TIBÉRIA
Texto: Flávio Alves
Cenário: Enfermaria de Hospital
Ela é cancerosa, tem as pernas amarradas por ataduras protegendo os ferimentos e um tumor no pescoço, anda com ajuda de muletas. Reza um Pai Nosso e uma Ave Maria em seguida, Simbolicamente ela nina e amamenta uma criança.
Agora que rezei pra pagar um pouco dos meus pecados, preciso botar minha menina pra dormir. Dorme, dorme, dorme minha menina. Psiu, silêncio! Ela ta cansada. Dorme meu amor, não vou te abandonar agora. Teu pai me deixou, mas não vou te deixar e ninguém te tirará de mim. Hoje te nino e canto tua canção. Minha dispnéia está pra vir, mas antes que me falte ar eu canto pro você dormir. Teu pai me deixou, estavas saltitante dentro de minhas entranhas, foi duro pra mim. Pedi esmolas pra te sustentar e lavando roupa, tirando o sujo dos que se julgam limpos, consegui te criar, te dei estudo, te dei amor, te dei carinho, e hoje, hoje Tibéria lavadeira de roupas dos coronéis de engenhos se encontra só. Oh! Senhor... Se me levastes contigo agora, como eu te agradeceria... (tosse) A dispnéia, a tosse. Quem já imaginou uma falta de ar diabólica? Os pulmões a querer pipocar? Os olhos a querer pular? A gangrena! Aos poucos comendo minhas pernas. Ai meu Deus! Leva-me daqui! As pessoas têm nojo de mim. Minha urina serve de alimento para insetos, minha urina é adocicada porque tenho diabetes. (tosse). Existe coisa pior? Esse tumor maldito que a toda hora me asfixia, esse câncer maligno! A culpa é tua, toda tua Maria Angélica! Eu estou morrendo, estou me consumindo, e você por capricho ainda tem a ousadia de chamar-me de hipocondríaca. Tudo isso por um, um, um desgraçado chamado Martinez. Mas a maior culpa é a tua Maria Angélica. Custava nada fazer-me uma visita a uma pobre mãe cancerosa que tanto te fez bem? Eu estava lembrando quando te acalentava te fazendo dormir, porque tu tinhas medo do bicho papão, Lembro também dos momentos que eu trocava tuas fraldas, te dava banho, mas sempre te tinha ao meu lado, te protegendo. Eu sei, posso imaginar a fedentina que toma meu corpo, mas não era preciso você tocar em mim. Usava uma máscara daquelas que se usam na exumação de cadáveres e pronto, ficava distante, conversava daí da porta mesmo, não era necessário chegar ao meu leito. Eu não iria te tocar e muito menos te abraçar. E agora é hora maldita de tomar o remédio. (As mãos tremem, ela se molha, revoltada grita se desequilibra e cai) Filha cruel! Cruel! Se eu me matar terás remorso, mas o que adiantaria? Ir pra o inferno? (Vai com dificuldade pra cama e em sua imaginação ver enfermeiros) Não malditos! Não assassinos! Assassinos! É isso mesmo, vocês escutaram? Me soltem, me soltem, deixe-me em paz. (Ela acha que tomou injeção, adormece, música. Uma luz por um biombo mostra uma cena ela grávida sendo espancada pelo marido. Ele tentando assassiná-la, ela acorda). Não! Não Gabriel, não! Por favor, não (percebe que foi um pesadelo, respiração arfante). Ele foi um monstro, desgraçou a minha vida, não respeitou nem a criança que estava em meu ventre. Se não fosse o amigo dele que chegou na hora, hoje eu estaria morta. Gabriel, Gabriel maldito! Eu nunca te fui infiel, sempre te respeitei. O fato é que o câncer já tomava o meu corpo, por isso eu era uma mulher frívola na cama, mas o condenado só pensava em traição e isso foi o fim, o fim de tudo. (alguém fala) O que é agora? Injeção novamente? Eu sei, eu sei que daqui a pouco tenho que tomar o remédio, vocês estão pensando que sou louca é? Não enxergo direito, mas louca eu não sou. (vai ao veneno) Ah! Ainda bem que encontrei. Ninguém quis trazer o veneno de matar moscas e baratas, mas aquela jovem piedosa que veio me visitar trouxe pra mim. O mau cheiro das minhas feridas só atrai insetos. O que é novamente? Visitas pra mim? Minha filha? (nervosa procura um espelho) Não, agora não, um momento. O que é que eu faço? Não quero que essa ingrata me veja assim, um momentinho. (se ajeita) Vou é fechar a porta bem fechada (volta) Pronto pode falar Maria Angélica. Deus te der vergonha nessa cara safada cachorra! Não, não vou abrir. Diga o que você quer e desapareça. (tosse). Ai, ai, ai, minha dispnéia (tosse) que não me ataque agora. Pare de bater Maria Angélica, não sou surda. O quê? Com o seu