão de Luzia,
iam muitos bilhetes. Vários caíram fora da sepultura: "Sua
morte é a semente que vai brotar em muitos lutadores no
meio do povo. Sua morte nunca mais será esquecida e ela
ajudará chegar até a vitória".
Outro bilhete: "A classe operária não desonrará sua
morte e contará com sua luta. Luzia, amiga de confiança,
você nunca descuidou da luta pela Justiça. Por isso foi
assassinada. Mas nós estamos aqui". Mais um bilhete: "A
ditadura assassina teu corpo, mas tuas idéias jamais matará".
Um outro bilhete, levado pelo vento e foi parar
embaixo de uma árvore: "Me lembro de você na cozinha,
onde chamava para te ajudar. Falava que homem também tem
que lavar louça, que companheiro também, é para essas
coisas. Aí, me dava vontade de falar, mas não conseguia,
tinha medo de sua reação. Luzia, me lembro de você, na porta
do barraco, chamando os moradores para a luta contra a
carestia. Me lembro de você no Sindicato, falando nas
assembléias. Ficava com um tesão terrível querendo te
abraçar, mas tinha medo. Me lembro de você na escola,
discutindo tudo com todos. Comigo principalmente. Adeus.
Você vai, eu fico. Alguém terá de ajudar dona Eva. Alguém
terá de assumir a luta. Amor de minha vida. Mário".
O vento levou mais um pouco o bilhete para frente e
ele foi se desmanchando sob a garoa fina que caía.
* * *

Eva, o Homem da favela
Para Eva não foi difícil se passar por homem.
Ela já estava acostumada a usar aquelas calças Jeans.
Enrolou seus cabelos encarapinhados, botou um chapéu, e lá
estava o "negrão". Ela puxava de uma perna, só andava com
o auxílio de um cajado. Isso ajudava mais a idéia de que
aquela pessoa não podia ser Eva.
O capitão deu algumas voltas e foi embora para a delegacia.
Procurara em vão.Seu delegado, lá não tem nenhuma
Eva.Portanto o oficial de Justiça não pôde entregar o
mandado. E Eva o tempo todo ao lado dele como um
negrão.

Eva e a Glória
Depois chegou a comissão, foi falar direto com Eva.
A Santa Casa aceitou a proposta. Não ficava bem,
politicamente, se fazer um despejo numa situação dessas. A
opinião pública se voltaria contra ela.
Eva sentou, respirou fundo. Uma lágrima rolou de
seus olhos.
Início





Biografia:
Nascido na Favela de São João Clímaco, SP, em 20/02/1955; Enoc Borges, como gosta de ser chamado, é o filho caçula de uma família de dez filhos. Foi a primeiro a formar-se numa faculdade, Cásper Líbero (jornalismo). Trabalhou em vários órgaos de imprensa da cidade de São Paulo, São Bento do Sapucaí, Campos do Jordão e Taubaté.
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Romance EVA Enoc Borges


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