Login
E-mail
Senha
|Esqueceu a senha?|

  Editora


www.komedi.com.br
tel.:(19)3234.4864
 
  Texto selecionado
AS AMANTES
Flavio Alves

Resumo:
Um acidente automobilístico mata o taxixta Antonio e no IML duas de suas amantes vão fazer o reconhecimento do corpo mas é no velório que algo inesperado acontece.

AS AMANTES
Texto: Flávio Alves

PERSONAGENS:

Cleberson
Carminha
Lourdinha
Jully


I – ATO


O IML está em greve quando o atendente recebe duas mulheres para reconhecimento do corpo do amante. Na rua há grande barulho com a multidão querendo saber notícias.

CLEBERSON     
(Telefone toca) Instituto de medicina legal, Cleberson: em que posso ajudar? Sim pode falar minha senhora. Estou lhe escutando. A senhora é o quê da vítima, mãe? Tudo bem, mas não tem certeza se houve óbito, não é isso? Olhe minha senhora, houve realmente um acidente, não temos ainda um número exato de vítimas, até porque necessitamos de documentos pra identificação, mas temos uma lista disponível na portaria apresentando 11 nomes de pessoas, não divulgamos o restante porque dependemos dos familiares para reconhecimento dos corpos. É preciso ter calma, pois estamos em greve e só temos um legista trabalhando. Infelizmente tem muita gente lá fora necessitando também de informações e o processo ta sendo lento ok? Obrigado. Nossa que dia! E esse telefone que não pára de tocar! (telefone toca) não falei! Instituto de medicina legal, Cleberson, sim: não, não se encontra. Estamos em greve meu senhor . Dr. Sales não vem hoje, só Dr. Henrique, não claro que não, não posso meu senhor, ele ta só e o IML está em greve ta, ta, ta bom. (desliga). È muito cara de pau! (Voz do Dr. Henrique).

VOZ
Cleberson, por favor pede uma pizza de calabresa e um refrigerante.

CLEBERSON
Ta bem Dr. Vou pedir urgente, deixa comigo. (telefone toca). Instituto de medicina legal, Cleberson. Houve sim, um acidente envolvendo dois veículos na BR 101 Sul KM 92 na Cidade do Cabo de Santo Agostinho. O número de vítimas 32, mas com nomes divulgados só 11. Na portaria a senhora poderá verificar. Por nada minha senhora, obrigado digo eu. (fala sozinho) Sim: a pizza do Dr. Henrique (Liga) Alô! Cleberson do IML, aguardo sim. (fala pra platéia) Não é possível! Será que a pizzaria também entrou em greve? Detesto ficar esperando. Sim, anote aí por favor, uma pizza de calabresa e um refrigerante, pode ser guaraná, qualquer marca serve, muito obrigado. Sim, um momento por favor. Quando vier entregar, passe na portaria e deixe com dona Zezinha nossa faxineira, por trás por favor pra evitar tumulto. (desliga e o telefone toca em seguida) É hoje! Instituto de medicina legal, sim: ah! É da portaria, sim Ronaldo pode falar. Pode, pode deixá-la entrar. Não Ronaldo! As outras pessoas terão que aguardar aí fora, entendeu? Não sei porque essa prioridade! Se ninguém pode entrar, por que duas pessoas podem e as outras não? (entra Lourdinha).

LOURDINHA
Bom dia! Meu nome é Maria de Lourdes. Estou aqui pra reconhecimento do corpo do meu marido, mas pelo que me falaram não tenho dúvida que... (chora).

CLEBERSON
Ta bem minha senhora, sente um pouquinho e tenha calma que o médico já, já, chamará a senhora. (tempo).

LOURDINHA
(Se abana e anda de um lado para o outro, consulta o relógio). Tem água senhor?

CLEBERSON
Logo aí ao seu lado.

LOURDINHA
Desculpe, estou tão atordoada que não tinha percebido (telefone toca).

CLEBERSON
Instituto de medicina legal, sim, fala Ronaldo! È isso mesmo, pode deixar entrar. Ah Ronaldo te vira! Minha função é atender na recepção e não na portaria, me economize por favor (desliga irritado). Droga que burrice! Tudo tem limite!

LOURDINHA
Nossa meu senhor! Precisava ser tão grosso assim com o vigilante? Só porque ele pediu uma informação e tem uma função inferior a sua?

CLEBERSON
Perdão minha senhora, é que com toda essa greve, a gente sem querer perde o fio da meada, mas agora mesmo vou retificar meu erro. (liga). Alô Ronaldo! É Cleberson da recepção. Olha meu amigo, me perdoa, fui mal e grosso com você, com toda essa situação fiquei nervoso e acabei descarregando em você, me desculpa mais uma vez ta legal? Obrigado. Pronto minha senhora.

