MEMÓRIAS DE UM MIGRANTE
Por João Carlos de Oliveira
Sexto filho de uma família de nove irmãos, nascido no ano do nosso senhor Jesus Cristo de 1892, no município da histórica cidade de Lençois, no território Baiano.Passei toda a minha Infância nesta cidade, onde tínhamos muitos laços de família, vindo posteriormente, por força de mudança da família, a residir na zona rural do município de Espinosa, no Estado de Minas Gerais. Meu pai, oriundo de família de agricultores, médio produtor rural, proprietário de considerável área de terras, acostumado ao trabalho árduo do campo. Minha mãe, de prendas do lar, exímia costureira. Formávamos uma família coesa e unida sob o comando do meu pai. Não havia moleza, trabalhávamos duro, para provermos o progresso das nossas terras, e através dela, o sustento e dignidade da família. Embora trabalhássemos muito, o progresso financeiro da família deixava a desejar, nossas terras não eram lá muito boas, e não possuíam, a qualidade de solos e clima necessários ao desenvolvimento de uma pecuária de corte mais agressiva. Exatamente, em decorrência dos motivos citados, papai, acalentava desde muito, o velho sonho da venda da nossa propriedade, para a compra de outro imóvel, noutra região, e se possível, no Estado de Minas Gerais. Passados alguns anos, as chances de concretização do velho sonho do meu pai ganhava corpo, ante a oportunidade, da venda da nossa fazenda, para uma família da região que retornava após anos, do Estado de São Paulo. Do que pude ouvir, não se apurou tanto quanto desejava meu pai com a venda da fazenda, entretanto, foi apurado uma quantia suficiente, para aquisição do novo imóvel, conforme as suas pretensões. Uma vez propriedade vendida, meu pai conseguiu do novo proprietário 45 dias para a retirada do nosso rebanho. Organizado a nossa mudança, partimos no dia 25 de Agosto de 1904, num dia de festas da Igreja em Nossa Comunidade, e eu, como dizia meu pai, já era um menino de cangote duro, contava com os meus 12 anos de idade. A viajem da mudança foi feita em apenas num dia, chegamos à tardezinha na cidade de Espinosa, município, onde o novo imóvel fora adquirido. A nova fazenda adquirida,, situava a uma distância de 6 km da cidade , e não foi difícil, chegarmos até lá, onde nos acomodamos de qualquer jeito, para passarmos a primeira noite. No dia seguinte, acordei bem cedo, ainda estava escuro, não me continha na cama, o meu desejo, era o de levantar logo, para conhecer e vislumbrar, os ares da tão sonhada nova terra. Por volta das cinco da manhã, ainda um pouco escuro, ouvi barulho vindo do quarto do meu pai, ele se preparava para levantar, apesár da noite mal dormida. Por volta das seis da manhã, ainda um pouco turvo, não mais me contive na cama improvisada por minha mãe, levantei-me, e fui fazer xixi no cercado de aroeira, que protegia a casa sede do curral da fazenda. Na medida em que o sol saía, podia ver ao longe, que a região não era plana, más de topografia ondulada, um lugar bonito, parecia-me, apesár da tenra idade, que as terras eram muito boas. Uma vez instalados na nova casa, mudança arrumada, as nossas vidas foram aos poucos caindo na rotina da nova fazenda. Uma das primeiras iniciativas da minha mãe, foi o de seguir até a cidade, para providenciar a minha matrícula e a de meus irmãos nas escolas daquela cidade. Embora aos 12 anos, fui matriculado na terceira série do curso primário, assim como meus irmãos, foram matriculados em séries correspondentes aos seus níveis de ensino da origem. Fiquei bastante curioso ante ao meu primeiro dia de aula, soube, que teríamos na sala de aula um professor, e não uma professora, conforme costumes da nossa região de origem, pois acreditava, que somente as mulheres davam aulas. Como era um menino danado, não me demorei muito ao entrosamento com os meus novos colegas, pois era bastante falante, e gostava muito de jogar bola. Gentil e Geraldo eram irmãos, assim como, Neide, Ana Maria, Patrícia, Zilar, também o eram. Toco de Tibúrcio, Mundim de Timóteo, Aldemir de Antenor, Zilca de Ponciano, os meninos dos ferreiras, tantos outros colegas, cujas lembranças, me marcaram indelevelmente, por todos os meus anos. Ao quarto ano primário, a nova professora era de cor negra, muito distinta, e ao mesmo tempo, muito exigente e rigorosa, nos ensinou os primeiros passos do aprendizado do estudo da gramática portuguesa. Menino de fora, agora, já aos meus 13 anos, não tardei em chamar a atenção e a curiosidade das minhas colegas de escola. Júlia, mocinha de 13 anos, muito bonita, com seus olhos esverdeados, cabelos castanhos claros, filha do gerente da fazenda do seu Ninquinho, me encantava sobremaneira. Arlete, outra menina, não era minha colega de sala, más contemporânea de escola, também aos 13 ou 14 anos, se dizia minha namorada. Quantas saudades de um passado tão bonito, colegas, que se perderam no tempo, éramos apenas crianças crescidas, quantas brincadeiras, brincadeiras de um passado que nunca voltou. Contávamos com uma boa vizinhança de fazenda, existiam diversas crianças que estudavam na mesma escola e no mesmo turno que nós, cujas idas e vindas da escola, eram sempre festivas, pois embora, possuíssemos cavalos, na maioria das vezes, seguíamos a pé. A distância de 6 km era facilmente vencida, não obstante, das reclamações da minha mãe, já que o nossos uniformes, do dazul e branco, estavam sempre manchados pela poeira vermelha das estradas cavaleiras. Certa feita, quando ainda na quarta série, já aos meus 14 anos, parece-me, que por tentação, ou mesmo, por irresponsabilidade juvenil, saía de casa uniformizado, cadernos na mochila, más ao chegar na cidade, não ia para a escola, gastava todo o meu tempo, até que se terminasse o horário escolar, jogando bolinhas de gude com a meninada de rua da cidade. Permaneci nesta irresponsabilidade por vários dias, até que a minha professora, enviou um bilhete para a minha mãe, quando lhe dava conhecimento, da minha ausência para com as aulas. Meu pai que era bem letrado, dava muito valor aos estudos, ficou uma fera comigo. Sabedor do que me aguardava, andei escondendo por alguns dias, chegando a comer e dormir na casa de um agregado da fazenda, até que um dia, fui surpreendido por meu pai quando corria pelo meio de um pasto da fazenda. Apanhado de surpresa, fui obrigado a subir na garupa do seu cavalo, ele me segurava fortemente pelo braço, me levou até nossa casa, quando me deu a primeira e única surra, utilizando-se, de um cabresto, marcando todo o meu corpo. Minha mãe a que tudo assistira, não pode interferir, nada pode fazer, a não ser me acolher depois. Dos primeiros anos na nova terra, guardo recordações, que foram anos de muitas bênçãos e de muita fartura, lembro-me, que estávamos atravessando uma década de anos muito bons de chuvas, meu pai tratava da ampliação das pastagens que encontrara na fazenda. Sempre fui considerado um menino forte e esperto, exatamente por isso, à mim, eram distribuídos várias atividades no dia a dia da fazenda, dentre as quais, estavam a de alimentar e cuidar dos porcos, apanhar água no rio com o cavalo cargueiro, buscar os cavalos de serviço nos pastos. Naquela época, devido a abundância das nossas matas viurgens, não se dava a importância devida para as madeiras, na sua maioria, provenientes dos roçados e derrubadas para a formação do capim. Muitas das cercas das fazendas eram construídas em toras ou varões enormes, onde os dois pés direitos da cerca, eram cruzados entre