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Embalada pela Memória
maria esther delgado leite

Hoje a Avenida Nossa Senhora de Fátima não me pareceu tão longa! É estranha essa sensação porque me joga na realidade desse lugar tão cheio de novos prédios, menos arborizado, tão distante dos meus anos de adolescência com tanta ebulição! Isso me faz lembrar de outra passagem muito semelhante, que também despertou em mim uma grande desilusão. Vou contar como foi.
        Era 1956 e, embalados pelos sonhos de minha tia Teté de sair do subúrbio, mudamos para Santa Teresa. O apartamento era de frente e no primeiro andar do subsolo de um imponente prédio da rua Almirante Alexandrino. Era grande, com duas salas que uma enorme cortina vermelha de veludo dividia, combinando com uma pesada mesa de jantar, rodeada de grandes cadeiras pretas com tachinhas douradas. Devia ter muitos quartos, pois moravam meus pais, meu irmão, tia Teté e meu tio, além de mim, claro!
     Teté era atriz e tinha muitos amigos que volta e meia enchiam a casa. Cercados de alegria, nós éramos estimulados a representar. Inventávamos estórias, usávamos trajes dos adultos e a apresentação começava com a abertura da cortina vermelha, perfeita para nosso teatro. Também sobrava espaço para enfileirar as cadeiras e brincar de bondinho, reproduzindo cenas do cotidiano daquele transporte tão curioso para nós. Ao titio cabia conduzir a dança de salão, um homem enorme descendente de alemãs, que ao som do Ray Coniff me girava com destreza, sem pisar em mim com seus pés gigantescos. Devo ter absorvido dele o prazer de dançar!    
     Mas, o mais fascinante aos meus olhos de menina por volta dos seus cinco anos era aquela imensa área externa por onde se chegava pela sala de jantar, ou por um portão que dava para a rua. Andar de bicicleta e de patins, brincar com meu irmão com aquele carrinho de sorvetes que ele empurrava cheio de orgulho, a boneca Meu Sonho e um monte de panelinhas nos mergulhavam numa gostosa e bem vivida infância, apesar do dinheiro contado.
     Tia Teté sempre trabalhou muito e comandava os gastos gerais da casa. Meu pai, seu irmão mais novo, não era muito ligado à economia doméstica. Titio contribuía e não apitava nessas questões. Minha mãe era a rainha do lar, só para mim, talvez, pois aceitava de bom grado todas as determinações.
     Fui crescendo nessa família sem confusões aparentes, largada naquela varanda que também me dava acesso à rua, quando do alto da escadinha eu ficava horas a olhar o bondinho de Santa Teresa, indo e vindo desengonçado por aqueles trilhos cheios de curvas a vencer. Era proibido viajar no estribo, mas o cobrador sempre estava ocupado com passageiros que subiam e desciam com o bonde em movimento, teimando em desafiar o perigo, o que me divertia demais.
     Estudei no Jardim de Infância Corrupio, pertinho lá de casa, na parada do bonde Vista Alegre. Ele ficava bem no alto e subir aquela rampa todos os dias era uma aventura para mim e uma tragédia para minha mãe. Lá também fiz o pré-primário, usando um uniforme com blusa de tecido branco, de abotoar, e saia de pregas de tecido quente, xadrez, que me deixava muito prosa. Fui transferida para a escola pública Machado de Assis, no Curvelo, talvez porque aumentaram as despesas com estudo para mim e meu irmão. O uniforme não era lá essas coisas, mas em compensação eu andava de bonde, vendo mais de perto as peripécias, até as dos meninos mais velhos do colégio!     
     Nessa época tia Teté já morava no prédio ao lado, uma das últimas construções do bairro da década de 50, muito diferente dos edifícios mais antigos porque não tinha andares no subsolo. Do ir sozinha à casa dela a uma autonomia cada vez maior, com meus amigos, fui explorando os atrativos do bairro. A começar pelo castelinho em frente a minha casa, nada menos do que o Castelo Valentim. Imaginávamos um lugar mal assombrado, pois tinha um corredor comprido e uma única luz muito escura na entrada, como se quem lá morasse desejasse afastar os curiosos. O pé direito alto e a umidade do local ajudavam na deliciosa fantasia de fantasmas presentes, dos quais corríamos assustados sempre que nossos gritos ecoavam a nos impressionar.
     Os casarões do bairro, alguns de famílias em decadência e abandonados eram o prato preferido de nossas aventuras. Chegamos a matar aulas para entrar e explorar um deles na rua do colégio. Também era um bairro escolhido por imigrantes, pois algumas vezes íamos conhecer a casa de colegas da escola cujos hábitos diferentes nos enchiam de curiosidade. Pela primeira vez tive contato com a cultura oriental, o que na época marcou profundamente meu olhar sobre os rituais do dia-a-dia de uma família de um país distante.   
     Saíamos pouco de Santa Teresa, mas duas vezes por semana ia de bonde com minha mãe para as aulas de balé. Primeiro no Edifício Marquês de Herval, conhecido prédio nas imediações da Avenida Rio Branco com Avenida Almirante Barroso, um dos mais altos na ocasião. Descíamos no Largo da Carioca e caminhávamos pelas ruas do centro com tranqüilidade. Minha professora era a Berta Rosanova, que viria a ser a primeira bailarina do Teatro Municipal, título que dava status aos seus alunos. Quando o dinheiro apertou de novo, passei a ter aulas no Clube Ginástico Português, na Avenida Graça Aranha. Bons tempos aqueles!
     Eu tinha 11 anos quando mudei para o Bairro de Fátima. Terminei o primário na Escola Guatemala, escola pública, modelo de uma nova forma de ensino. Passávamos o dia no colégio – pela manhã os estudos, à tarde voltávamos para o estudo dirigido: frequentar a biblioteca; conhecer a literatura brasileira; fazer teatro; aprender sobre operações matemáticas em práticas do cotidiano, como fazer compras utilizando a moeda corrente, reproduzindo situações da vida diária. À noitinha, rodávamos em torno da pracinha, meninas para um lado, meninos para o outro, sedutoramente trocando olhares e tecendo paixões avassaladoras. Nos finais de semana, sob a tutela de Nossa Senhora de Fátima, quase a pedir bênção diante de sua imagem, brincávamos de pêra, uva, ou maçã?, grande oportunidade de beijar furtivamente os parceiros escolhidos.
     Anos depois, invadida pela nostalgia própria dos adultos voltei ao meu prédio de Santa Teresa. Queria mostrar a minha filha como era grande aquela varanda em que passei alguns dos melhores anos. Fiquei tão decepcionada! pois não encontrei mais aquele amplo espaço que serviu de palco para tantas estripulias. Vivi durante algum tempo a amargura de ter crescido tanto a ponto de não caber mais com minha fantasia ali dentro.
     Hoje também experimentei com desencanto a mudança da Avenida Nossa Senhora de Fátima, que igualmente me pareceu opressiva e bem menor. A diferença é que choro não pelo o que perdi, mas pelo o que lembro do que vivi intensamente. Sou grata à memória que me embala!





Biografia:
Esther Delgado, Psicóloga, aposentada pelo Instituto de Psiquiatria/UFRJ, onde trabalhei no atendimento clínico em saúde mental de crianças, adolescentes e seus familiares. Prossigo na clínica, e também como supervisora do processo psicodiagnóstico, no âmbito privado. Escrevo sobre inquietações próprias do 'ser humano', que espero sejam compartilhadas.
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