LOURDINHA
Aí ta certo. (Entra Carminha e Lourdinha fica sentada).

CARMINHA
(Chora) Bom dia! Meu nome é Maria do Carmo. Estou aqui em busca de informações sobre o acidente do veículo Fiat-Uno de cor verde, placa (Um inseto pica Carminha) KACETE!!! Desculpe, KCT-7788-Recife-PE. Este veículo foi o que o meu marido estava dirigindo e dizem que o automóvel além de pegar fogo, ficou parecendo um maracujá. (chora)

CLEBERSON
Calma minha senhora! Se acalme que vamos atendê-la já, já, sente aqui, por favor. (música).

CARMINHA
Faz tempo que você chegou?

LOURDINHA
(Olha para o relógio) aproximadamente 1 hora, 12 minutos e 35 segundos.

CARMINHA
Eu não cheguei mais cedo, porque fiquei a noite inteira sedada de calmantes. Como é a vida... O Tuninho uma pessoa tão nova, se acabar de uma maneira tão trágica.

LOURDINHA
Algo me dizia que mais cedo ou mais tarde, isso ia acontecer. Durante todo esse tempo tive muitos sonhos assombrosos. Eu contava meus sonhos pra ele, mas ele dava de ombros e fazia ouvido de mercador. Olha aí a merda que deu!...

CARMINHA
Tudo bem minha querida Lourdinha, eu até posso entender, mas nem todos os sonhos são realidade.

LOURDINHA
Mas o fato Carminha, é que ele tava se afogando na bebida, até pedi pra ele procurar os Alcoólicos Anônimos, mas ele abriu a boca, mandou eu me lascar, ir pra puta que pariu, me foder... abriu a porta e saiu desembestado feito a besta fera.

CARMINHA
A morte dele foi a imprudência de dirigir alcoolizado, principalmente à noite, se ele não tivesse dirigindo embriagado nada teria acontecido.

LOURDINHA
Eu sei que vai ser difícil se acostumar, mas o que fazer? Agora é só rezar, e pedir a Deus para que o coloque em um bom lugar. (chora) Ai Carminha!... que dor terrível estou sentindo no meu peito!...

CARMINHA
(Chora) Calma Lourdinha!... Deus é justo, tudo isso vai passar.

CLEBERSON
Silêncio!... Desse jeito vai atrapalhar o legista. Estamos em greve e só tem ele trabalhando.

LOURDINHA
Era só o que faltava!... será que nem a dor de alguém que se foi...

CLEBERSON
(Corta) Eu não quero nem saber senhora. Há uma placa aí fora pedindo que se faça silêncio. A senhora não é analfabeta é? E além do mais houve um acidente envolvendo 32 pessoas. Tenha santa paciência.

LOURDINHA
Analfabeta é a puta que lhe pariu seu fresco!...

CARMINHA
Calma Lourdinha! Tais doida é? Desculpe meu senhor ela ta muito nervosa.

CLEBERSON
Se for assim, vou chamar a segurança. Existe uma multidão lá fora aguardando notícias e demos prioridade pra vocês aguardarem aí na sala de espera, mas pelo que vejo não ta havendo colaboração.

CARMINHA
Realmente Lourdinha. Vamos nos controlar que o corpo de Tuninho já, já, será liberado.

LOURDINHA
Oh meu Deus!... Por que essa tragédia foi acontecer justamente com meu amado Rontonhe? Ele que era tão criativo... Colocou os nomes das nossas três filhas, a mais velha Luanda, a do meio Amanda e a mais nova Demanda. E os seus filhos então Carminha! Que maravilha!... Elenildo, Marildo e Ronildo.

CARMINHA
No início foi tão difícil ter que dividir o mesmo homem, mas o fato é que nos acostumamos. Segunda, Terça e Quarta, ele ficava comigo, Quinta, Sexta e Sábado ele ficava contigo e no Domingo ele ia bater a bolinha dele, mas nós ficávamos unidas com nossas crianças. Mas a bebida e a teimosia, arrancou das nossas entranhas o nosso marido. Bem que se diz: volante não combina com bebida.

LOURDINHA
(Se dirige à abertura da janela) Por favor, eu gostaria de saber a que horas o corpo será liberado, pois o acidente aconteceu às 08:00 horas da manhã e já, já, são 10:00 da noite, e além do mais, temos que cuidar do funeral.

CARMINHA
(Se dirige também à janela) Não queremos causar tumulto, por favor nos desculpe, mas é que tudo foi tão inesperado e com toda essa greve não sabemos como agir.

CLEBERSON
Tudo bem minha senhora. Como se chamava o falecido?

CARMINHA
Antonio Lucindo da Paixão e Silva

CLEBERSON
Qual era a idade dele?

CARMINHA
O Tuninho tinha trinta e seis anos.