si, e serviam de cavaletes, para uns 4 ou 5 varões. Numa certa manhã, meu pai me pediu que fosse buscar os cavalos no pasto da manga da ponte. Como ainda era muito cedo, e estávamos no mês de Junho, fazia um frio danado, as trilhas por entre o pasto de colonião, estavam repletos de orvalho. Como usava calças curtas, fui molhando as pernas - minha calça ficou toda ensopada de água, Sentia muito frio. O capim estava muito alto e trançado, tinha que subir numa árvore ou noutra para tentar enxergar os animais por entre o pasto, más parecia-me, que os cavalos se escondiam de mim. Aborrecido por não encontrá-los, seguia por entre as trilhas do capim de cabeça baixa, já estava mesmo com raiva, xingava e blasfemava bastante. Ao margear uma dessas cercas construídas com toras de madeira, na divisa das terras do meu pai com o vizinho, ao levantar as minhas vistas, avistei de pé sobre a cerca, com braços cruzados, um homem muito alto, todo de branco, olhos ligeiramente esbugalhados e avermelhados, que permanecia de pé sobre as madeiras da cerca, acompanhando os meus movimentos. Como estava com muita raiva, inicialmente, não dei muita importância ao fato, ao passar por ele, como era o bom costume dos meninos da roça, pedi-lhe, a sua benção, ao que nem mesmo observei, se ele respondeu ou não. Continuei meu caminho por entre as trilhas do capim, passados uns cem metros, lembrei-me, que aquele era um dos nossos vizinhos, muito embora o tenha visto poucas vezes, ao mesmo tempo, me veio à memória, segundo ouvi do pessoal de casa, aquele mesmo senhor, salvo engano, havia falecido a cerca de 15 dias atrás. Recobrado a memória, percebi, que na verdade, havia visto mesmo, era um defunto ou visagem. Larguei os cavalos prá lá, e saí em disparada até a nossa casa, quando relatei todo o fato acontecido para todos de casa. Estávamos agora no mês de dezembro, chovia quase todos os dias, papai dizia, que era a melhor época do ano para o plantio das mudas do capim colonião no meio dos roçados de milho, o transporte das mudas, eram feitas com o carro de boi. Ao vender a nossa propriedade na Bahia, meu pai trouxe conosco, uma pessoa muito valiosa, companheiro de todas as horas do meu pai, era considerado, como se fosse mesmo um irmão mais velho dele, pois fora criado pelos meus avós paternos, cresceu junto com meu pai, o nome dele era Zé, Zé de Tiririca, nosso velho vaqueiro de confiança. Também ao comprar a propriedade em Minas, por recomendação do proprietário anterior, meu pai manteve na fazenda, uma família de agregados, que residiam num canto da fazenda, por mais de 30 anos. Seu Eduardo era o patriarca da família, homem idoso, já próximo dos seus 80 anos, agricultor dos bons, caprichoso, possuía muitas crenças, rezador dos bons contra serpentes e pragas das lavouras, fazia previsão do tempo como ninguém, baseava suas crenças em observações muito antigas trazidos dos seus antepassados, casado com Sá Maria, pai do Júlio, do Tito, do Dú, do Zé de Eduardo, pessoal que acabou por se afeiçoar à nossa família. As terras da nova propriedade, não eram tão grandes e também não eram tão pequenas, somavam mais de 800 hectares de terras escrituradas. Aos poucos, foi ficando do jeito do meu pai, que priorizava a ampliação das áreas de pastagens para permitir relativo conforto e segurança ao seu criatório de gado que crescia. Ao mesmo tempo, como era um homem trabalhador e organizado, não descuidava do plantio de outras culturas de mantença da fazenda, como: cana de açúcar, mandioca, lavouras de milho, de feijão, amendoim, e arroz, nos brejos. Complementando a estrutura de produção da fazenda, possuía também, um engenho de cana para produção de rapaduras, tracionado por dois bois, e uma tenda completa para fabricação de farinha de mandioca, tracionada por um cavalo. A moagem da cana para produção de rapaduras começava mais cedo, por volta do mês de Junho, e a produção da farinha de mandioca logo em seguida, ao término da moagem da cana. Todo este trabalho movimentava muitas pessoas por um curto espaço de tempo, contávamos, com a nossa própria mão de obra, já que éramos um bom contingente de pessoas em casa, más ocupávamos também, com o trabalho dos agregados da fazenda e de outros trabalhadores vizinhos. Os homens cuidavam das tarefas mais pesadas, como o corte e transporte da cana, colheita e transporte da mandioca, prensagem da massa da mandioca ralada, ao mesmo tempo, as mulheres se encarregavam da raspa da mandioca, torração da farinha, e da fabricação propriamente da rapadura. Haviam pessoas que não podiam faltar aos nossos trabalhos da farinhança, Dona Caluzinha, mulher de muita dignidadade, desconhecia a preguiça, primeira a chegar ao trabalho e última a deixá-lo. Não poderia deixar de citar também, outras mulheres que nos eram muito especiais, como a Dona Júlia ovo, Sá Maria, Maria de Joaquim, Vênina, Geraldinha, como também, não poderia deixar de citar, o nosso vizinho Antenor, homem experiente, grande trabalhador, bom castrador de porcos. A casa de farinha foi construída bem perto da nossa casa de residência, e o engenho de rapaduras um pouco mais afastado. Me recordo que em certa noite, lá pelo meio da madrugada, em pleno período de farinhança, fomos acordados por um barulho danado, que vinha das dependências da casa de torração da farinha. Era algo que tentava se levantar , para cair logo em seguida, se debatia muito, uma confusão danada, já que haviam diversas vasilhames, muitas masseiras cheias de massa de mandioca ralada misturado com água, para decantação da goma ou polvilho de mandioca. O nosso velho vaqueiro Zé de tiririca, que era solteiro e morava em um quarto em parede e meia com a casa sede, imediatamente se levantou, se dirigindo com uma candeia na mão para a casa de farinha. Como dormia no quarto do meio com meus irmãos, permaneci acordado até que o Zé de Tiririca voltasse para nos falar do que estava acontecendo. A noite não tinha lua, estava muito escura. Não demorou muito, o Zé gritou ao meu pai, lá mesmo da casa de farinha, que todo aquele barulho e confusão, estava sendo provocado pela Marinette, nossa principal vaca de leite, que estava tonta e se ervando, por causa da toxidez de grande quantidade de água de mandioca ingerida, e que ao que lhe parecia, haveria de morrer. Lá do quarto, ouvi a voz do meu pai que se levantava gritando para o Zé de Tiririca, que era o jeito sangrar a vaca, para que ela perdesse todo o sangue, para que fosse aproveitada para o consumo. Com toda esta confusão, ninguém mais dormiu, o novo dia não tardou fazer barra. Agora, já aos meus 15 anos, havia concluído a quarta série no ano anterior, era tempo de me matricular no Ginásio, entretanto, como não havia este grau de ensino na cidade, tive que paralisar os meus estudos . Da mesma sorte que meus irmãos mais velhos, que ainda se encontravam sob o teto do meu pai, seguia na mesma trajetória, ou seja, paramos de estudar, e todos trabalhávamos nas atividades da fazenda. Nunca gostei de puxar enxadas e nem de bater foices nos pastos, não era muito afeito a agricultura, gostava mesmo, era de cavalos e adorava a lida com o gado, meu pai que sabia disso, me nomeou como ajudante de vaqueiro do Zé de Tiririca. Fui criado na lida com gado, meu pai, criava, comprava, e vendia gado, havia um bom movimento com gado na fazenda, eu sempre muito engajado, pois gostava muito do que fazia. Em determinado dia, quando meu pai havia vendido uma manada de vacas, fiz parte da comitiva