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são pedro II
Rúbia Mendes Laurelli

Não havia lugar para sentar no ônibus então eu estava de pé, me apoiando no banco da frente. Neste banco, dois senhores estavam sentados e conversando. Velhinhos, enrrugados, sofridos. Com mãos cansadas, chapéis sujos, unhas compridas. Usavam roupas limpas, mas roupas surradas, surradas do tempo. E conversavam como adolescentes. Falavam de coisas que eu não consegui ouvir, tanto que meus olhos estavam observando os detalhes. Tinham sacolas no meio das pernas, provavelmente tinham ido ao centro da cidade comprar alguma coisa. Eu percebi isso não só pelas sacolas mas pelas roupas vincadas. Por mais que usassem roupas velhas, as roupas limpas e vincadas mostravam que não era situação para relaxo. Era como se ir ao centro da cidade fosse algo que merecesse boa aparência. Era como se eles estivessem vestidos para não causarem má impressão. Talvez até vestidos para serem melhor atendidos nas lojas, para não sofrerem preconceito. Pois são aparentemente, pessoas muito simples. Eles conversavam e estavam aparentemente felizes, como se andar de ônibus não fosse ruim, como se morar longe não fosse incômodo, como se a situação atual da vida deles naquele momento fosse tudo que eles tivessem almejado, como se tudo tivesse saido como planejado. Estavam ali naquele ônibus como se estivessem no recreio da escola, como se aquele momento fosse uma pausa para a rotina árdua. De repente, um deles tirou da sacola o que havia comprado, e exibiu ao outro como se fosse um troféu. Era um enfeite para casa, um enfeite como se ele não precisasse gastar o dinheiro com outras prioridades. Era um quadro, com a imagem de Nossa Senhora. Um quadro de plástico, com cores estravagantes. A imagem do quadro era de papel colado, mas estava envolto com plástico para não estragar. Notei que era daqueles quadros que a imagem está até falha de quando a tinta da impressora começa a acabar e começa a substituir tons de vermelho por amarelho, e azul por verde, tantas são as cópias que são feitas para serem coladas em suportes de plásticos e serem vendidas nas lojas de 1,99. Coisa simplória. Enfeite. Símbolo de fé e devoção. Ele disse ‘oh qui lindo’, e o outro respondeu ‘oia qui lindo, once comprô?’ e o resto da conversa eu já não pude ouvir, porque entrei em conflito com meus pensamentos. E novamente dentro desse ônibus, senti um leque de sentimentos. Eu tão sem fé que cheguei até a me perguntar o porquê de escrever Nossa Senhora com letras maiúsculas ali em cima. Eu tão sem fé. Creio que acharia tudo isso, desde o andar de ônibus até as roupas velhas, mesmo que vincadas, uma desgraça. Creio que nessa situação, não ficaria de sorrisos dentro do ônibus, não teria brilho algum nos olhos. Não compraria enfeite. Não teria a fé que ele tem. Acho que nem teria fé. Ele estava visivelmente feliz, com tudo isso. E eu por muito menos, já reclamei dessa vida. Esses dois senhores são donos de uma simplicidade que me comove inteiramente, uma simplicidade que eu não consigo ter, mas consigo perceber nas pessoas. Não sou rica, dependo de ônibus para ir e vir, moro longe, já passei dificuldades, mas talvez para as pessoas menos pensantes que eu, passei impressões. Visto roupas novas, como se não tivesse contas para pagar. Sou bem atendida em lojas mesmo quando estou de chinelo, lojas que eu não poderia nem entrar, nem passar na porta, se eu pensar nas minhas prioridades. Eu naquele ônibus vestindo roupas novas e limpas, com a unha cortada, no meio de pessoas desprovidas de vaidade, eu era a digna de dó. Eu naquele ônibus, visivelmente a mais pobre, de espírito. E pra falar a verdade nem sei como terminar esse texto. Sei que desci do ônibus com outra concepção, afinal, se eu pude enxergar alguns dos meus defeitos ontem, hoje já não os tenho mais. Tenho outros claro, que notarei daqui a pouco ou amanhã, ou depois de amanhã. Mas mudarei o mais rápido possível.

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