LOURDINHA
Não é verdade. O Rontonhe tinha trinta e cinco, ia completar trinta e seis amanhã.





CLEBERSON
Ta bem, trinta e cinco anos, de qualquer forma, vocês sabem que o corpo sofreu queimaduras de terceiro grau, pois o que me consta é que o veículo pegou fogo. Vou pedir para que uma de vocês entre para reconhecimento do corpo. Mas o que vocês são do falecido?

CARMINHA
Mas o que isso tem haver? Bote qualquer coisa aí no seu relatório, não é só pra constar? Ponha aí vizinhas, irmãs, amigas, amantes, quengas, putas...

CLEBERSON
Pôxa minha senhora! Quando é pra ser grossa a senhora sabe ser. Pra mim não interessa o que a senhora é ou deixa de ser, mas a senhora tem que entender que eu estou cumprindo com o meu dever, tenho que fazer minhas anotações. Portanto vou colocar amigas, ta bem? E se me permite, preciso de uma voluntária para o reconhecimento, quem vem primeiro?

LOURDINHA
Eu

CARMINHA
Não, eu.

CLEBERSON
Calma! Só uma, apenas uma por favor. (para Lourdinha) venha você.

CARMINHA
(Há uma placa comunicando “Proibido Fumar”, mas ela acende um cigarro). Sempre ela, tudo ela, até num momento desse ela! Hoje só farsa. Dizemos amigas, mas só Deus sabe o porquê, se não fosse assim, nem eu nem ela, perdíamos o Tuninho de vez. Ele por ironia do destino dizia que não podia viver sem as duas, olha aí a situação! Até na hora da morte não sabemos se somos esposas, amantes, putas, sei lá o quê! Mas a culpa é nossa, pois aceitamos. Ele não era tão bonzinho assim não, sempre foi raparigueiro. Eu mesma não acredito que só havia eu e Lourdinha na vida daquele salafrário. Mas o pior de tudo é que eu o amava muito e tive que aceitar assim mesmo. (Há gritos na sala de dentro, Lourdinha sai desesperada).

LOURDINHA
Ai, ai, ai, minha amiga! Tudo pretinho! Tudo carbonizado! Até parece um cadáver de um recém nascido, mas é ele, tenho certeza que é ele. Vá você mesma verificar.

CLEBERSON
Se quiser pode entrar também minha senhora. Mas pelo amor de Deus, apague o cigarro. A senhora não leu o aviso?

CARMINHA
Desculpe, realmente estou tão confusa que não tinha percebido (apaga o cigarro) muito obrigada (entra).

LOURDINHA
Essa porra é doida. Não sei como o meu Rontonhe suportava. Como é que pode, fumar em ambiente fechado e não respeitar o direito dos outros. Que coisa horrível! Como ficou deformado o corpinho do meu Rontonhe! Como é que um corpo tão belo, tão sarado, foi virar uma pedra de carvão? Eu sei que a outra também está sofrendo, mas eu não tenho pena dela assim não. Se ela tivesse aberto mão do meu Rontonhe hoje não estaria sofrendo, mas feito mula manca, empacou, empacou, empacou, e o resultado foi esse, um homem e duas amantes, mas ele também foi sem vergonha, queria mesmo era ficar com as duas. Cadê que ele casou? Casou porra nenhuma, o que ele queria mesmo era viver nesta vidinha. Não deixou nada pra garantir nossa sobrevivência, nem pra mim, nem pra ela e nem pra os filhos. E agora sabe o que vai nos acontecer? De hoje em diante vamos ficar é na merda. (Há gritos lá dentro, sai Carminha).

CARMINHA
Meu Deus que horror! Chega dá náuseas, que estado! Que situação! E agora, como vamos comprar o caixão? Diminuiu todinho. Oh! Coitadinho do Tuninho!...

LOURDINHA
Minha amiga, vamos nos conformar. A morte é maquiavélica, ela não aceita cheque pré- datado e nem cartão de crédito, segura o indivíduo e adeus. É triste o momento que estamos passando, mas a realidade é que não podemos fazer um funeral a altura, por outro lado, logo, logo, aparecerão os urubus disputando com quem ficará a carniça.

CARMINHA
Cruz credo Lourdinha! O Tuninho ta todo assadinho mas ele não é nenhum churrasco e nem carniça pra alimentar urubus não.

LOURDINHA
Os urubus que falo Carminha, são os agentes funerários que ficam apelando pra que alguém bata as botas. Entendeu agora?

CARMINHA
Ah sim! Agora estou entendendo, e tive uma idéia brilhante! Se estamos sem grana pra bancar a compra de um caixão de luxo e todo acompanhamento, poderíamos sepultar o Tuninho num caixão para criança, afinal ele encolheu mesmo.