escalada para a sua entrega juntamente com o meu pai, com o Zé de Tiririca, e mais dois vaqueiros, e no dia marcado, seguimos viagem, levando um lote de 100 vacas. Ao planejamento da viajem, numa distância a ser percorrida de 58 km tínhamos 2 opções de estradas , sendo que na opção de menor distância, embora muito mais trabalhosa, economizaríamos cerca de 10 km de viajem, tínhamos entretanto, obrigatoriamente, de passarmos por uma estrada construída numa serra, com pista em zigue- zague e com cerca de dois km serra acima. Uma vez tomado a decisão de passarmos pelo caminho mais curto, reunidos e preparados a manada de gado, iniciamos a primeira marcha de uns 17 km, até que chegamos ao sopé da serra do some-tumba , o que ocorrera por volta das do nove horas da manhã. A estrada da serra tinha apenas uma pista, era mais utilizada como estrada cavaleira, pois era estreita e precária, com muitas pontas de pedras no seu leito, com trechos bastante acidentados, más mesmo assim, desciam por lá alguns Geeps tracionados e reduzidos. Ao encaminharmos a guia do gado para a subida da serra, tão logo o gado tinha percorrido cerca de 200 metros, Antenor, que era o guieiro, parou a guia do gado, gritando para o meu pai, que era preciso retornarmos o gado ao sopé da serra, pois ouvira o barulho de um carro que descia a serra. Foi um trabalho danado, más assim foi feito, deixamos o gado voltar, e os recantilhamos um pouco afastado da estrada com todo o cuidado, para que a boiada não estourasse. Todos nós componentes da comitiva, em número de cinco pessoas, passamos a ouvir a zoeira do carro, que às vezes parecia aproximar-se do ponto em que estávamos, para depois diminuir de intensidade, mais parecia com o barulho de um GEEP reduzido. Como o carro que parecia aproximar-se, não passava nem nada, a zoeira foi diminuindo aos poucos , até o desaparecimento por completo. Meu pai chamou pelo Antenor, e pediu-lhe que boiasse o gado, e que retomasse a guia do gado, reiniciamos a subida da serra. Estranhamente, ao percorremos todo o trajeto de serra, não vimos carro algum, ou mesmo, o rastro deixado pelos seus pneus. Vencidos o trecho de serra, já no seu planalto, havia um morador na margem esquerda da estrada. Ao ser indagado sobre o carro que havia descido a serra naquela pouca hora, uma senhora respondeu-nos, que não havia descido carro algum naquele dia, e que já se faziam mais de quinze dias que não descia qualquer carro por aquela estrada. Posteriormente, viemos a saber , que não era a primeira vez que apareciam aquelas visagens naquele trecho de serra, por vezes, aparecia faróis acesos visto durante a noite, por vezes, aparecia zoeira de um Geep. Contavam os moradores antigos, que a estrada fora aberta a custa de explosivos e de muita mão de obra braçal, e que na sua construção, houveram perdas de muitas vidas humanas. Estávamos agora no ano de 1909, eu já estava com 17 anos, faziam seis anos que havíamos chegados na nova região. Desde então, a nossa fazenda havia progredido bastante, meu pai havia investido muito na ampliação da infra-estrutura produtiva da fazenda, recuperado e ampliado instalações, recuperado e ampliado novas áreas de pastagens, já que o nosso objetivo maior, era o de ampliar a criação de bovinos. Como eu havia parado de estudar, cada vez mais, ao lado do velho vaqueiro Zé de Tiririca, assumia as responsabilidades do manejo do rebanho. De um rebanho pequeno e de qualidade inferior quando da nossa chegada a Minas no ano de 1904, havíamos progredido substancialmente, tanto em qualidade, como em quantidade, cujo número de animais, já passavam de 500 cabeças. Meu pai mantinha um bom relacionamento comercial com gado, principalmente com marchantes do território Baiano, já que o Município de Espinosa ficava próximo da fronteira com aquele Estado. O município onde compramos a fazenda, era bastante seco, não que não chovesse, é que o período chuvoso ocorria e concentrava em poucos meses do ano em detrimento do restante do ano, que pouco ou quase nada chovia. Como éramos de origem Baiana, acostumados a convivência com secas e estiagens, procuramos direcionar as nossas atividades em sua maior parte, para cria e recria de gado, com expressiva atividade comercial, ao mesmo tempo, em que reduzíamos, o plantio de lavouras de sequeiro. Não descuidávamos das lavouras de subsistência, más procurávamos desde aquela época, diminuir a nossa dependência financeira dela. Durante estes seis anos, convivemos várias vezes com perdas de safras, e perdemos alguns animais, entretanto, estávamos passando por uma década de boas chuvas na região, e as perdas de lavouras, necessariamente, não significavam perdas de pasto, ou seja, a nossa exploração do gado ia bem. A nossa família nestes seis anos, permanecia coesa, fomos presenteados com o nascimento dos meus três últimos irmãos, tratava-se na verdade, do nascimento de três meninas, novidades na família, pois o nascimento de meninas em nossa família, predominantemente de homens, eram motivo de festas. Nenhum dos meus irmãos até então, haviam se casado ou saído de casa, formávamos vigorosa força de mão de obra para os trabalhos da fazenda. Minha mãe, que havia feito curso de corte e costura de roupas em Salvador, era considerada por todos, como exímia costureira, não demorou muito para correr fama na região, Naquela época, não se encontrava roupas prontas para comprar, e as costureiras tinham muito trabalho. Além dos trabalhos de costura de roupas para homens e mulheres, era minha mãe quem costurava e fazia roupas especiais, para pessoas que faleciam na região. Agora estávamos nos primeiros dias do mês de Janeiro de 1910, mais precisamente, três de Janeiro do novo ano. Como de costume, todos os dias bem cedinho, ouvíamos uma tosse no terreiro da frente da nossa residência, sabíamos, tratar-se do seu Eduardo, que chegava para trabalhar. Meu Pai, que acabava de tomar o seu café ao derredor do fogão de lenha na cozinha, já se deslocava para a sala de fora levando nas mãos, um bule de café bem quente, e alguns pedaços de bolo e de queijo. Ao chegar na sala de fora, papai convidou ao seu Eduardo para que entrasse e tomasse assento no banco, e que tomasse o seu café. Enquanto seu Eduardo tomava seu café, meu pai que permanecia de pé, assentou-se. Conversa que vai e conversa que vem entre os dois, sobre os serviços a serem implementados naquele dia, o velho Eduardo, em determinado momento, chamou pela atenção do meu Pai, dizendo-lhe, que nas marcações sobre o tempo que fizera, havia observado, que o comportamento da florada de algumas árvores, as quais, vinha observando desde a primavera do ano anterior, não lhe davam boas indicações para o período chuvoso em curso. Que também, as suas observações daquele dia de três de Janeiro do ano de 1910, cujas observações, ele havia feito logo ao amanhecer, também não havia lhe dado boas indicações. Continuando a sua fala, considerou que acreditava sinceramente, que infelizmente, teríamos um ano muito difícil pela frente, com ocorrência de poucas chuvas, estiagens prolongadas, secas, perdas de safras, perdas de animais, muitos prejuízos. O velho agricultor, do alto dos seus quase oitenta anos, seguindo tradição dos seus antepassados, possuia ccom ele a sua própria maneira de fazer previsão do comportamento do tempo, segundo o que mais lhe interessava. Dando prosseguimento no relato das suas observações, disse ainda ao meu pai, que logo ao amanhecer daquele dia, pode observar, que o tempo havia amanhecido diferenciado - havia um vento frio, o vento que soprava, não era o vento frio das chuvas de verão comuns naquela época do ano, más sim, um vento frio do inverno, e que além do vento frio, havia observado, pontos esparsos de serração no horizonte, e que tudo que observara , somado ao comportamento da florada de algumas árvores, segundo a leitura trazida por seus antepassados, era uma indicação muito ruim para o período chuvoso em curso. Ouvi, que meu pai tentou ponderar ao velho Eduardo, alegando-lhe, que talvez ele pudesse ter se enganado, pois tudo indicava, que teríamos um ano de normalidade na região, o final de Dezembro de 1909, tinha caído umas boas chuvas, e que ao que lhe parecia, iria chover bem em Janeiro. O velho trabalhador tomou seu ultimo gole de café, acendeu seu cigarro de palha e se pôs de pé, encaminhou-se para a porta de saída da sala, e virando para meu pai, disse lhe: Prezado amigo, que Deus nosso senhor nos ajude, tomara mesmo, que o senhor esteja certo,
