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éramos cúmplices
Rúbia Mendes Laurelli

Era uma vez, eu no ponto de ônibus voltando para casa. Como sempre. Eram mais ou menos 10:50 da manhã. O Sol assistia o mundo de camarote, não tinha uma nuvem no céu, e ele parecia achar o espetáculo da vida coisa muito importante, evento de luxo, calor e luz de gala, naquele tapete azul. O dia estava realmente quente, daqueles que você se esconde até na sombra do poste. E o ponto de ônibus lotado. Não que eu parasse sempre no mesmo lugar, não que aquele lugar pudesse me pertencer, mas de alguma maneira eu chamava aquele canto de meu. Um canto, pra fora do ponto de ônibus onde eu gostava de ficar porque eu posso me esconder estrategicamente à noite, e me proteger do Sol em dias calorosos. Sentei no canto. Trinta segundos acomodada e agradecendo a sombra que encontrei, um senhor quase senta em cima de mim. De certo porque também considerava aquele canto como seu. Ele disse: ‘Ah menina, sentou no meu canto é?’ Antes mesmo que ele terminasse essa frase, já me retirei do lugar, ele recusou mas agradeceu. Eu novamente naquele Sol, quase derretendo, eu queria água, queria minha casa. Não havia outra sombra, meus braços começaram a avermelhar, tanta é a falta de melanina, mas de maneira alguma poderia ter continuado no meu canto, sendo que ele também pertencia a outra pessoa e neste caso, mais velha do que eu. O senhor me perguntou:

-Passou Santa Rosa?

-Sim, passaram três mas Via Rodovia. - eu respondi.

-Ah, preciso do Via Varginha, moro em frente a Igreja São Benedito.

Eu sorri. Por dentro, eu chingava. Por algum segundo dei-me por reparar o senhor que me tirou da sombra. Enquanto ele abaixou para mecher em uma sacolinha, pude ver que tinha remédios dentro. E pude ver que ele é um senhor realmente idoso, cabelinhos brancos finíssimos, rugas e olhos caídos avermelhados. Eu que tenho um pai de 68 anos, imaginei que o senhor tivesse uns 80, sinceramente. Logo, meu pensamento parou, nem chingava, nem agradava. Voltei-me para ver se vinha algum ônibus e ele começou a gargalhar, uma gargalhada fraca e rouca, que me impulsionou a olhá-lo de volta. Me explicou:

-A pombinha. - e gargalhava.

-Pombinha? Uhn?

-Uma pombinha passou quase bateu na sua cabeça. - e sorriu. Voou assim oh- e mostrou passando a mão em cima da minha cabeça.

-Ah! Não vi… e sorri, encerrando o assunto educadamente.

Eu que sou filha da mão que atravessa a rua para nã cumprimentar conhecidos, e eu que detesto ir comprar pão para não ver a cara de ninguém, estava ali relutando. Ele se apertou no canto, e me ofereceu uma ponta de sombra. Nesse momento, pensei em recusar, pensei em sentar na sombra pois o Sol estava judiando,pensei no meu avô, pensei no passado, pensei no meu avô, pensei que esse senhor poderia ser um mal intencionado, pensei no meu avô, pensei que ele era um santo, um anjo e pensei também, no meu avô. Sentei na sombra. Tinha medo, mas tinha mais calor. E mesmo tendo aceitado, fiquei metade na sombra e metade no Sol. Receio de experiências passadas. Pensei no meu avô. Ele insistiu em uma conversa e disse:

-Onze horas tem o Ano Bom, ele passa no bairro da Varginha.

e eu perguntei:

-Ele vira na rua de Maria da Fé?

-Sim. Para você esse ônibus não dá né? Mora na Imbel.