marido? Ele também está aí com você? Pois diga a ele que não devo nada a ele e nem a seu ninguém, ora essa! Era só o que faltava... Depois de cinco anos convivendo com esse maldito câncer, vocês agora me aparecem. Estão arrependidos é? Ingrata? Eu que sou ingrata? Ingratos são vocês que pra se livrarem de mim me colocaram num asilo e agora nesse hospital seboso. Não, não vou abrir, podem chamar os médicos, os enfermeiros, seu pai, sua mãe, quem vocês quiserem mas não vou abrir esta porta. Pode falar Maria Angélica. Flores? (sorriso de deboche). Flores pra mim? Oh! Que emocionante! Nunca em toda minha vida recebi flores. Obrigada minha querida, elas servirão para enfeitar-me, quando eu tiver no caixão. Não, até agora não precisei de você, e quando precisei fui jogada no lixo. E agora vocês vêem aqui dar uma de bonzinhos, ora! Vão se catar, podem ir, xô, xô, xô, chispem daqui. (música). Meus braços estão inchados. Soro, soro, soro, sempre soro. Não sei por que não aplicaram hoje. (vai andar e derruba o suporte do soro). E esses lençóis fedorentos. (vai até a porta) Agora já posso abrir. Cadê vocês enfermeiros do demo? Seus carniceiros! Há uma semana que não trocam esses lençóis nojentos. Vocês vão ver o que uma pobre velha é capaz de fazer. (deixa a cama toda desforrada. Sobe na cama e recita poemas, tosse).Ai, ai, ai, que essa tosse não me ataque. Pra bem longe de mim dispnéia maldita (música) Humano é o homem. Celestial é a mão que moldou o ser, pode ser até pecado, mas mesmo assim posso dizer, dizer sim, por que não? Pedi perdão? Ora! Por quê? Sou uma mulher merecedora, talvez o que fiz, não sei, como posso saber? Deus é justo e correto. Condenada já estou e sei que breve irei morrer. Morre matéria maldita! Desinfeta o espaço, deixa o ar purificado, afugenta também tua criação, todos os parasitas que se apoderam desta carne podre, quase em estado de decomposição. Ah! Quer a relação? Te dou sim, por que não? Tuberculose, gangrena, catarata, reumatismo, artrite, artrose, diabetes, (tosse). Ai, ai, ai, minha dispnéia, tudo, tudo causado por este infame câncer que me acompanha. Quem me dera meu Deus! Ter a sensibilidade de sentir novamente o vento tocar meu corpo como antigamente, erguer minha cabeça e respirar aquele ar noturno, vendo a lua e as estrelas cadentes. Tocar nas plantas e molhar minhas mãos com o orvalho da madrugada. Estar na praia e enxergar o ocaso, o crepúsculo vespertino se dissipando no horizonte. A natureza... Tudo tão bonito, tão belo! E eu? (grita pra alguém) Que é? Já vou (para platéia) São os enfermeiros a toda hora enchendo minha paciência por causa deste maldito remédio. (tosse) Ai, ai, ai, minha dispnéia! Afasta-te de mim miserável! (sai tossindo em direção ao remédio, pega por engano o veneno, toma e começa a passar mal se rasteja até a cama). Minha nossa Senhora! Não é o remédio! É o veneno de matar moscas e baratas, esqueci, mas não tem problema (tenta subir na cama, sobe) Eu ia morrer de qualquer jeito, mas antes de morrer, algo quero falar. Agora tudo está consumado, mas como concluir meu próprio epílogo? Falar da Tibéria menina que passava horas nos campos admirando a relva e as mais belas flores? Admirando as coloridas borboletas sugando o néctar das mesmas? Ou o vai e vem das abelhas fabricando o puro mel? Acorda Tibéria! Ou deita no teu leito e aguarda o teu momento. Pensa no teu féretro, na tua lápide e o epitáfio que ficará exposto no teu sepulcro. Sente de dentro do teu ataúde o balançar das pessoas que te conduzem a tua nova morada, o cemitério. Águas passadas não movem moinhos, acredita neste dito popular, pois com os teus lamentos não terás a vida que se finda. Faz tempo que estás enojada com as seqüelas das tuas feridas, e pra o teu consolo, sente apenas o cheiro do que te resta, éter, mercúrio e álcool. Esses elementos químicos são os perfumes da tua partida. Fecha os olhos e lentamente deixa-te ser conduzida, pois só assim encontrarás a paz, e lembrarás eternamente de alguém que um dia foi chamada de Tibéria. (vai sentindo o efeito do veneno e se debatendo vai morrendo lentamente. Música, e luz no corpo de Tibéria.)
Contato: Flavio Alves – e-mail: flavioactor@gmail.com – Fone: 81-8640-0534
FINAL
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