e apontando o dedo indicador para o céu, ainda disse-lhe: que para aquele lá do alto, nada é impossível, e que tudo que ele havia acabado de relatar, eram apenas, fruto das observações de gente velha e antiga. Os dias de Janeiro do ano de 1910 foram passando, inicialmente, pareceu-me, que o meu pai não dado muita credibilidade nas previsões do Seu Eduardo. Normalmente nesta região, o período chuvoso normal, inicia-se em Outubro ou Novembro e se estende até Abril/Maio, em Maio, ocorre as ultimas chuvas, conhecidas como chuvas da semente. No mês de Junho, já aparece em algumas regiões do Norte de minas um vento frio, proveniente do oceano atlântico, que sopra na direção Leste/Oeste. Em muitas situações, este vento frio, provoca danos nas pastagens até bastante superiores ao sol quente, pois ele desidrata o capim, que vai secando numa velocidade muito grande. A partir de então, o período seco se instala mesmo na região, se estendendo até Outubro ou Novembro. O sol de Dezembro e de Janeiro chegava aos 35 graus, e a primeira quinzena do mês de Janeiro passou depressa, caíram umas poucas neblinas aqui e acolá , tradicionalmente, o mes de Janeiro, era mesmo de poucas chuvas. Já se podia ouvir aqui e acolá, queixas de alguns produtores, alegando, que suas lavouras já se ressentiam com a intensidade do sol, e que já havia motivos para preocupação, pois o céu não estava nada bom. Haviam apenas nuvens esparsas, as lavouras viçosas acostumadas com as boas chuvas que caíram em dezembro, murchavam durante o dia, para se recuperarem no período da noite. As pastagens de colonião e vermelho, embora mais resistentes a baixa umidade, começavam a se retorcerem durante as horas mais quentes do dia, para se recuperarem a tardezinha e na noite. De alguns produtores – aqueles mais otimistas, pude ouvir por diversas vezes em conversas informais, que as chuvas estavam por aí mesmo, que estavam para cair, que teríamos muitas chuvas em fevereiro e Março, e que era assim mesmo, Janeiro, era mesmo seco, tanto que valia a velha máxima: feijão plantado em Janeiro, não vai ao terreiro. Na medida em que os dias iam passando, ocorreu entretanto, que as chuvas não vieram como esperado, a força da estiagem já começava à mostrar a sua cara, aos poucos, os otimistas começavam a preocuparem-se. Agora Já se passaram trinta dias, o mês de Janeiro estava no seu final, as lavouras se ressentiam da falta de chuvas cada vez mais, principalmente a cultura do milho, que havia sido plantada em Novembro e Dezembro, pois estavam em plena época de floração e formação das espigas. Findado o mes de Janeiro, agora já era Fevereiro, mês de muitas esperanças dos agricultores, tradicionalmente bom de chuvas, entretanto os dias passavam e a estiagem avançava, o solo secava cada vez mais. Observávamos com tristeza, que as lavouras de subsistência do milho e do feijão, estavam sendo irremediavelmente perdidos, a florada do milho se esbranquiçara toda, a florada. havia abortadoi, as bonecas do milho, não granaram e não se vingaram. A cultura do feijão implantada em consórcio com o milho, muito mais exigente em umidade, desaparecera por completo na terra. As pastagens iam ficando cada vez mais comprometidas pelo excesso de pastejo, não haviam chuvas para que rebrotassem. Até então, o estado físico do gado não sofrera mudanças, mesmo porque, era gado da região, bem aclimatado ao Local. A estiagem agora se estendia até o final do mês de fevereiro, já estávamos com 60 dias sem chuvas, as perdas das lavouras de sequeiro foram de cem por cento, mesmo culturas altamente resistentes, como a cana de acucar e a mandioca, tinham o seu desenvolvimento comprometido. A força da estiagem prolongada era danosa, além de ter comprometido toda a produção de subsistência da região, começava a secar os barramentos de água para o gado, e os pontos de água para bebida humana em muitas propriedades. O povo rezava e faziam promessas, mulheres e meninos faziam procissão, carregavam latas e tambores de água na cabeça. As crianças carregavam litros de água sobre as cabeças, haviam também muitas flores, todos seguiam em filas, entoavam cantos para chover, e depositavam a água, em um grande cruzeiro que existia em fazenda vizinha no alto de uma colina. Agora já estávamos em Março, a impetuosidade da estiagem continuava, a natureza parecia não ter ouvidos para os apelos da população, já se faziam 70 dias sem chuvas. Por volta da segunda quinzena de Março, apareceram algumas nuvens, Deus ouvira o apelo da população sofrida, e algumas chuvas finas caíram, não foram suficientes para recuperação das lavouras irremediávelmente perdidas, nem mesmo, para recuperação das pastagens, más serviria muito, para recuperação dos pontos de água de bebida de algumas propriedades. Como a nossa fazenda contava com expressivo rebanho, os danos em nossas pastagens, foram maiores do que em muitas outras propriedades da região, pois nossos pastos ficaram muito baixos, e a única reserva alimentar que podíamos contar com ela seriam nossos canaviais, más que haviam sido colhidos para moagem nos meses de Julho e Agosto do ano anterior, as chuvas que estavam caindo, eram insuficientes a esta altura do tempo, para recuperação do capim, e não haviam pastos de disponíveis ao aluguel na região, visto que a situação, em maior ou menor grau, era a mesma em toda a região. A ocorrência de fenômeno climático desta natureza, nunca atinge a uma só localidade isolada-mente, más possui reflexos em toda a região. Como estávamos em Município próximo da divisa com o Estado da Bahia, o reflexo da seca, se estendeu também para muitos municípios baianos, e ao que nos pareceu, os efeitos foram muito mais danosos do que em minas, pois a população era mais carente e mais pobre. As perdas das lavouras de grande número de produtores, desencadeou na região, uma forte crise de desemprego da mão de obra braçal gerada pelo trabalho do campo. Se não havia produção, não haveria como gerar mão de obra, não havia recursos financeiros para o seu pagamento. Verificou-se assim, a presença de grande número de retirantes pelas estradas, indo de um local para outro a procura de trabalho pela a sua subsistência. Certo dia, quando meu pai se encontrava em viagem, apareceram em nossa fazenda, umas duas famílias de retirantes - cerca de 15 pessoas, quando indagados da sua procedência, nos informaram serem da Bahia. Observamos que se tratavam de pessoas de bem, estavam com muita fome, oferecemos-lhes, modesta