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Gravata de Bolinhas
Augusto Nesi

Ele estava dormindo como alguém que após ter o corpo cansado de tanto carregar pedras deita a cabeça sobre um travesseiro e descansa.
Na posição horizontal é óbvio, com as mãos entrelaçadas rente ao peito e as pernas retas e esticadas, os sapatos estavam apertados, lembrou que detestava sapatos apertados, lembrou também que detestava gravatas de bolinhas e por um instante, por um breve momento, sua memória insistia em lhe mostrar fatos curiosos que tomavam de maneira persistente todos os seus pensamentos.
A esposa do vizinho do 603 como era gostosa, algodão doce ele adorava e descontava sua incapacidade de comer maçã do amor - devido a fraca dentição - comendo vários algodões doces sempre que seus pais o levavam ao parque de diversões. Lembrou arrependido como aceitava pacientemente as ocasiões em que sua mãe o vestia com o traje “safari” azul-piscina que havia sido comprado em uma liquidação de armarinho, lembrava do seu primeiro beijo, primeiro não...segundo, o primeiro beijo só as mulheres lembram, lembrou de sua primeira transa com a babá do irmão mais novo de um amigo da escola, lembrou como queimou suas sombrancelhas com pólvora naquele experimento inútil de vulcão feito na 5º série, lembrou de sua coleção de gibis, lembrou das joelheiras de couro costuradas em cima do abrigo ginasial, lembrou que gostava de um programa japonês sobre robôs que salvavam o mundo de uma catástrofe que passava todos os sábados de manhã, lamentou o tempo que perdeu sendo escoteiro, lamentou não ter aceitado o convite de dormir na casa da secretária gostosa do escritório na noite em que comemoravam o prêmio de 2º ano consecutivo em vendas de formulários contínuos, lembrou como gostava do mar, como gostava de samba, como gostava de caipirinha com tremoço, como gostava do sol e também de como gostava de ver mulheres usando biquínis, lembrou que de mulher com salto alto ele também gostava, apesar de elas sempre ficarem mais altas que ele, lembrou da esposa tarada do seu chefe e exatamente por isso todos gostavam dela menos o chefe que tinha uma amante gostosa que tirava todo o seu dinheiro que dava em cima de todo mundo no escritório e no dia do amigo secreto pegou exatamente ele e o presenteou com uma gravata de bolinhas que ele nunca usou e isso o fez lembrar como ele odiava gravata de bolinhas, lembrou das dívidas, lembrou que não havia pagado o aluguel, lembrou que havia marcado um encontro com a vizinha Uruguaia do 701, lembrou das aulas de espanhol que ele estava fazendo recentemente só pra ter mais assunto com a vizinha, lembrou dos filmes iranianos que ele adorava e não entendia o por que todos o chamavam de chato por causa disso, lembrou que devia regrar as plantas, lembrou que uma cópia da chave do seu apartamento estava escondida no vaso de flores ao lado da porta, lembrou que não castrou seu gato e lembrou que havia esquecido o aniversário de sua ex-mulher, lembrou como sua ex-mulher era vaidosa e gastava todo o seu dinheiro.
Lembrou dos filhos, de como a menina mais nova havia crescido rapidamente e já estava uma moça e que futuramente com certeza lhe traria problemas, lembrou que nunca mais foi pescar com o filho mais velho, lembrou como amava a sua ex-mulher no início de seu casamento, como suportava ela nos primeiros 10 anos e como passou a odiá-la depois de 15 , lembrou que havia transado com uma prostituta sem camisinha na semana passada, lembrou que se arrependera de o tê-lo feito e lembrou que precisava fazer o teste e lembrou que a meretriz apesar de ser desajeitada e burra era bonitinha, lembrou que havia ganho uma aposta feita com o Valcir sobre a classificação do Fluminense, lembrou que gostava de sinuca, de xadrez e de selos, mas isso de gostar de selos ele não contava pra ninguém.
Lembrou de uma vendedora de plano de férias que havia batido na porta do seu apartamento trajando um lindo vestido “Poá” mas isso o fez lembrar da raiva que ele sentia por gravata de bolinhas, meu deus como ele detestava gravata de bolinhas, lembrou que era tarde, lembrou que devia ter falado menos em algumas ocasiões e que deveria ter gritado em outras mas daí, lembrou que um dia gritou com seu pai por um motivo bobo e por um orgulho mais bobo ainda não havia pedido desculpas, lembrou que gostava de flores, lembrou que gostava de perfumes, de perfumes e flores, lembrou como gostava de silêncio, e foi exatamente lembrando de como gostava de silêncio, de perfumes e de flores que ele começou a despertar de um sono profundo, havia um cheiro de flores que o fez despertar, um sutil cheiro de flores, havia também um silencio, um estranho silêncio, mas silêncio a essa hora?....ele pensou...e aos poucos foi despertando, sem se mexer, imóvel, começou a perceber o perfume das flores de forma mais viva e torcendo o nariz ia aspirando aquele ar perfumado, havia estranhado aquele silêncio, não compreendera e de olhos ainda fechados percebeu lá no fundo do silêncio um balbuciar, um lamento, um respirar arfante, soluços, deteve-se novamente ao cheiro saudável contraindo as sombrancelhas e fazendo beicinho com o nariz, ouviu uns sussurros, um cochicho, sentiu os dedos dos pés apertados, um cheiro de loção misturada a talco misturado a perfume de flores que ele tanto gostava, cheirou o ar mais uma vez, os tons de vozes iam aumentando, consegui identificar algumas, lembrou que gostava do silêncio e num último suspiro, num esforço quase que incalculável ergueu o corpo de supetão, e de súbito abriu os olhos abruptamente, ao seu redor estavam sua ex mulher, seus dois filhos, os colegas de escritório, o chefe, a esposa do chefe e a sua amante, a vizinha uruguaia, o Valcir segurando uma flâmula do Fluminense, mais uns 8 ou 10 desconhecidos, todos segurando flores...de olhos arregalados e boquiabertos em silêncio, no ar um cheiro enjoativo de flores, olhou para os próprios pés calçados em um par de sapatos apertados, quando sua visão chegou a altura do peito foi que ele percebeu e definitivamente, decidido e decepcionado falou em alto e claro português....
- Meu Deus! Todos vocês sabem com eu odeio gravata de bolinhas.



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Poesias Gravata de Bolinhas Augusto Nesi
Contos O Alpendre Augusto Nesi


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