Login
E-mail
Senha
|Esqueceu a senha?|

  Editora


www.komedi.com.br
tel.:(19)3234.4864
 
  Texto selecionado
O peso da idade
Lembranças
Paulo Valença

Resumo:
No automóvel com a filha, o idoso vendo o prédio onde trabalhara se lembra do passado e, entendendo-lhe essa c ontemplação, ela de repente sente uma "coisa"...




1
Hoje é a loja que vende blusas, calças, bermudas... Passou, nada mais daquele tempo. Parece-lhe tudo ser um filme assistido, um sonho, uma mentira. Ah, o tempo que tudo acaba, transforma em sua marcha implacável! A gente começa a morrer quando vai perdendo as pessoas mais próximas, os lugares conhecidos, na seqüência natural da própria existência. E sente o desanimo que de vez em quando assim de repente lhe chega, desanimando-o. Mas, tudo passa e nos restam as lembranças, que com o decorrer das horas vão se modificando, numa metamorfose de outras cores. Sim, naquele prédio de fachada completamente alterada com os azulejos, no primeiro andar trabalhara, fora o funcionário chefe da seção de desenhos. Magrinho. Responsável. Introvertido. Vivendo o seu próprio mundo...
- Papai a gente já pode ir?
Desperta com a indagação da filha ao lado, com as mãos sobre a direção do automóvel, fitando-o, com o sorriso de covinhas no rosto moreno, já maduro, de traços corretos, parecida com a mãe, quando tinha a sua idade. E, também sorri, desculpando-se:
- Vamos Nete. Perdoe-me por interromper sua vida. Sei que você tem seus compromissos...
- Que nada papai! Uma voltinha que eu dou com o senhor não atrapalha em nada.
O sorriso humilde dele no rosto mais cheio, gordo, marcado pelas rugas da idade. A cabeleira alva. O olhar tristonho. A voz cansada. Ah, papai, como a vida nos maltrata! Sente uma coisa... Não, agora não! E liga o carro, afastando-se. Precisa se apressar antes que se depare com um dos “engarrafamentos” tão normais no fim da tarde.
O idoso volta o rosto ao vidro da porta, acompanhando o que vai ficando para trás. Edifícios. Casas comerciais. Calçadas com pedestres caminhando. Automóveis. Motos. A praça de bancos vazios. A mocinha de calças compridas, esguia, graciosa cruzando-a. Tudo o que faz parte de um mundo diferente, atual, moderno. Naquela época...
- Papai o senhor trabalhou ali onde é hoje a loja de confecção?
Voltando-se, ele responde:
- Trabalhei. Na época era muito novo.
A pausa. Compreensiva, entende-o e espera.
- Tantos anos decorridos...
Se chegar à idade do pai, ficará também assim, se lembrando, saudosista? Mas, o que resta aos velhos se não se acolherem às recordações? Desatualizados, descriminados, tornam-se seres diferentes, à parte. Sim, essa é que é a cruel realidade.
Avança. E a voz do pai (está mais baixa, cansada?) prossegue:
- Chega-se a uma idade, filha, de se ficar preso ao passado. Não sei se com os demais velhos isso também acontece, mas...
- Sei papai. Entendo.
Silenciam. A avenida vai se tornando mais movimentada, na seqüência natural dos começos da noite. As luzes se acendem nos postes das calçadas, lojas e os edifícios.
Nete sente de novo o coração “apertado”... Sensível entende o pai, sabe o quanto o peso da idade lhe afeta, tornando-o o saudosista, inconformado com o presente, prisioneiro de outrora e, mantendo a atenção ao vidro sobre a direção tenta ser natural, despertar mais uma vez o pai ao presente:
- É o senhor tem razão, mas a vida continua e a gente tem de encarar tudo com realismo.
- Sei, sei.
O automóvel segue em frente. Outros carros então se apossam da avenida, enchendo-a de buzinas se sons barulhentos de motos.
- Puxa vida! Como isso aqui ficou assim de repente lotado?
Então buzina, expandindo o nervosismo diante da cena que presencia e que, como é natural, a retardará no regresso à casa, onde o deixará o pai que agora cabeceia, cochilando. Ausentando-se de tudo.
Até quando o trânsito terá esses “engarrafamentos” sem uma solução?
- Puta que pariu!
Então tentando se conter, “relaxar”, liga o som vizinho à direção e fica ouvindo a música orquestrada, antiga, do tempo em que o pai era rapazinho, sem ver o mundo moderno, difícil de encarar.
- Muito difícil.
Respira em desabafo do que presencia e sente e, se voltando fita o rosto do velho, caído sobre o peito largo. A cabeça alva. O nariz adunco. Os lábios finos, cerrados. A respiração compassada. E novamente sente que...
Desvia os olhos, parando-os outra vez no vidro à frente.
Não demora, os veículos se movem mais livres com o trânsito que melhora, desafogando-o.
- Ainda bem.
Já então com a luz dos faróis acesas, a noite se destacando tudo envolve num imenso abraço.