hospedagem para que descansassem, já que pretendiam seguir viagem em direção ao Município de Montes Claros. Minha mãe, sensibilizada com aquelas pessoas passando fome, especialmente, das crianças, chamou ao Zé de Tiririca, pedindo-lhe, que fosse aos pastos da fazenda, escolhesse uma vaca solteira bem gorda, e que ela fosse entregue para aquelas pessoas para abate e consumo. O animal foi abatido. Como o pessoal não tinha em suas traias vasilhame necessário ao cozimento de comida para tanta gente, tivemos que emprestar-lhes um tacho de cobre da fabricação de rapaduras, para que cozinhassem a carne. Uma vez iniciado o cozimento da carne, poucos minutos após, ouvimos uma grande gritaria das mulheres e meninos, gritavam por socorro, alguém estava morrendo. Assustados com tamanha gritaria, corremos todos para vermos o que estava acontecendo. Ao chegarmos lá no local onde estavam hospedados, nos deparamos com uma cena bastante triste, pois havia uma mulher quase morta, engasgada com um pedaço de carne semi-crua, atravessado na sua garganta. Zé de Tiririca, homem matuto de muitas serventias, logo assumiu o socorro da mulher . Diante da gravidade da situação, a um só tempo, tomou o corpo da mulher quase desvanecida em seus braços, colocando-a, debruçada sobre a coxa da sua perna direita, desferindo-lhe, um grande soco sobre suas costas, e o pedaço de carne acabou por cair longe. Guardados as devidas proporções que cada situação requer, também vivíamos uma situação inquietante, pois estávamos agora já no início do mês de Junho, e observávamos, que muito embora, estivéssemos apenas no início do período seco tradicional, este ano, era muito diferente dos demais, pois o período seco tradicional se antecipou em pelo menos três meses, não havíamos conseguido fazer diferimento de pastos como reserva alimentar dos animais, como então faríamos para o enfrentamento da seca que se firmava cada vez mais? Ao mesmo tempo, meu pai havia que pensar na so-brevivência da sua família que era numerosa, além das suas responsabilidades como patrão para com diversas pessoas que trabalhavam conosco. Na medida em que o ano avançava, os efeitos danosos da estiagem ia mostrando a sua força, pipocavam notícias do secamento de córregos, riachos, barramentos de água, e morte de gado por todo os lados. A vegetação de caatinga, típica da região, adaptada por milhares de anos aos danos da estiagem e da seca, desnudaram-se das suas folhas mais cedo, para se protegerem das perdas de água, limitando ao mínimo a sua respiração e perda de energia. Na nossa propriedade não era muito diferente das demais daquela região, embora estivéssemos razoavelmente mais bem preparados do que muitos produtores, mesmo assim, os reflexos danosos da seca não demoraram a aparecer, o gado começava a emagrecer e a perder peso. Como medida de salvaemento, iniciamos por suplementar os animais mais magros com cana de açúcar picada, más ao que nos parecia, o resultado não era grande coisa, pois não tínhamos milho para suplementar aos animais. Como me encontrava à frente da lida com o gado juntamente com o Zé de Tirirca, observávamos, que muitos dos animais tratados, embora com pelos relativaemente lisos, ficavam barrigudos e se mantinham fracos, devido a falta de proteinas. Grande parte das nossas pastagens foram formadas com o capim vermelho, embora tivéssemos ainda razoável resíduo de massa fenada, observei, que o nosso gado passeava pelo pasto, más estava na verdade, era passando fome, não conseguia fazer a digestão do capim seco e lignificado. Embora otimista, más sempre com certa cautela, meu pai resolveu que por questão de segurança do próprio rebanho, seria muito prudente e urgente a venda de parte do rebanho, afinal, não tínhamos recursos para a alimentação de uma quantidade maior de animais. Uma vez decidido quanto a venda de parte do rebanho, o mais difícil agora seria arranjar compradores, já que quando da ocorrência de fenômenos desta natureza, ninguém queria arriscar seu capital na compra de gado. Como era Baiano, papai tinha bom trânsito e bom conhecimento na região, onde já estava acostumado ao comércio da compra e venda de gado para municípios próximos da fronteira. Possuía parentes do lado de lá, procurou ajuda para venda do gado na região de Itapetinga, onde a crise da seca, não tinha batido tão forte, face ao deslocamento de algumas massas e frentes frias provenientes do oceano atlântico. Finalmente surgiu um comprador da Bahia, exigente como era ele só, só queria a comprar vacas paridas. Para meu pai, que não tinha outra opção, sabia que era um péssimo negócio, já que na negociação, os bezerros amamentando seguiam ao pé das vacas como fôlego morto, ou seja, seguiam literalmente de graça. Na véspera da chegada do comprador, meu pai solicitou a mim e ao Zé de Tiririca, que apartássemos o gado, e que separássemos apenas vacas paridas e que deixássemos de fora do negócio, apenas umas vinte vacas paridas, para o custeio de leite e queijos da a fazenda. Não havia outra solução não tínhamos pasto para a manutenção do gado, os animais já começavam a perder peso, inclusive, com perdas de alguns animais fracos, que atolavam nas bebidas de água do rio, ou mesmo, na medida em que iam se enfraquecendo, aacabavam por deitar, e não mais se levantavam. Para mim, jovem entusiasta da pecuária, o gado da fazenda eram como se fossem membros da minha família, via com um misto de insatisfação e tristeza a venda de um plantel de animais que ajudei a formar. Meu pai, na visão da minha mãe, chegava a ser frio diante de determinadas situações, não que fosse dotado de sentimentos, era um homem moldado segundo as circunstâncias da dureza do sertão, não costumava postergar decisões, e agia na maioria das vezes, sempre baseado na razão em detrimento do coração. No dia marcado, o comprador do gado apareceu, o negócio foi fechado para 180 vacas paridas, meu pai, não tinha mesmo muito do que discutir, pois o gado era prá vender mesmo, e foi combinado que em determinado dia, chegaria uma comitiva de vaqueiros para apanhar o gado. Sempre fomos pessoas crentes em Deus, e não cansávamos de citar a parábola proferida por Jesus aos seus discípulos: “ faças da tua parte, que vos ajudarei”. Estávamos fazendo da nossa parte, segundo as circunstâncias em que vivíamos. Nos meses seguintes, de Agosto, Setembro, Outubro, tradicionalmente secos, a estiagem se recrudescera, havia muitos prejuízos na região, muita perda de gado, acabamos sendo obrigados a venda de mais animais – vacas solteiras, novilhas, garrotas, garrotinhos, havíamos perdido também, cerca de 30 animais. Ao final de Outubro, de um rebanho em Janeiro de mais de 500 cabeças, chegamos ao final do ano, com pouco mais de 150 cabeças. O verdadeiro sofrimento trazido pela longa estiagem na região, talvez não tenha sido os prejuízos provocados pelas perdas das pastagens, do gado, das colheitas, do secamento dos regatos, córregos, represas, más sim, aquele provocado pela desagregação social da população pobre e carente, representados por diaristas braçais, pequenos sitiantes, pessoas de características eminentemente rural que habitavam o campo ou pequenas comunidades ruaris,fortemente dependente das lavouras de de sequeiro e do trabalho braçal rural, gerado pelas fazendas da região. Testemunhei a migração de famílias inteiras, que abandonaram as suas terras, suas casas, pequenas propriedades, que muitos rumaram a pé, levando o pouco que podiam carregar. Seguiam