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O quarto amarelo
Vera Ione Molina

Carlos me convidou para visitar a avó dele. Lá estavam alguns tios e primos. Aquele tio que
perdeu a fortuna, com as filhas. São três meninas, mas a que nos interessa é a do meio, Martinha. Ela não brincava com as outras crianças e não tirava os olhos de mim, como se estivesse com raiva ou tramasse alguma coisa. Quando fomos embora, me senti aliviada. Carlos ficou aborrecido. Onde se viu implicar com uma criança de oito anos? Era o jeito dela. Sempre fora quieta. Devia ser a gravidez que me perturbava.
Casamos. Não sabia para qual das estâncias de meu sogro iríamos. De manhã cedo deixamos o hotel e pegamos a estrada.
De longe avistei um enorme umbu, próximo à cerca de pedra. Uma casa amarela, escurecida pelo tempo. Fiz o possível para esconder a decepção.
— Bem-vinda à Estância Santa Marta — brincou Carlos, enquanto abria a porta da frente.
Ao ouvir o nome senti um frio. Não era devido ao clima, vinha do interior da casa. Perguntei se aquela era a estância do tio Luís. Ele fechou o sorriso. Fora muito bem paga pelo pai dele.
A casa brilhava de cera no chão e nos móveis. Nosso quarto era moderno. Os banheiros, reformados. Os presentes, dispostos nos lugares. O aparador de madeira escura transbordava de louças e cristais. Esqueci a primeira impressão e fui conhecer a casa. Guardei meus objetos pessoais. À noite, tudo estava nos lugares. Jantamos e fomos dormir cedo. No dia seguinte eu iria ao antigo quarto das crianças, precisava planejar a nova decoração, seria o quarto do bebê.
Da janela, uma paisagem branca de geada. Os passarinhos que pousavam sobre a cerca pareciam endurecer ao contato com o vento. Um peão embarracado num poncho azul-marinho tocava as vacas leiteiras para o pasto, a boca soltando um vapor espesso, seguido por um cachorro ovelheiro de pêlos espichados.
A cozinheira avisou que o café estava na mesa. O patrão saíra cedo. Pedi a chave do quarto amarelo. Estranhou meu interesse pelo quarto das crianças, como ela chamava. Me serviu trêmula. Não a levasse a mal, sentia muita falta das meninas. Retirou-se às pressas para a cozinha. Não entrei naquele quarto por dias. No início, o bebê dormiria ao meu lado.
Aos oito meses de gestação fui à cidade e comprei o enxoval e a mobília para a criança. Permaneci dois meses na cidade. Só voltamos para a estância quando Laurinha completou um mês.
Uma tarde pedi ajuda ao caseiro. Ele retirou os móveis antigos e montou a mobília de Laurinha. Coloquei cortinas, colcha, dispus os brinquedos nas prateleiras. Era quase noite quando vislumbrei aquela boneca num canto, o tamanho de uma criança de quatro ou cinco anos, olhar triste. Deixei o lugar às pressas, a mesma sensação de frio da primeira vez que a porta da casa se abriu para mim. Chamei a cozinheira. Ela pediu que eu guardasse a Lilly por uns tempos até a oportunidade de devolver à Martinha. Por mim estava bem.
À hora de dormir, estava cansada e nervosa para cuidar de um bebê que chorava muito à noite. Fui para a cama com intenção de não abrir os olhos até o outro dia. Carlos fora à cidade e fiquei sozinha dentro de casa. Escutei o choro de Laurinha e um uivo triste que vinha do pátio calçado, onde estavam os três balanços de corda e madeira. A menina parou de chorar e, em seguida, a língua revolvia a chupeta. Suspirou fundo e dormiu, dando a impressão de que alguém a acalmara.
Acordei, o sol alto, movimento na cozinha. Olhei para o chão. Os chinelos, bicos virados para a cama, do jeito que ficaram ao me deitar. Laurinha dormia serena.
                                                                       1
Carlos chegou à tardinha e não para o almoço. Abatido, rosto escuro de barba por fazer. Acontecera algo muito triste. Eu lembrava da Martinha? Ele voltava do enterro dela. Há meses pedia para o pai buscar a boneca que ela esquecera na fazenda. O pai e a mãe tentavam convencê-la de que não era mais possível, aquele lugar já não lhes pertencia. Ela ameaçava vir a pé, ninguém acreditava. De madrugada, as irmãs sentiram falta dela. Os pais puseram todos os amigos a campo. Uma das irmãs pediu que seguissem o caminho da Santa Marta. Clareava o dia quando ela foi encontrada morta na porteira; próxima a ela, a boneca, coberta de terra, a roupa em frangalhos. O médico desconhece a causa da morte da
menina.
Tomei a mão de Carlos e o levei até o quarto amarelo. Abri a porta e não encontramos a boneca onde deveria estar, nem em nenhum outro lugar da casa.

       


















                                                                                                                           


Biografia:
Vera Ione nasceu em Uruguaiana, onde é presidente da Academia Uruguaianense de Letras. Mudou-se para Porto Alegre nos anos 70 e graduou-se em Letras na PUC. Em 1994, concluiu o curso de pós-graduação em Teoria da Literatura na PUC, RS. É professora de inglês e trabalha com orientação a escritores via Internet, revisão e tradução de textos literários e trabalhos acadêmicos. Teve livros infantis, livros de contos e novelas publicados, além de integrar várias antologias de poesia e contos. Foi finalista do Concurso Nacional de Literatura Infantil João de Barro, da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, MG, 1983; Concurso Estadual Escreve Professor, promovido pelo CPERS Sindicato, 1989; Concurso Binacional MOVIARTE 90, da Prefeitura Municipal de Pelotas e Canelones, Uruguai; Prêmio Guimarães Rosa, Rádio France Internationale, Paris, França, 2001 e Concurso Nacional Alpas de Romance, Cruz Alta, RS, 2001.
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