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Noites Suburbanas
Pedro Mayall

Fazia um calor incomum para o mês de junho naquela noite. Pedro tentava encostar o máximo da superfície de seu corpo na parede fria colada à sua cama, para se refrescar. Era um truque que usava no verão abrasador da Taquara, no Rio de Janeiro. Nessa ocasião, não estava dando certo. Já passava da meia-noite e ele não conseguia pegar no sono. Desistiu de tentar dormir e pulou a janela do quarto para o quintal.

Pedro fugia do quarto à noite, às vezes, sorrateiramente, para brincar no quintal e explorar as imediações. Sair pela porta chamaria a atenção por causa do rangido da fechadura. Como a janela ficava a quase dois metros do solo, a mãe não suspeitava que o menino de oito anos conseguisse descer de tão alto. Ele dava um jeito, como fazem as crianças levadas de todas as épocas, esticando-se todo, agarrando-se nas reentrâncias da parede e saltando para o chão. Voltar para o quarto exigia uma operação ainda mais difícil, digna de alpinista.

O menino morava em uma típica casa suburbana, discreta e espaçosa, daquelas com a data da construção entalhada na fachada. Ficava de frente para um terreno baldio extenso e desolado, cheio de arbustos espinhosos, do tamanho de um quarteirão. A única parte urbanizada era uma quadra de cimento, uns cem metros à direita da casa do garoto.

As fugas para o quintal se tornaram mais freqüentes nas noites claras e sem vento daquele mês, porque o menino amava contemplar o céu pontilhado de balões. Era impressionante, naquela época, 1973, a quantidade de balões que soltavam no Rio de Janeiro nas festas de junho, muito mais do que hoje. Começavam a aparecer no finzinho da tarde, alguns imensos, outros menores, todos imponentes e solenes. Carregavam dizeres ou símbolos luminosos que ficavam lindos à noite. Cruzavam o céu silenciosamente, mas os balões maiores levavam baterias de fogos de artifício dispostos em engenhosas armações de bambu com dispositivos de acionamento de retardo que cortavam o silêncio em intervalos regulares. De manhazinha, já consumido todo o combustível da bucha, era um espetáculo e tanto vê-los descendo majestosamente. Eram visoes tão belas que Pedro vez por outra se pegava sonhando com aquelas noites juninas já adulto, muitos anos depois.

Naquela noite em particular ele pretendia se deitar no chão do quintal para admirar os balões. Antes que o fizesse, entretanto, notou uma movimentação diferente na rua e resolveu investigar. Um grupo de umas quarenta pessoas passava diante da casa, movendo-se silenciosa e lentamente. O menino jamais vira nada igual. Lembrava uma procissão religiosa, alguns inclusive carregavam objetos luminosos que pareciam velas. Outros levavam estruturas estranhas compostas do que parecia ser fios de arame, varas de bambu e lona. A maioria era de homens adultos, mas também algumas mulheres e até crianças integravam o cortejo. A curiosidade infantil de Pedro só se satisfaria se ele se juntasse a eles. Pulou com facilidade a cerca do quintal e se misturou aos passantes.

Não lhe perguntaram quem era e o que fazia ali, e ele achou melhor não perguntar nada a ninguém tampouco. Estava encantado com a aventura em que se metera. Sabia muito bem que não devia estar ali e sentia que, se falasse com alguém, o encanto se quebraria e ele seria delatado, detido e devolvido à sua casa, onde a mãe lhe daria um belo castigo.

A estranha procissão prosseguia para seu destino e Pedro a acompanhou. Ninguém dizia palavra, embora todos parecessem saber exatamente seu papel no séquito que se deslocava com enigmática harmonia. Todos menos Pedro. De repente ficou com medo e já pensava em voltar para a segurança do quintal, quando o grupo entrou na quadra esportiva ali perto. O menino entrou também.

Formaram um círculo largo com admirável ordem e rapidez. Agora havia alguém coordenando as atividades, exarando ordens com uma voz tranqüila. As estruturas foram se amoldando e formando um todo imenso. Acenderam uma espécie de maçarico bem no centro e o objeto circular começou a inflar e a se elevar do solo. Pedro finalmente se deu conta do que toda aquela gente fazia. Eram baloeiros e aquilo que se erguia magnificamente diante de seus olhos era, claro, um colossal e maravilhoso balão.

Pedro jamais vira o lançamento de um balão daquele porte. Soltava balõezinhos japoneses comprados no armarinho e olhe lá. Os gases leves que emanavam da enorme bucha acesa fizeram o objeto inflar logo e subir. Ele já estava a uns trinta metros do chão e ainda havia fieiras de fogos e armações iluminadas sendo erguidas. Era uma visão arrebatadora. Pedro sempre quisera ver de perto um balão dos grandes. Por puro acaso ele estava realizando um sonho. Mas o sonho estava para virar pesadelo.

Até então o processo correra com perfeição científica, como nos lançamentos de foguetes da NASA que se acompanhava na TV. Mas algum imprevisto estragou tudo. O balão pegou fogo e rapidamente se desmanchou em labaredas fumegantes de papel e arame. As armações e fios içados pelo balão incendiaram e caíram sobre as pessoas. Os fogos de artifício preparados para estourar depois e lá no alto, alguns ainda estendidos no solo, começaram a explodir, causando pânico. Em questão de segundos, a cena ordenada e harmoniosa se tornara um caos completo, com gente gritando e correndo em todas as direções debaixo de uma horripilante chuva ígnea, desviando-se das detonações e faíscas dos fogos. Era cada um por si e ninguém se preocupava salvar primeiro as mulheres e crianças.

Pedro escapou por milagre, esquivando-se de cadentes destroços flamejantes, evitando ser esmagado por gente adulta desesperada. Fugiu dali a toda pressa até se assegurar de que estava à salvo e então parou por alguns momentos para recobrar o fôlego e ver a quadra ardendo, iluminando a noite como uma grande fogueira de São João. Não quis indagar (e nunca soube) o que dera errado e se alguém se machucara seriamente. Correu para casa, pulou a cerca e escalou a parede de volta para a segurança de seu quarto. Sua mãe jamais descobriu que por pouco não perdera o filho, porque Pedro guardou segredo da façanha por toda a vida. Guardou também, e para sempre, a lembrança daquelas noites suburbanas estreladas e decoradas de balões.











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Publicações de número 1 até 4 de um total de 4.


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