de povoados a povoados, de fazendas a fazendas, mendigando pequenos trabalhos braçais, recebendo pequenas ajudas dos sitiantes e fazendeiros por onde passavam - eram sempre tratados como Baianos. Seguiam na direção ao sul do Norte de minas, especialmente, para as fazendas de gado da região de Montes Claros. Foi exatamente o trabalho deste povo itinerante, que ajudou na formação de muitas fazendas de gado do Norte de minas, especialmente, daquelas situa-das no vale do rio verde grande, abrindo matas a machado, queimando roçados, fazendo coivaras, plantando mudas de capim colonião, construindo cercas, muitas vezes, sabe Deus, quantas privações, doenças provocadas pela sezão, ajudaram na construção de muitas fortunas e riquezas desta imensa região. Por esta época, muito se ouvia falar de Montes Claros, na força comercial da sua pecuária, na riqueza dos solos do Vale do Rio verde, nas chuvas que caíam com mais abundância, na cidade que crescia, eram terras de oportunidades. Para a nossa família, o revés provocado pela grande seca, não foi de todo desesperador, tomamos muitas lições, ao mesmo tempo, lançamos mãos de todas as medidas que estavam à altura das nossas possibilidades. São exatamente nestas ocasiões, frente a determinadas dificuldades, que nos despertamos para novas iniciativas, este foi o nosso grande mérito. Se por um lado, a venda de grande parcela do nosso rebanho esvaziou a nossa fazenda, por outro lado, a sua venda, capitalizou ao meu pai, permitindo a ele, o planejamento de novas iniciativas, já que não possuía dívidas. Meus dois irmãos mais velhos, que ainda eram solteiros, estavam decididos que deveriam partir de Espinosa, pois diante da diminuição das atividades da fazenda, necessitavam refazer as suas vidas. Montes Claros, era uma forte opção para ambos, embora não conhecessem a região. Contando com o apoio principalmente da minha mãe, que pensava da mesma forma que eles, acabaram por viajarem a Montes Claros, inicialmente, para um passeio de estudo de possibilidades de trabalho. Ocorreu entretanto, que a viagem inicial de passeio e de estudo de possibilidades, após uns 15 dias de estada na cidade, resultaram em possibilidades de negócio, pois resolveram, com o apoio do meu pai, fazerem o arrendamento de uma propriedade rural situada bem próxima da cidade. Para o fechamento do negócio, houve a necessidade da presença do meu pai em Montes claros, pois na verdade, meu pai era o braço financeiro do negócio, tinha que ter o seu aval e concordância. Durante sua presença em Montes Claros, onde permaneceu por mais de vinte dias, meu pai gostou tanto da região que não conhecia, que quando do seu retorno para Espinosa, estava tão entusiasmado com tudo que vira, que pensava e era levado em conta, a possibilidade da venda da sua fazenda em Espinosa para compra de novas terras na região de Montes Claros. Naturalmente, que com a presença dos seus dois filhos mais velhos na região de Montes Claros, o tráfico de informações sobre a própria região era mais intenso, afinal, meus irmãos passaram também à condição de olheiro do meu pai a procura por negócios de oportunidade. Passados mais uns dois anos, os negócios dos meus irmãos caminhavam bem na nova região, lá na minha casa no município de Espinosa, já não se falava noutra coisa que não fosse, a nossa mudança para Montes Claros. Meu pai, que já não era tão moço, embora gozando de boa saúde, resistia a venda da sua fazenda em Espinosa, especialmente depois que as chuvas retornaram a região, que os pastos foram recuperados, e que seu rebanho, voltava a crescer novamente. Alegava especialmente, que depois de tantos custos e de tanto trabalho na organização da fazenda, que prova-velmente, não mantinha mais predisposição para recomeçar tudo de novo, pois já começava a se sentir cansado. Foi assim, que depois de mais algum tempo, que meus irmãos acabaram por descobrir um bom negócio na região próxima a Montes Claros. Lhes fora ofertado a venda de uma fazenda que se encaixava nos moldes e exigências do meu pai, e que ele naturalmente, pudesse pagar. De volta a Montes Claros, meu pai gostou muito do imóvel a venda, enxergava amplas possibilidades de expansão do seus negócios com gado. O negócio da compra da nova fazenda fora iniciado condicionalmente, sendo firmado com o preposto vendedor, que meu pai concordava em pagar o preço solicitado pelo imóvel, más que o fechamento final do negócio, iria depender do seu retorno a Espinosa, e da concretização da venda da sua fazenda no mesmo MUnicípio, uma vez que já que possuía comprador em vista. Como meu pai era um homem caprichoso, sua fazenda quase toda formada e muito organizada, a sua venda foi facilitada, e era mesmo, até disputada pelo menos, por três fazendeiros abastados da região. O negócio foi todo entabulado, tanto com relação a compra da fazenda em Montes Claros, quanto da venda da Fazenda de Espinosa, pois quando os negócios se encaminham para dar certo, nos parece, que tudo e todos, contribuem de alguma forma, para a sua concretização. E foi assim, que passados mais ou menos um mês do início dos negócios, que as respectivas transações estavam concluídas, assim como, escrituras de venda e compra dos imóveis, respectivamente assinados e registrados – negócios fechados. O rebanho bovino do meu pai, em decorrência da seca dos dois anos anteriores, havia diminuído muito, devido a venda e da grande mortandade, o gado que havia remanescido, estava muito valorizado, e não foi difícil que se conseguisse comprador para cem por cento do rebanho, pois a distância de Espinosa a Montes Claros era longa, e não dispunhamos de meios para transportá-lo. . Foi assim, que no mês de Junho do ano da graça do nosso senhor Jesus cristo de 1913, que chegamos para a nossa nova fazenda no Município de Montes Claros. Na realização da venda da nossa fazenda de Espinosa, foi acertado com o comprador, que uma determinada área de mais ou menos 30 hectares de terras, que não prejudicava de forma nenhuma o manejo da fazenda, não seria objeto da venda, pois esta área, onde localizava a residência do Seu Eduardo, haveria de ser doada, como fora, ao mesmo e sua família. O nosso amigo, e velho vaqueiro, Zé de Tiririca, nos acompanhou para a nova fazenda, pois ele, mais do ninguém, gostava de desafios e de novas oportunidades. Ao tomarmos posse na nova fazenda do Município de Montes Claros, embora fosse uma excelente fazenda, ela tinha os seus pastos bastante degradados, muitas capoeiras, portanto, baixa capacidade inicial de suporte, cujos pastos, haveriam de ser recuperados aos poucos, pois afinal, somavam mais de 1.200 hectares. Iniciamos na fazenda, com a compra de uma determinada quantidade de gado suportado pelas pastagens existentes. Como nunca fui afeito ao trabalho braçal, gostava mesmo, era da lida com cavalos e gado, me senti meio sem ter o que fazer na fazenda, pois o rebanho com o qual reiniciamos nossa exploração em Montes Claros, eram suficientes ao manejo pelo Zé de Tiririca, ao qual, meu pai, fazia questão de prestigiar. Durante algum tempo, ainda continuei como auxiliar do Zé, entretanto achava, que não mais havia necessidade da minha presença na fazenda, além disso, tinha outros irmãos mais novos, que podiam perfeitamente, auxiliarem ao meu pai. Foi assim, que permaneci durante algum tempo meio desafirmado, deslocando por vezes, da fazenda do meu pai para a fazenda arrendada pelos meus irmãos mais velhos. Dos meus dois irmãos mais velhos, o