Grande coisa

Vera Ione Molina Silva

O acidente geográfico que mais inquietava minha infância era um inatingível cerro azul que eu visualizava quando assistia o gado ser embretado para o banho. (Havia também um rio, mas sobre aquele rio eu cruzava de automóvel, através de uma ponte, então ele era mais real para mim). Um misto de mugidos, balidos e cheiros de substâncias usadas para a assepsia e cura dos animais. E aquela visão. E, junto com ela, fragmentos de histórias de furnas, de uma certa princesa moura, de uma temível lagartixa, de homens que por lá se perdiam.
Tudo era distante. Num outro reino. Inatingível.
Deixei esta terra por um longo período porque ninguém reclamava minha presença. Um dia voltei para acertar contas com as minhas perdas, mostrar meus troféus e me vi cruzando pontes, me vi tão próxima do cerro que ele perdera a tonalidade azul celeste, tinha a cor dos campos planos.
Agora eu não assistia, no seu serviço, aqueles homens tão distantes a quem eu ouvia chamarem de peões, era eu quem estava lá, fazendo parte de um grupo que cercava um grande ator premiado como coadjuvante num filme onde, a meu ver, ele era o personagem principal. E eu descia de um ônibus refrigerado (quando criança um banho de sanga me bastava) para me fotografar com essa comitiva, tendo ao fundo o Cerro do Jarau.
Cerro do Jarau também era o nome do excelente filme dirigido por Beto Sousa e passado numa tela em praça pública na cidade de Quarai. Grande coisa, Quarai! Era assim que desfazíamos, em criança, de quem se exibia: Grande coisa! Pois foi naquela pequena grande coisa que me vi cruzando uma nova ponte, dessa vez sobre um pequeno rio devastado pela seca. E eu atravessava a pé, de mãos dadas firmemente com alguém que pretendo acompanhar pelo resto dos meus dias.
Ultrapassamos o limite territorial sem que nos exigissem um só documento, uma explicação e cortamos ruas para nos incorporarmos a um cenário composto de uma outra arquitetura, de um outro tipo humano, de uma outra cultura. As casas que sempre estiveram nos meus devaneios e sonhos, o outro idioma que me é tão familiar, os rádios ligados em estações que nunca deixaram de povoar minhas lembranças e os bares de mesas nas calçadas e os sabores dos chivitos e das cervejas amargas e os companheiros de viagem retornando com sacolas do Free Shop, enquanto diziam : baratíssimo, bem como eu queria.
E eu, imóvel, saboreando a grande coisa que é viver na fronteira.

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