E eu assustei. Como ele sabia? E olha que fiquei em silêncio voltando a cena para ver se eu tinha falado onde eu morava e se ele me conhecia. ‘DEUS! ELE É DEUS QUERENDO FALAR COMIGO’ - pensei. Nada disso, ele raciocinou rapidamente o seguinte: se eu esperava um Santa Rosa Via Varginha, e não me adiantava o Santa Rosa Via Rodovia, é porque na Santa Rosa eu não moro, ou qualquer um me levaria até lá; se eu perguntei se o ônibus vira para Maria da Fé, e essa virada é no bairro da Varginha e entre o bairro da Varginha e o Santa Rosa está o meu a Imbel, então, foi isso. Assim, contei a ele que meu pai trabalha na Imbel (a fábrica) há 30 anos e que eu moro lmbel (bairro) há 8. Eu tenho mania de querer achar que as coisas sobrenaturais acontecem a todo momento e torço para isso, mas não era o caso. Ele falou:

-Meu avô vendeu o terreno para a construção da fábrica e do bairro. Eu cresci lá. Estudei na Escolinha.

E eu balançava a cabeça, dizia ‘legal’. Um ônibus aproximou, não era o nosso. Avisei ele, pois queria se levantar. Perguntou as horas, e enquanto ele olhava no braço o relógio, eu olhava o meu celular. Ele fitou o meu celular. Ao mesmo tempo, um som se aproximava, era funk. Eu ja sabia que seria um adolescente voltando da escola com aquelas caixinhas de som na mão. Enquanto meu rosto já estava normal porque eu já tinha entendido da onde vinha o barulho, o do senhor ainda estava sombreando dúvida. Logo ele viu, dois garotos. E os meninos sentaram próximos a nós, um até deitou no muro. Nosso ônibus finalmente veio, eu o avisei e sai na frente. Entrei antes dele, e várias pessoas ainda estavam na sua frente. Na roleta do ônibus mesmo vi que o banco preferencial estava vazio, e eu que sempre opto pelo banco preferencial pois é mais macio, já nem sentei nele pra que ele não sentasse perto de mim. Sou estranha desse tanto. E várias pessoas entraram, vinha ele, passou reto no banco preferencial e sentou-se do meu lado. Sorriu novamente. Apontou os garotos da música alta:

-Olha como sentam, perigoso cair. Meu Deus.

-É.

Esse senhor, tranquilamente feliz, com uma sacolinha de remédios, com sua experiência de vida estampada no rosto, com a calma de sete anjos, com a serenidade de um entardecer fresco de verão, me fazia querer chorar. Não sei se é pelo sofrimento do passado, a velhice e seu prazo, a vida, o pensamento de não ter possuído muitas amizades verdadeiras, a ignorância do mundo, o desespero do mundo, o barulho da vida de todo mundo, o calor, a falta de respeito, a atenção que eu estava dando, mas eu estava apavorada. Pensei porque esse senhor apareceu na minha vida, quantas outras pessoas teriam cortado o assunto, e idosos adoram conversar. Quntas pessoas teriam trocado de lugar, ficado no Sol se queimando só para menter o silêncio de suas vidas tão fechadas e internas e não compartilhar uma manhã, e não fazer amizade, e não ter que ser gentil. E eu ali, desesperada. Quando aproximou da Igreja, em frente a casa dele, ele levantou para dar o sinal. O botão não funcionou, e ele rapidamente puxou a cordinha. Olhou para mim e disse ‘Ufa, quase hein’ e eu chorando, coitada. Eu não queria despedir, mas ele me deu três tapinhas nas costas e disse tranquilamente: ‘Uma feliz viagem, feliz viagem pra você’ - e eu segurando o pranto ’Vai com Deus’. Chorando. Ele desceu, não olhou para trás, eu olhei. Tão sublime que meu amigo tenha me feito sensível numa manhã encalorada de quinta feita, com a vida toda às avessas, enrolada, sem norte, fundo do poço, o fracasso da gambiarra. Chorava não era tristeza. Não poderia nunca reclamar de amizade, ele pelo menos jamais me excluirá do facebook, jamais me cobrará atitudes, jamais me apoiará, jamais me atrapalhará. Jamais mais nada, mas era ouro. Ah, mundo mundano. Amizade não, que é pouco para o tanto que foi a amizade duradoura do ponto de ônibus, éramos cúmplices.

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