primogênito da família, havia se casado há pouco tempo com a filha de um fazendeiro que possuia muitaS terras na região próxima a Montes Claros. Vivia recentemente uma verdadeira trança, morando por vezes na fazenda do meu pai, e noutras vezes na fazenda dos meus irmaõs. Foi assim, que acabei por conhecer e namorar uma das duas irmãs mais novas da minha cunhada. O início do namoro foi inevitável, e não se demorou muito, estávamos noivos e de casamento marcado. Como estava de casamento marcado, precisava de um trabalho fixo. Inicialmente, pensei em entrar para a sociedade com meus irmãos, entretanto, como era bem letrado e possuía uma caligrafia bonita, surgiu a oportunidade de trabalhar em um cartório de títulos e documentos da cidade de Montes Claros. Veio a data do casamento, e ele foi realizado, e assim durante alguns anos, permaneci como escriturário do referido cartório de títulos e documentos. Com o passar dos anos, nos vieram os primeiros filhos, inicialmente, todos homens, exatamente, como acontecera com meus pais. Aos poucos, fui assumindo funções cada cada vez mais importantes no cartório. Aos feriados e finais de semana, me deslocava ora para a fazenda do meu pai, ora para a fazenda do meu sogro. A lida com gado estava no meu sangue e não conseguia me manter afastado dela. Tão logo tive condições, acabei por arrendar pequena fazenda de um eis escravo nas imediações de Montes Claros, onde iniciei pequena criação de gado. Meu sogro, um fazendeiro abastado, que possuía muitas terras, sabedor da minha paixão por fazendas e pela criação de gado, chamou a mim e ao meu irmão na sede da fazenda dele situada ao noroeste da cidade de Montes Claros. Lá na fazenda, logo após o almoço da família, fomos convidados por ele, para que nos assentássemos na sala de fora pois gostaria de nos falar em particular. Iniciando a sua fala, nos disse, que já estava bastante idoso, que possuía muitas terras, algumas delas, praticamente sem exploração, que consultando a sua esposa, achou por bem, sem que prejudicasse aos seus outros filhos, doar parte delas para nós dois. Disse nos, que como era do nosso conhecimento, possuía uma gleba de terras com área de aproximadamente 440 alqueires geométricos numa região muito nobre do município de Montes Claros, situada no vale do verde grande, distando cerca de 60 km da cidade. Que de comum acordo com a sua esposa, estavam dispostos a nos doar o referido imóvel, para que pudéssemos explorá-lo em sociedade, ou mesmo, dividi-lo, pois caberia a cada um de nós, uma boa parcela de terras com 220 alqueires. Naturalmente, que sendo genro, sabia da existência das terras, más nunca havia me deslocado até elas. Meu irmão mais velho, que estava muito bem financeiramente e que já possuía uma fazenda arrendada juntamente com nosso outro irmão, em nome de nós dois, agradeceu ao nosso sogro pela confiança em nós depositada, dizendo- lhe, que o agradecia com muita gratidão, más que da parte dele, se caso não fosse da sua objeção, que inicialmente, não mudaria para a nova fazenda, pois tinha compromissos e responsabilidades com a fazenda arrendada, que o impedia de se afastar de Montes Claros, más que, ao mesmo tempo lhe prometia, que cuidaria da parte que lhe coubesse, principalmente formando pastagens e construindo uma casa sede. Da minha parte, a doação me balançou, sempre tive vontade de ter a minha própria fazenda, esta oportunidade era única, e eu não a deixaria passar por mim por nada. Conversei muito com a minha esposa, e afinal decidimos, que deveríamos entregar de volta a fazendinha que eu havia arrendado, sair do emprego do cartório, e nos mudarmos com toda a família para a fazenda. Meu pai continuou na fazenda dele, o que não lhe faltava, era gente para trabalhar, aliás, além do velho Zé de Tiririca, contava com meus irmãos solteiros, afinal, éramos nove irmãos, e somente tres deles casados até aquele momento. O ano era de 1923, acabava de nascer o meu sexto filho, que era do sexo masculino. Da minha parte, uma vez tomado as decisões necessárias, tratei de organizar a nossa mudança para a fazenda. Como a fazenda ainda não havia sido dividida, fiz um acordo com o meu irmão, e a precária sede de fazenda existente ficou comigo. Uma vez organizados, a mudança foi realizada, não tinha muito o que carregar mesmo, levava comigo, a minha esposa e meus primeiros seis filhos. A fazenda situada no vale do Rio verde, possuía solos de baixada de excelente qualidade, muito rica em recursos hídricos, lagoas, brejos, córregos, e uma mata nativa exuberante. O clima era fabuloso, valendo aquela velha máxima, que dizia; que nestas terras, em se plantando tudo dá. Cumulativamente, comandei toda a fazenda durante muitos anos, pois além das terras que me couberam, administrei também a parcela que coubera a o meu irmão. Uma vez instalados definitivamente na fazenda, o desafio agora era enorme, meu dinheiro era tão pouco, para uma multiplicidade de gastos tão grandes. A fazenda que possuía um pouco de capim, estava quase toda por formar. As cercas existentes, sómente cercavam o perímetro externo da fazenda. As divisões internas, ou repartimentos, teriam que ser todos construídos. Os currais, necessitavam de ampliação e reparos. Não fora por todos estes motivos, que iria me esmorecer. Arregacei as mangas da minha camisa, e comecei a trabalhar imediatamente. Por sorte, a fazenda, estava situada próximo a um povoado muito conhecido do Município, que naquela época tinha muita gente, e não faltavam pessoas dispostas ao trabalho. Foi assim durante muitos anos, contava com a minha própria mão de obra, inclusive, dos meus filhos na medida em que iam crescendo, e da mão de obra de diversos trabalhadores do povoado vizinho. Com o passar do tempo, de comum acordo com o meu irmão, fizemos as cercas da nossa divisa. O desafio agora, seria a construção das cercas de divisão das pastagens, na medida em que os pastos fossem sendo formados. Deus nos abençoava sempre, tudo que fazíamos dava certo. Toda a minha vida, sempre tive muita fé, e nunca temi os desafios, por mais difíceis que eles se apresentassem, pois o meu desafio, seria colocar as duas fazendas em produção. Fomos formando as pastagens das duas fazendas devagarzinho, como por milagre, sempre sobrava um pouco de dinheiro para a comprar novas cabeças de gado. Procurei diversificar as minhas atividades, na minha fazenda, o ovo de uma galinha era tão valorizado quanto um boi gordo, ou mesmo, quanto um cevado, ou mesmo, quanto a uma saca de feijão. Sempre acreditei, que nada acontece por obra do acaso, para tudo, existiria uma razão de ser, nenhuma folha de uma árvore cairia sobre o chão, caso não exista uma razão lógica. Levava o trabalho com seriedade, assim como, sempre tratei as pessoas que trabalhavam comigo com dignidade. A fazenda era grande sim, os desafios enormes, pois além da minha gleba, cuidava da ao mesmo tempo da parte do meu irmão. Assim, os desafios iam sendo vencidos aos poucos. Os meios de transporte daquela época eram precarios, carros, somente existiam na cidade. Toda a nossa locomoção, eram feitos sobre lombos dos burros e cavalos, e o transporte da produção, era transportado em carros de bois do tipo saboeiros, tracionados por uma ou duas juntas de bois, nas distâncias mais longas, os transportes eram realizados sobre o lombo de burros cargueiros, em bruacas e cangalhas. Construímos sólidas amizades na região, onde tínhamos o respeito da população. Todos os anos , participávamos