LOURDINHA
Tá doida mulher! Onde já se viu uma coisa dessa! O Rontonhe não merece uma desfeita dessa não, enterrar o meu Rontonhe num caixão para crianças nem morta! E além de tudo amanhã seria o aniversário dele.

CARMINHA
Você sempre querendo bancar a rica não é? O Tuninho não tinha família, só eu, você e nossos filhos. O que é que tinha de mais? Ninguém precisava ficar sabendo, afinal de contas ele encolheu mesmo, enterrava e pronto.

LOURDINHA
Você diz que ele não tinha família, mas quem é que garante? Se ele fosse rico você ia ver quanta gente estaria aqui, mas como ele era um fodidão... Outra coisa: como vamos conseguir dinheiro, me responde? Tudo bem que o caixão seria pra criança, mas mesmo assim estamos na miséria.



CARMINHA
Comprava-se a prazo e ia pagando levemente. Aproveitava o momento da crise das funerárias que estão na maior concorrência, você não sabia?

LOURDINHA
Mas Carminha, ia pagando levemente como, se não temos dinheiro?

CARMINHA
Aí é outra história. Se dava um trucão, se fazia qualquer coisa. (pensa) Claro que não! Ele não deixou nada pra gente... só nos deixou chupando os dedos e dívidas, mas não vamos levar isso em consideração, vamos comprar um caixão decente e depois se ver o prejuízo.

LOURDINHA
Ta bem, seja o que Deus quiser.

CLEBERSON
Bem pessoal: o corpo já está liberado, podem ir ao cartório e tirar a certidão de óbito. Gostaria que uma de vocês assinasse este documento para a retirada do corpo. Se quiserem, em caminharemos o falecido através da funerária CAMINHO DA PAZ, pois até agora é a única que está prestando bons serviços. (Carminha assina o documento).

CARMINHA
Não seu Cleberson, engano seu, se o senhor não sabe a única funerária que tem preços e planos em conta é a funerária SE LASQUE EM PAZ e além do mais o atendimento é coisa de primeiro mundo. Agora por gentileza encaminhe o corpo para o necrotério do cemitério de São José, obrigada (as duas se abraçam) Tchau querida! Nos veremos no velório.


II – ATO

Um caixão ao centro, umas capelas e castiçais acesos)


CARMINHA
Ai meu Deus que dor!... como o destino é cruel! Por que o Tuninho inventou de bater as botas logo agora? (pra o caixão) Eu sei seu cachorrinho que você gostava de curtir diferente. Eu reclamava com você só pra me fazer de durona. Eu só não aceitava quando você queria botar sua coisinha no meu... Ah! Deixa pra lá, mas fora isso eu fazia de tudo.


LOURDINHA
(Horrorizada) De tudo? Até mesmo... (faz gestos).

CARMINHA
De tudo minha filha. No prato, no pires, apanha cavaco, espia quem vem, no torno, beira de cama, burrinca, bico de chupeta, tampa de caçarola, fundo de garrafa térmica. De todo jeito. Chega batendo nega!



LOURDINHA
Pára! Chega de tanta safadeza! Vamos pelo menos respeitar a memória do meu Rontonhe, baixaria aqui não. Parece até que ele te tirou da zona!

CARMINHA
Da zona da casa da sua mãe. Você ta é com inveja, isso sim. Aposto que com você minha filha ele só ficava no papai e mamãe.

LOURDINHA
Quer saber de uma coisa? Por que você não toma um calmante? Vou deixar pra lá, faz de conta que eu não escutei nada ta legal?

CARMINHA
(Tempo chora) Não é por nada não Lourdinha, mas é que é difícil aceitar a morte assim de repente. Me desculpa por favor (se abraçam) Desculpa perguntar: antes dele sair, você fez depilação nas partes dele?

LOURDINHA
Carminha faça-me o favor! Até numa hora dessa?

CARMINHA
Entenda Lourdinha, ele era muito vaidoso, muito higiênico por sinal, e fazia quase uma semana que eu tinha aparado o bigode dele, só esqueci os pen... (corta Lourdinha).

LOURDINHA
Chega!... Vamos mudar de assunto que eu estou é encucada com outra coisa. O Rontonhe durante essa semana chegou com um perfume diferente e uma marca de batom.

CARMINHA
Porra nenhuma Lourdinha, se chegou com cheiro de perfume e marca de batom, só poderia ser meu.

LOURDINHA
Não, não, não, eu conheço seus perfumes, mas só que o que ele chegou em casa era diferente, um desses perfumes franceses, quanto a marca de batom tudo bem, mas o perfume não era seu.

CARMINHA
O que você ta querendo dizer com isso? Que ele tinha outra além de nós duas? Ele não ta doido!... (pra o caixão) eu quebro a cara dele.(Lourdinha segura Carminha).

LOURDINHA
Calma Carminha! Rontonhe ta morto.

