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A Dica
Crônica do livro O desmonte de Vênus
Alexandru Solomon

Resumo:
O motorista não se mexia. Para tirá-lo da inércia uma pequena gorjeta foi o suficiente.

Com um triste ranger de freios, o ônibus imobilizou-se. Leopoldo desceu rapidamente, enquanto o motorista sacava sua pesada mala de dentro do bagageiro. Agradeceu. O motorista não se mexia. Para tirá-lo da inércia uma pequena gorjeta foi o suficiente.
A vida de representante não tem muita graça. Especialmente, para quem era, até bem poucos meses atrás, gerente de uma firma. Novos donos, e, foi pegar ou largar. Pegou, espalhou currículos, e, nada... por enquanto.
Mal descera do ônibus, naquela cidade desconhecida, se deu conta de que estava perdendo seu tempo. A percepção não foi rápida o suficiente. Quando fez menção de voltar ao ônibus, constatou com desgosto que ele já se fora. O negócio era sair de lá o mais rapidamente possível. Inventar dava nisso. Novas frentes de atuação, pois sim! Pelo menos, sobrara um ensinamento: riscar essa cidade dos seus futuros itinerários. Arrastou a mala, por sorte levara a mala com rodízios, até o guichê, pensando em pedir uma passagem para o próximo ônibus. Ninguém. Restou-lhe gritar:
— Quando sai o próximo?
— Ué, mal chegou e já que ir embora? — espantou-se um velhote. Descobriu, logo depois, tratar-se do bilheteiro, isto é, era bilheteiro quando não vendia balas e refrigerantes no carrinho, cuja tinta desbotara fazia um bom tempo. Naquele momento, aquele ser versátil dormitava num banco debaixo da cobertura de amianto da estação rodoviária. Estação rodoviária! Que piada! Menos mal, que aquele telhado garantia um pouco de sombra. Água fresca, era só pedir ao dono do carrinho, que vendia bilhetes quando não dormia. O próximo ônibus, só meia hora depois da meia-noite. Chegando com cinco minutos de antecedência, estaria tudo em ordem. Conviria não se atrasar — “esse pessoal carece de paciência” — alertou o homem de mil e uma utilidades. Passava das duas da tarde. O negócio era tratar de trabalhar um pouco.
A pequena cidade era nada mais, nada menos do que uma espécie de buraco. Caminhou lentamente em direção à rua que desembocava na pracinha da rodoviária. Uma placa informava tratar-se da Praça Sete de Setembro. Por conseguinte, poderia apostar que, dificilmente, aquela rua, a única, deixaria de se chamar XV de Novembro. Perguntou por uma papelaria. Disseram-lhe que, se quisesse algo, teria de ir à loja do Baiano, “aquela loja, logo ali, tá vendo?” Minutos mais tarde, após caminhar pela rua sem calçamento, entrou na loja. O portão de metal estava levantado. Para atrapalhar a entrada dos fregueses, uma cortina composta de terços verticais. Entrou sem botar fé alguma. O tal Baiano era um sujeito loiro de bigode ruivo. Sem dúvida, devia o apelido ao senso de humor daquela gente. Trabalhador, em todo caso, ele era, tanto que a loja estava aberta em plena tarde de sábado.
Para sua surpresa, conseguiu tirar um pedido. Alguns cartuchos de tinta para impressora e algumas caixas de plástico para guardar disquetes. Só que teria de ser metade com nota e metade sem. Ou melhor, um terço com nota, apenas. Antes que lhe pedisse “tudo por fora”, sacou o bloco de pedidos e tratou de se livrar de parte das amostras para cobrir a parte sem nota. “Sem nota, pago em dinheiro vivo” — vangloriou-se Baiano. Ora, e ele seria trouxa de aceitar outra forma de pagamento? Preencheu a ficha de cadastro, registrou o pedido, e... missão encerrada.
Não havia nada para se fazer, exceto ir até um bar. O Rei do Chope no final da Rua XV — não é que era XV de Novembro mesmo? — foi o escolhido, por ser o mais apresentável, decisão reforçada por uma suada meia hora de caminhada para lá e para cá. Pediu uma cervejinha. O calor era de matar mesmo. O camarada que o atendeu — parecia ser o dono do bar, a julgar pela maneira ríspida com a qual tratava um garçom manco — pegou uma caneca, passou por dentro e por fora um pano, que nem sempre fora tão cinzento, e mandou ver.