dos festejos do santo padroeiro do povoado vizinho, que duravam três dias. A minha família crescia, assim como meu pai, eu e minha esposa, tivemos também nove filhos, sendo seis homens e três mulheres. A nossa vida aos poucos, caminhava para a normalidade, o aperto financeiro dos primeiros anos, já não era tão grande. A fazenda de excelente qualidade, produzia com abundância tudo que nela fosse plantado, o rebanho crescia aos poucos, e já somavam 220 cabeças. O ano agora era de 1936, a minha idade já era de 44 anos, um ano abençoado com muitas chuvas. As lavouras de milho, haviam nos rendido uma colheita de mais de 60 carros, apanhei diversos carros de bois com abóboras que haviam sido plantadas em um roçado, o quarto da sala da minha residência, estava repleto de sacas de feijão, os brejos da fazenda, tinham sido generosos na produção de arroz, na minha pocilga, contavam mais de 30 porcos na ceva, tínhamos uma certa fartura. Por razões financeiras, sempre me deslocava até a cidade de Montes Claros, onde permanecia por dois ou três dias, ou mes-mo, por mais dias, quando me deslocava até a fazenda do meu pai ou mesmo, dos meus irmãos. Numa destas ocasiões, quando encaminhava um negócio de financiamento de custeio pecuário num dos agentes financeiro da cidade, permaneci por lá, por uns três ou quatro dias. O deslocamento, fazenda/Montes Claros e vice-versa, era sempre feito sobre lom-bos de cavalos ou mesmo, de burros, e a distância a ser percorrida, nos tomava pelo menos 4 dias, considerados a ida e volta. O dia era de quinta feira, tão logo, tinha concluídos meus negócios, tratei-me do retorno para a fazenda. Na viajem de regresso, a distância a ser percorrida, era sempre dividida em duas marchas, com hospedagem e pernoite, numa pensão de um povoado do roteiro da estrada. Na sexta feira, logo bem cedinho, arriei a minha mula, arrumei os alforjes na sela, e retomei a minha viajem. Como a minha mula, tinha um bom passo viageiro, andava de curto ao largo com a mesma desenvoltura, a minha viajem rendia muito, por este motivo, cheguei na minha fazenda ainda para o almoço, já por volta das 15,30 horas. Após o almoço, não repousei, quis me inteirar com a mina esposa, e posteriormente com o meu encarregado de serviços, como andavam os diversos serviços que estávamos tocando, tanto na minha fazenda, como da fazenda do meu irmão. O sol já estava bem baixo, pensei comigo, que estava tudo em ordem, que não haveria necessidade de selar cavalo para andar na fazenda naquele dia. Permaneci na sede da fazenda por ali mesmo, conversava com minha esposa e com meus filhos mais velhos sobre a viajem, que o financiamento de custeio pecuário que pretendia junto ao banco, tinha dado tudo certo, que já tinha assinado toda a documentação, que daquele dia em diante, a gente já dispunha de recursos para começar a limpeza dos pastos, açeiro das cercas e sua reforma. O sol estava baixinho, o horário era por volta das 17,30 horas, agora andava pelo terreiro da casa sede.Sempre gostei muito do feijão de cordas, como o meu quintal era bem grande e tinha terreno de sobra, acabei por plantar um pouco de milho prá gente comer verde, e nas covas do próprio milho, havia também plantado também um pouco do feijão de cordas. Como as terras eram muito boas e o quintal se estendia até as cercas do curra onde havia estêrco de gado, a lavoura estava viçosa e fechada, e por entre a cultura do milho em consórcio com feijão de cordas, já começava a pintar algumas vagens maduras. Por um impulso qualquer, que somente a divina providência poderia explicar, resolvi adentrar no meio da lavoura para catar algumas vagens maduras. Não andei muito, o feijão estava muito fechado e embaraçado, adentrei por uns 10 ou 15 metros no máximo. Sabia que lá pelo meio da lavoura existiam alguns tocos velhos de árvores derrubadas a machado, más não me atentei para o perigo. Foi quando ao me aproximar de um deles, que senti um bate e uma fisgada na minha perna, ao mesmo tempo que observei um movimento tremulado circular de alguns pés de feijão. Como fui criado na roça desde criança, logo percebi pelo ardor e dor local na perna, que eu havia sido picado por uma cobra, e que muito embora não a tivesse avistado, sabia intuitivamente, que ela permanecia em condição de ataque para me desferir um novo bote. Procurrei me afastar do local, tropeçava nas cordas da latada do feijão, e lá mesmo de onde estava, gritei por socorro para o meu pessoal, pois sentia que as minhas vistas começavam a se embaralhar. Como já era tardezinha, meus trabalhadores começavam a chegar em casa para o jantar. Ao ouvir o meu chamado de socorro, alguns deles correram na minha direção, me amparando e me conduzindo até sentar num banco de madeira da sala de fora da minha casa. A minha esposa apressadamente tentou me socorrer, ela tinha boas esperriêncais com medicamentos caseiros, tratou imediatamente, de lavar o local afetado com água e sabão e colocou no local, uma papa de fgarinha de mandioca com fumo, ao mesmo tempo, em que também preparou-me, uma beberagem de cachaça com alho. Mesmo vivendo momentos de dor intensa, pude ouvir pelo comentário das pessoas que permaneciam no terreiro da minha casa, que haviam matado a serpente, e que a cobra em questão, era uma Jaracuçu. Naquela época, não haviam carros por lá, os meios do socorro eram precaríssimos, como minha esposa observava, que a minha situação era de muita gravidade, ordenou a um dos nossos camaradas, que selasse um dos nossos melhores cavalos, e viajasse a Montes Claros urgentemente, que trouxesse com ele, o médico da nossa confiança. O horário já deveria ser por volta das 19 horas. A minha perna apresentava intenso inchaço , muito rubor , uma dor viva local intensa, observava, que já havia algum sangramento no ferimento, o meu estado geral era de um mal estar sem precedentes. Me retiraram do banco da sala onde recebi os primeiros socorros, e me levaram para o meu quarto. Deitado na cama, o estado de dor era tamanha, que rolava de um canto para outro sem parar. Apesar de tudo, permanecia consciente. Passado as horas, os remédios caseiros e paliativos que havia tomado não tinham a força da eficácia contra a força do veneno da peçonha. Na medida que o tempo passava, sentia que minha situação piorava, Além do inchaço local, do rubor do tecido adjacente, observei, a presença de ligeiro sangramento no meu ouvido, depois na gengiva, e numa fase posterior, no canto dos olhos. Sentia-me, num estado febril muito grande, boca seca, dor intensa nos rins. Por volta das três horas da manhã, sentia-me desfalecido, só enxergava vultos, meu coração, lutava bravamente para manter o meu corpo vivo. Como a audição é o ultimo dos cinco sentidos a entrar em falência, ainda pude ouvir muito baixinho, as vozes e choro de alguns dos meus filhos, da lamúria dos meus agregados, da presença de alguns vizinhos, todos sabedores da gravidade da minha situação, aglomeravam na minha casa, num ultimo ato solidariedade humana...........
Advertência : Do conteúdo da presente obra, qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas, fatos presentes ou passados, assim como, dos locais e lugarejos citados, ou mesmo, do nome dos personagens, tudo terá sido mera coincidência, toda a narrativa, é produção intelectual e intuitiva do autor.
MEMÓRIAS DE UM MIGRANTE – MONTES CLAROS, MG, 12/12/2009.
João Carlos de Oliveira
E-mail: zoo.animais@hotmail.com
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