CARMINHA
Analisando bem, você tem razão. Tem outra sim! E o caixão quem foi que comprou? Aquela história do agente funerário dizer que a despesa funerária estava toda paga e quem pagou não podia revelar o nome, é puta! Tem que ser puta.




LOURDINHA
É minha filha... e pelo jeito não é qualquer putinha não, é uma putona montada na grana, não são duas tabacudas feito nós duas não. Ela tem grana sim, se não, como ia comprar um caixão desse e assumir todas as despesas?

CARMINHA
Esse traste ta morto, mas não vale o que o gato enterra, mas isso não vai ficar assim não! Eu vou descobrir, e quando eu descobrir vou fazer a exumação do resto do corpo desse macho da cara de rapariga e vou dá aos urubus.

LOURDINHA
Cruz credo mulher! Tais com o satanás no coro é?

CARMINHA
Eu falo assim Lourdinha, só por uma forma de falar, mas a verdade é que eu, euzinha, nunca fui infiel a esse cabra safado, nunca se quer tive o pensamento de enfeitá-lo com um chapéu de touro, também nunca fiquei sabendo que ele tinha outra além de nós duas.

LOURDINHA
Eu acho que Rontonhe era errado, tomava umas e outras, mas também quando chegava ao limite, chegava em casa calado e calado permanecia, comia e ia dormir. Não sei o que deu que ele passou dos limites e olha só o que aconteceu! Só se ele tivesse com o rabo cheio de maconha.

CARMINHA
Ta doida é? Ele podia ter vários defeitos, mas tomar droga eu duvido.

LOURDINHA
Mas isso é maneira de falar. Que calor da porra não ta? Até parece um forno crematório. Uma cervejinha caia bem.

CARMINHA
Eu fico pensando... O Tuninho se sabe muito bem que ele não tinha família, mas e os amigos? Cadê cu de cana, bode velho, cheira cheira, cunhão roxo?

LOURDINHA
É, deveria está aqui. Mas Carminha! Isso é apelido que coloque em alguém, Cunhão Roxo?

CARMINHA
Ah minha amiga! Você ta por fora. Tuninho não te contou sobre os apelidos dos amigos dele não?

LOURDINHA
Pra ser sincera não, mas por que? Me conta!

CARMINHA
Não vou falar de todos que é uma grande história, mas vou falar de cunhão roxo Mas antes, vou te dizer uma coisa, você me ver assim e pode até imaginar. Será que ela gostava do falecido? Gostava sim Lourdinha, mas o que vou fazer? A vida continua, ele morreu, mas eu estou viva, agora eu, euzinha meu amor vou ter que me acostumar, afinal de contas meu sentimento está no meu coração e não na minha... (corta Lourdinha).

LOURDINHA
Ta bom, já entendi, em parte você tem razão. Se ele fosse certinho... pra início de conversa ele era safado, pois tinha duas mulheres e mais safadas somos nós duas que aceitamos a safadeza.

CARMINHA
O povo vivia falando de mim, mas eu nunca vivi as custas do povo. Tenho uma vizinha que se incomodava com tudo, até um peido que se soltava ela se aborrecia, queria controlar o rabo de todo mundo. Um dia eu tava com os pentelhos na goma, botei o CD de brega e fiquei cantando. Ah ela se arretou! olhou pra mim deu um muchocho e disse: virgem! E eu disse: virgem um caralho! Será que nem na minha casa eu posso escutar meus bregas? Música é música minha filha!

LOURDINHA
Pois eu não tenho essas frescuras não. Eu gosto de tudo, do brega ao clássico. Eu sou eclética minha filha.

CARMINHA
Bem, eu não sei que porra é ser eclética, mas eu tenho que ser o que sou e gostar do que me faz bem.

LOURDINHA
É, mas você ta esquecendo de contar a história do amigo de Rontonhe.

CARMINHA
Cunhão Roxo? Estou nada! Pois bem vou te contar. O Tuninho contava que quando cunhão roxo tinha 25 anos de idade, Ele morava sozinho num kitinete na parte inferior e na parte superior, morava uma jovem com nome de Mazinha. O amigo de Tuninho se engraçou por ela, mas ela tinha um amante que ajudava ela nas despesas e só aparecia de vez em quando. Um certo dia cunhão roxo se aproximou de Mazinha, tomaram umas cervejas, aí rolou uma química entre os dois. Cunhão roxo louco pra tranzar com Mazinha mas ele tinha medo que o amante surgisse de repente. Foi aí que cunhão roxo teve uma desastrada idéia. Como a Mazinha morava no andar superior e o piso era de madeira, cunhão roxo que morava no térreo combinou de furar um buraco na espessura do pênis dele pra tranzar com Mazinha. Então ele convidou três colegas para uma partida de dominó em sua casa na intenção que os colegas erguessem seu corpo até o teto, e pra encurtar a conversa, os três colegas suspenderam cunhão roxo, um segurava seus pés, outro segurava a cintura e o outro segurava a cabeça. E ele dizia: meus amigos quando eu tiver gemendo é porque eu estou gozando aí vocês me suspendam ainda mais. Por ironia do destino, nesse dia a Mazinha não estava em casa, foi quando a empregada foi varrer a casa e percebeu aquela coisa ereta, sem saber o que era pensando a mesma que tinha visto uma cobra, não pensou duas vezes, pegou um tamanco e lascou o tamanco pra cima. Cunhão roxo gritava e gemia de dor, mas os amigos alegres diziam: mais força que ele ta gozando e quanto mais ele gritava mais os amigos diziam: mais força que ele ta gozando.