— No capricho. — Realmente o colarinho era pouco, e a bebida gelada. Agradeceu e resolveu puxar um papo. Cidadezinha de interior, no conceito de Leopoldo, não é fácil. Todo mundo conhece todo mundo, os forasteiros, parece que nunca são benquistos, ou, na melhor das hipóteses, são olhados com desconfiança. Em menos de cinco minutos, a conversa ameaçou morrer, por falta de assunto. O que poderia comentar com aquele sujeito? Que depois de ter sido durante anos gerente nacional de vendas de artigos de escritório de uma grande empresa, “dançara” com a chegada de um novo sócio? Que, por falta de alternativa, recomeçara de baixo, movido pelo vermelho dos extratos bancários? Bobagem. De tapinhas nas costas estava farto.
— Sabe, Seu Miguel, acho que seria bom outro chope. — Chamara o outro de Miguel, só para ouvir dele o nome certo. Só faltava ter acertado.
— Meu nome é Paulo. De onde inventou esse Miguel?
— Sinceramente, não sei. É que se parece muito com um amigo meu que se chama Miguel. Talvez seja por isso. Não fique bravo, seu Paulo.
— Não, claro que não. Sabe? Vou acompanhá-lo desta vez. Só que vai ser com água-de-cana. — Parou, e sem dar bola pro santo, tomou tudo num trago só.— “Coisa boa!”. Notei que é novo aqui. Vai ficar quanto tempo?
— Para falar a verdade, estou de passagem.
— Mas que bobagem. Tem uma hospedaria muito boa, logo ali. — Paulo apontou o dedo em direção à sua esquerda — É só atravessar. — Fique. Vai gostar. Trabalha com quê?
— Sou representante de artigos de escritório.
— Então, tem de ir à loja do Baiano.
— Obrigado. Estive lá faz uma hora.
— Aposto que fez bons negócios. Ó, Zé, — dirigiu-se para a versão local de Barishnikov — o pessoal da mesa três está com as canecas vazias. — Grande idéia mencionar o número da mesa. Era a única ocupada por um grupinho alegre e, cada vez mais barulhento. A preciosa indicação facilitou a tarefa do Zé.
— Não posso me queixar. Deu pra tirar a barriga da miséria. Ao menos vou poder pagar o chope.
— Ah, se já vendeu pro Baiano, tem razão. Não tem mais quem compre por aqui. A outra lojinha daqui está para fechar. O dono é meu amigo, mas vou lhe dizer uma coisa — aproximou-se do ouvido de Leopoldo, o suficiente para seu bafo de pinga se fazer sentir — de negócios ele nada entende. Tá pra fechar. Saúde! Vender sem receber é fogo. Tadinho dele! Beba, homem, o próximo chope será por conta da casa.
— Obrigado seu Mi...Paulo.
— Se chamasse de Miguel, ia ter de conseguir com o Miguel o chope na faixa. Eu me faria de Miguel, entendeu? — Encantado com a graça, Paulo soltou uma sonora gargalhada.
— Escute, seu Paulo, vou beliscar alguma coisa. Fica aberto até que horas?
— Fico até que o último freguês saia. Daqui a pouco ligo a televisão. Aí vem mais gente. Depois, é conforme.
— Meu ônibus sai logo depois da meia-noite.
— Sei. Só tem esse. Chega às 14 horas e volta meia-noite e trinta. Vai querer comer o quê?
— Coisa pouca. Um bife, ovo frito e arroz com feijão.
— Vai uma saladinha?
— Tá, se não for incômodo.
— Zé, leve o senhor para a 10. — Pode deixar a mala aqui, eu tomo conta. — Olhou para Leopoldo e perguntou: Algum problema?
— É que falou na mesa dez e eu só vejo quatro mesas no bar.
— Isso mesmo: são as mesas três, quatro, oito e dez — Paulo deu uma risada. Gordo, careca, com um vasto bigode, as mangas arregaçadas, ninguém mais poderia desempenhar melhor o papel de dono de bar daquele lugarejo. Ele tem o physique du rôle, pensou Leopoldo. Enquanto comia, constatou que ainda faltariam longas horas até pegar o ônibus salvador. Veio-lhe uma idéia.
— Seu Mi...Paulo. O pessoal aqui gostaria de um poquerzinho?
— Se gosta! Só gosta. Mas cuidado. Vão depenar você.
Meia hora depois, Paulo, Leopoldo e o pessoal da mesa três, estavam em volta da mesa oito. “Esse aí é o Zeca, o Tonho, o Sílvio e o Bode — todos chamam de Bode, nem sei mais o nome dele, né, Bodinho?— Pessoal, esse aí é o seu Leopoldo do Rio, que veio para doar grana para todos nós.” Estavam feitas as apresentações. Leopoldo não se abalou. “Pingo de vinte centavos, pode dobrar, só pode repicar o que tiver na mesa. Jogam assim?”
— Chega de conversa. Viemos para jogar ou para quê? — cortou Zeca, um galalau com ar bonachão e camisa listrada, parcialmente fora da calça. Ó Baiano, vem jogar com a gente. E, assim, o dono da loja veio se juntar aos demais.