2
Na varanda do primeiro andar a idosa está na cadeira de balanço. Mais gorda, mais quieta, cochilando?
- Mamãe está ali no terraço, esperando a gente...
Já desperto o velho fita a esposa e (a voz está mesmo mais baixa, cansada) responde:
- Pobre da Madalena. Está acabada!
Silenciam. O carro se avizinha do portão Te após o transpor, os reentrega ao pátio e à escada que os conduz ao terraço, com a mulher lhes acompanhando os movimentos.
- Obrigado Nete.
- Ora papai, não foi nada!
Ele abra a porta e em passos lentos se move em sentido dos degraus.
Sensibilizada, Nete segue-lhe a figura mais gorda, pesada e lenta. O que é a velhice... Nervosa abre a porta e salta.
- Já estava preocupada...
- Você também Madalena!
Entendendo-os, a filha sorri e, devagarzinho sobe os estreitos degraus.




























Biografia:
Paulo Valença é autor paraibano premiado nacionalmente com seus livros de contos e romances; Pertence a várias Instituições Literárias; Consta de diversos sites; Vive em Recife/PE.
Número de vezes que este texto foi lido: 61661


Outros títulos do mesmo autor

Contos A INSINUAÇÃO DO JUSTO Paulo Valença
Contos O GRITO PERDIDO Paulo Valença
Contos O silêncio cúmplice Paulo Valença
Contos Mundo dos mortos Paulo Valença
Contos Vítimas noturnas Paulo Valença
Contos Mistérios da madrugada Paulo Valença
Contos CAMINHOS QUE NOS APROXIMA Paulo Valença
Contos NÃO ABRA A PORTA Paulo Valença
Contos O ABRAÇO DE ANA PAULA Paulo Valença
Contos A VEZ DA HUMILHAÇÃO Paulo Valença

Páginas: Primeira Anterior Próxima Última

Publicações de número 21 até 30 de um total de 50.


escrita@komedi.com.br © 2025
 
  Textos mais lidos
MEDUSA - Lívia Santana 62500 Visitas
RODOVIA RÉGIS BITTENCOURT - BR 116 - Arnaldo Agria Huss 62489 Visitas
Hoje - Waly Salomão (in memorian) 62489 Visitas
Parada para Pensar - Nilton Salvador 62470 Visitas
Entrega - Maria Julia pontes 62466 Visitas
O Velho - Luiz Paulo Santana 62452 Visitas
A Voz dos Poetas - R. Roldan-Roldan 62433 Visitas
PEQUENA LEOA - fernando barbosa 62431 Visitas
Conta Que Estou Ouvindo - J. Miguel 62429 Visitas
Mórbido - Maria Julia pontes 62424 Visitas

Páginas: Primeira Anterior Próxima Última