LOURDINHA
E daí?

CARMINHA
Daí que levaram o coitado ao médico e o médico enfaixou a coisa dele e ele até hoje é impotente e além do mais batizaram ele de cunhão roxo devido as porradas que ele tinha levado. (As duas ficam rindo. Entra Jully).

JULLY
(Usa óculos escuros) Pelo jeito acho que bati na porta errada. Eu jurava que aqui estava sendo velado o corpo do Sr. Antonio Lucindo da Paixão e Silva, mas pelo que vejo acho que é um aniversário, pela alegria que acabei de presenciar... (sarcástica) Quem é o aniversariante? (para o caixão) Oh! Que delícia! O bolo ficou, tá lindo!!!

LOURDINHA
Olha aqui, quem é você que chega invadindo o ambiente e cheia de ironias? Ta pensando o quê?

CARMINHA
Isso mesmo, por acaso você é cega que não ta vendo que isso aqui é um velório?

JULLY
Alto lá! Primeiro perguntaram meu nome, e pra vocês que não sabem sou Jully Mi Close Mi, segundo, se tem alguém ironizando a situação essas pessoas são vocês duas. (chora) O que vocês queriam? Venho ao velório de uma pessoa especial, uma pessoa que em vida sempre foi atencioso comigo, venho ao velório de Antony e... (elas cortam).

CARMINHA/ LOURDINHA
Antony?

JULLY
Isso mesmo, Antony era assim que eu o chamava, e encontro vocês duas que não sei nem de onde vocês saíram, na maior anarquia. Se pelo menos vocês fossem parentes, tudo bem, mas saírem da casa de vocês pra rirem da desgraça alheia. Vão embora, o show acabou.

LOURDINHA
Olha aqui sua figurinha folclórica, você sabe com quem está falando? Pra você que não sabe eu tive três filhas com o falecido.

CARMINHA
E eu tive três filhos. Agora estou entendendo tudo Lourdinha, por isso que você estava desconfiada, eu não disse que havia mais uma na vida desse porco fedorento além de nós duas? Olha aí o perfume diferente de quem era?

JULLY
Minha filha... eu sou culpada se você usa detergente, desinfetante, sei lá! Eu tenho dinheiro, não é à toa que eu faço shows.

CARMINHA / LOURDINHA
Shows?

JULLY
Shows sim, porque? Vão encarar é?

LOURDINHA
Quer saber de uma coisa? Ninguém aqui tava rindo da desgraça de ninguém não. Você queria o quê? Depois de enfrentar o IML em greve, passar por todo aquele constrangimento, eu e Carminha tínhamos que ficar chorando eternamente era? Você é muito da vagabunda, e tem mais: shows é coisa de fresco, de bicha turbinada em botox e silicone.

JULLY
Meu amor tudo isso é ironia e discriminação sua. Sou gente sou ser humano e acima de tudo artista, tenho talento, coisa que você não tem.

LOURDINHA
Se talento é dar o oiti, estou fora.

JULLY
Ponha uma coisa na sua cabeça. Eu trabalho de couver meu amor, de couver entendeu?

CARMINHA
Onde? Qual o cemitério que tu trabalha de coveira?

JULLY
Couver meu amor, faço imitações, danço, canto, dublo, faço imitações.

LOURDINHA
Já que você faz tudo isso, imita uma vaca. Ah minha querida me poupe pelo amor de Deus! O que você sabe cantar mesmo são os machos das outras.

JULLY
Ta vendo só? Maldita hora que voltei para o Brasil, ter que escutar certos desaforos. Em Paris não existe essa baixaria.

CARMINHA
Pegue seus panos de bunda e desapareça. Você que se diz tão fina, sei lá o quê, não respeita a memória de um pai de família. Nunca! Mas nunca o Tuninho ia se passar a conviver ao lado de um travestir.

JULLY
Pensem o que quiserem, estão no direito de vocês, ou vocês pensam que também não me sinto constrangida com essa situação? Primeiro que tudo o Antony me falou que não tinha família e que a família dele era o Fiat, que morava só e que era taxista. E foi através de uma corrida que nós nos conhecemos. Agora pergunto, que culpa tenho eu?