— Vamuquivamu — apoiou Sílvio, um magrinho cujo rosto poderia ser confundido com o de qualquer grande ator, após um terrível desastre de carro.
— Isso aí, vamos nessa — fez coro Zeca
O jogo começou. “Passo, eu vou, mesa, cinco, seus cinco e mais dez...” e assim foi seguindo. Leopoldo era muito melhor jogador de pôquer do que representante comercial. Conseguia puxar as cartas certas, se bem que nem sempre de maneira limpa. De vez em quando dava umas cartas boas para o Paulo. Aos poucos, as fichas dos outros ficaram empilhadas à sua frente. Paulo estava “em casa”, até conseguira um lucrinho. “Quero outro cacife” — declarou Tonho. “Para mim chega” — decretou Zeca. “Diacho, perdi cem pau” — lamentou o Bode. “Mas que droga!” — exclamou Baiano. “Mais uma rodada de chope”, sugeria Paulo. E toda vez que Leopoldo dava as cartas, não tinha mais perdão. Sempre com jogo alto, e, fatalidade, pelo menos mais um com jogo bom, para ser depenado. Quando outros davam, Leopoldo arriscava uns blefes, que faziam correr os adversários. Já era covardia. Olhou para o relógio. Quase meia-noite.
— Gente, preciso ir.
— Pó, meu, tirou nossa grana.
— Sacumé, azar nas cartas, sorte no amor, Bodinho.
— Antes fosse! Chega, já vai tarde.
— Continuem sem mim. Antes de ir, vou deixar uma dica para o Paulo. Depois ele ensina para vocês também se quiserem. Tem um envelope? Isso. Então vou escrever aqui as dicas. Isso vai ajudar. Leopoldo levantou-se com dificuldade — muitos chopes, tinha exagerado — foi até a mesa dez e escreveu na folha em branco. “Seus tontos: precisam ficar de olho para ver de onde saem as cartas. Quando nem todas saírem da parte de cima do baralho, desconfiem”. Dobrou a folha, colocou no envelope, e entregou ao Paulo. “Eu pago as bebidas de todo mundo. Paulo, depois que terminarem, você dá uma olhada nas dicas. Não interrompam o jogo. Sílvio, tome cinqüenta pau e jogue por mim. Quando voltar aqui, rachamos os lucros. Valeu?” Um coro adormecido — e não era para menos, com exceção de Baiano, eles já estiveram bebendo antes da chegada de Leopoldo — respondeu: “Valeu”. Nem daria para saber se o bando de patos estava realmente revoltado com a má sorte.
— Paulo, até a próxima. Pode deixar, eu apanho a mala aí debaixo do balcão. Bom jogo. Até a próxima.
Enquanto caminhava para a estação, em dez minutos estaria lá, e em mais cinco, a bordo do ônibus, para nunca mais botar os pés nesse fim de mundo, Leopoldo sentiu um pouco de pena. Afinal, tinha trapaceado para valer. “Bem, é a vida. Ficarão espertos da próxima vez”. Depois de sua carta — que eles deviam estar lendo naquele momento — nunca mais poderia voltar àquela mina de ouro. Riu baixinho e deu de ombros. Estava perto da tal “rodoviária”. Sentou no banco. Não havia mais ninguém na “plataforma”. Cinco minutos de espera, depois dez. O ônibus parecia ter se atrasado. Um cartaz lhe chamou a atenção. Teria sido capaz de jurar que não estava colocado lá à tarde: “A partir da meia-noite de hoje, devido ao horário de verão, adiantem seus relógios em uma hora”.


Biografia:
Alexandru Solomon nasceu em Bucareste (1943), mas vive no Brasil desde os 17 anos. Ao lado de uma sólida carreira empresarial, de uns tempos para cá passou a se dedicar a uma nova paixão: a literatura. Através da sua escrita nunca deixa o leitor indiferente. Um contador de histórias na velha tradição, empregando recursos que vão mostrar ao mundo em que vivemos, algo que pudesse estar perdido. Preparem-se, portanto, para uma surpresa que virá atrás da outra. Pois, Alexandru Solomon, além de humor, vai mais fundo. Autor de ´Almanaque Anacrônico`, ´Versos Anacrônicos`, ´Apetite Famélico`, ´Mãos Outonais`, ´Sessão da Tarde`, ´Desespero Provisório` , ´Não basta sonhar`, ´Um Triângulo de Bermudas`, ´O Desmonte de Vênus`, ´Bucareste` (contos e crônicas) e ´Plataforma G`, além de vários prêmios nacionais e internacionais por sua escrita.

Este texto é administrado por: Celso Fernandes
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