CARMINHA
Ta vendo Lourdinha? Ta vendo? Durante todos esses anos moramos com essa coisa e não cobramos nada, e agora na morte o saldo que ele nos deixa e essa decepção (para Jully) como é mesmo o teu nome?

JULLY
Jully Mi Close Mi

CARMINHA
Deixa de putaria, estou perguntando teu nome de batismo. Qual o nome que escreveram no teu registro de nascimento. Se é que você tem. Pois acredito que o que você tem mesmo é uma ata de fundação.

JULLY
Sem ofensas, sem ofensas por favor. Mudei meu nome sim, depois da cirurgia passei a ser chamada de Jully Mi Close Mi. Não suportava o nome de Valdemar.

LOURDINHA
Ah! Quer dizer que o frango é operado é?

JULLY
Eu não vim aqui pra ser agredida e nem agredir seu ninguém. Todo mundo quer ser honesto e decente, só que neste mundo não há decência, o que existe mesmo são hipócritas. Vocês por exemplo, não podem ficar me censurando pelos meus atos, pois se assim fosse vocês deveriam fazer uma avaliação de vocês mesmas. Pra início de conversa as duas viviam com o mesmo homem e além de tudo ainda abrem a boca e descaradamente falam que tem filhos e filhas com ele. Ora! Me economizem por favor.

CARMINHA
Tudo bem, aceitamos que realmente estamos erradas, mas independente de qualquer coisa somos mulheres e mulher foi feita para o homem e não homem para... para... (corta).

LOURDINHA
Para frango, fala logo, não é isso que tu queres falar.

CARMINHA
É isso mesmo.

JULLY
Preconceito, puro preconceito. Até parece que as duas gostavam do Antony, se gostassem não iam na casa funerária comprar caixão para criança de nove anos de idade. Se dependesse de vocês o Antony ia servir de comida para os urubus.

CARMINHA
Chega! Estou cheia seu veadinho, quer ser mulher de todo jeito não é? Pois bem: bote uma boceta de plástico ou faça um implante de uma tabaca de uma vaca. Você nasceu homem seu Valdemar e não tem cirurgia que dê jeito.

JULLY
Eu era homem sua invejosa, queria você ta no meu lugar, pelo menos não vivia dependendo de mincharia de homem nenhum.

CARMINHA
Vou quebrar a sua cara e mostrar de verdade como se faz uma cirurgia numa bicha safada como você. (Lourdiinha segura Carminha).

LOURDINHA
Calma Carminha! Estamos num velório.

CARMINHA
Olha Lourdinha, eu estou cheia, passada com toda essa safadeza. (para o caixão) Ta vendo seu filho de uma puta, seu comedor de frango, seu macho da cara de rapariga. Me solta Lourdinha, me solta! A muito tempo que eu estava entalada com tudo preso na garganta. Comia xingado. As crianças passando necessidade e você desbundando nas paradas gays, mas tem um dito popular que diz: quem come veado um dia vira veado. E não duvido nada se antes de morrer você não tenha queimado a rodinha também. E quer saber do mais: fui. (sai Carminha aos prantos).

LOURDINHA
Calma Carminha espere!

CARMINHA
Me deixa Lourdinha, aqui não fico mais. (para Jully) E já que você faz tanta questão por ele, pode enterrá-lo, aproveita e enterra ele dentro do seu oiti. (Carminha sai e Lourdinha fica impaciente andando de um lado para o outro).

LOURDINHA
(Para o falecido) Então você pensou que eu ia ficar aqui rezando missa de corpo presente. Seu indecente! Viu só o que você fez? Praticamente expulsou a sua outra amante (para Jully) Tudo por sua causa.

JULLY
Minha causa? O que é que isso!... Se vocês tem sentimentos eu também tenho, estamos no mesmo barco, lutando pela mesma causa. Saiba que ele também vivia comigo, pelo menos aos domingos.

LOURDINHA
Meu Deus! Como eu e Carminha fomos burras! Então era por isso! Ele falava que Segunda a Quarta ficava com uma e de Quinta a Sábado ficava com a outra e aos Domingos quero ficar livre bater uma bolinha e tomar uma cervejinha com os amigos. Olha aí o amigo! Agora você é muito cínica porque você deveria saber que ele tinha uma família, filhos...

JULLY
Lourdinha pelo amor de Deus! Entenda! Eu não sabia de nada, se vocês se sentem traídas eu também me sinto, pois ele em vida tinha uma maneira de convencer as pessoas. Olha aí! Eu, você e a Carminha fomos enganadas. É por isso que até agora eu estou tentando manter a calma.

LOURDINHA
Pensando bem você tem razão, o que adianta ficarmos discutindo agora, ele se foi e com toda essa situação, se ele tivesse vivo eu ia ficar zangada, mas mesmo assim eu o perdoaria, como tenho certeza que a Carminha faria a mesma coisa.



CARMINHA
(Retorna) Oi gente! Eu estava pensando e procurei refletir melhor sobre a situação e cheguei a conclusão que não vale a pena ficarmos nos ofendendo, até porque eu gostava dele. (para Jully). Desculpe Jully, analisei e me coloquei na sua situação e vi que você também é um ser humano, só isso.

JULLY
Na hora da raiva perdemos a cabeça, mas isso é natural. Acho que fui arrogante e também peço minhas desculpas. Não fiquei tão irritada porque eu já sabia quem era o Antony. Uma certa vez eu estava na noitada lá em frente à pracinha do diário em Recife e era aproximadamente 11:30. Eu estava esperando chegar meia noite pra ir à boate apresentar meu show, foi quando Antony apareceu com o táxi e me levou até lá, tava meio esperto devido as cervejas que já tinha tomado e ele ficou assistindo ao show. Rosinha que também fazia show na época, apresentava uma performance da Tina Thunner, e nesse dia eu imitava a Madonna. Ele ficou louco pela Rosinha e ela ficou se jogando pra ele, resultado: ficaram se namorando durante seis meses e eu fiquei chupando os dedos.

CARMINHA
(Olha para Lourdinha ) Faz de conta que eu nada escutei, realmente ele não merecia nosso amor.

LOURDINHA
O negócio agora é tocar a vida pra frente. Esperar o quê de uma pessoa galinha feito ele?

JULLY
Eu comprei o caixão na funerária SE LASQUE EM PAZ porque era o mínimo que eu poderia fazer, gostava dele sim, mas depois de tanto sofrimento. Vou é tocar minha vida pra frente. Pensei até mandar rezar uma missa de sétimo dia, mas isso eu não vou fazer.

CARMINHA
Nem eu.

LOURDINHA
Muito menos eu, mas de hoje em diante, vou fazer um plano funerário pra mim e minhas filhas pra quando morre não ficar jogada..

CARMINHA
E quer saber do mais? Lourdinha o que é isso nesta sacola?

LOURDINHA
Antes de vir pra cá, passei na assistência técnica e peguei meu sonzinho e comprei também um bolo pras crianças.

CARMINHA
Crianças uma ova. O defunto não ta aniversariando hoje? Vamos cantar parabéns pra ele.

LOURDINHA
É isso mesmo, só assim no céu ou no inferno ele vai respeitar as mulheres que teve.


CARMINHA
Quando dei uma saidinha aproveitei e comprei umas latinhas de cerveja. (Elas fazem do caixão uma mesa abrem as latinha de cerveja ligam o som do rádio).

CARMINHA / LOURDINHA / JULLY
Um brinde à morte do falecido Antonio.


OBS. Esse texto já foi montado em Pernambuco e tem registro em cartório, se alguém montar, favor entrar em contato com o autor pelo fone: – 81 – 8640-0534 – 8805-0574 ou pelo e-mail: flavioactor@gmail.com.



FINAL

Abril / 2004


Biografia:
Número de vezes que este texto foi lido: 59428


Outros títulos do mesmo autor

Teatro DOIS MORTOS NO INFERNO E UMA MORTA NO CÉU Flavio Alves
Teatro ASSOCIAÇÃO DE MULHERES Flavio Alves
Teatro TIBÉRIA Flavio Alves
Teatro UM CALANGO PARA ZEFA Flavio Alves
Teatro AS AMANTES Flavio Alves
Teatro OS SEMINARISTAS Flavio Alves
Teatro A QUEIXA Flavio Alves
Teatro REUNIÃO DOS BRINQUEDOS Flavio Alves


Publicações de número 1 até 8 de um total de 8.


escrita@komedi.com.br © 2024
 
  Textos mais lidos
Visita a Sala São Paulo - Adriana Rodrigues Januario Peixoto 68 Visitas
A IMPORTÂNCIA DA MÚSICA - Fernanda Pedreira Simas 67 Visitas
Avaliação mediadora na Educação Infantil - Renata Aparecida Pereira Silva 63 Visitas
Discurso de formatura - Renata Aparecida Pereira Silva 62 Visitas
Visita a Sala São Paulo - Adriana Rodrigues Januario Peixoto 58 Visitas
Avaliação na Educação Infantil - Renata Aparecida Pereira Silva 58 Visitas
DESVENDANDO O TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA - Luana Pereira Santana Pascoal 51 Visitas
Mãe querida - André M Hemerly 46 Visitas
Festividades e saúde mental - Professor Jorge Trindade 45 Visitas
Pensar, potencializar e receber - Isnar Amaral 34 Visitas

Páginas: Primeira Anterior Próxima Última