Login
E-mail
Senha
|Esqueceu a senha?|

  Editora


www.komedi.com.br
tel.:(19)3234.4864
 
  Texto selecionado
A mesma dúvida
Frutos da madrugada
Paulo Valença

Resumo:
O operário que caminha de retorno a casa e é assaltado; os encapuzados que matam o adolescente inocente e a mocinha que salta do carro após satisfazer os caprichos sexuais do homem idoso... São cenas ocorridas na madrugada, que vai passando, indiferente a tudo.

1
Madrugada.
O silêncio invade o bairro. As residências conjugadas. Algumas com as luzes acesas nos terracinhos ou na sala de entrada. Nenhum cachorro late, nem criança chora. Carros ou motos não passam. Sim, a paz reina. Por quanto tempo? Tão bom se fosse sempre assim... Mas, com a violência que campeia, com os assaltos, “queima-de-arquivo” entre os grupos traficantes, a luta de gangues... Melhor pensar positivo. Basta de encucações!
Apressa os passos. Adentra na rua estreita. Será que Luzia ainda está acordada, esperando-o?
- Só sossego quando você chega, Rui.
Ele procura lhe aquietar o espírito e, sorrindo, por lhe entender a preocupação, o zelo para que nada lhe suceda de ruim:
- Você também exagera criatura. Tenho de trabalhar, fazer serão, me “garantir” no emprego.
Ela silencia, também o compreendendo e, logo se deitam, adormecem.
Seus passos ecoam no calçamento enegrecido pelo tempo. A rua assim quieta, sem movimento de gente ou veículos, se lhe apresenta acolhedora, com um quê de poético... E, de repente, percebe que alguém caminha, aproxima-se. Mas... Vira-se e vê o sujeito alto, musculoso, de camisa branca, que lhe destaca o tronco musculoso. Careca. As feições negras, grosseiras. O que danado ele deseja? Aflito mais se apressa. Fugindo do que receia. Desse imprevisto ameaçador, contudo, o desconhecido logo o alcança e ele ouve a voz grossa, às costas, ameaçadora:
- A carteira, o relógio e o celular!
Trêmulo, pára, obedecendo.
- Vai lá cara. Não olhe pra trás.
O gigante então retrocede, dobra a esquina e desaparece de seus olhos perplexos.
Suado, se deixa ficar parado, sem ação, preso à perplexidade que o domina. E escuta o apito do guarda-noturno se avizinhando, na fingida proteção aos moradores do lugar.
- Esse guardinha de merda!
O apito se avizinha.
- E agora?
Indaga-se em voz baixinha e, devagar retorna a caminhar, sentindo-se o menor dos homens.

2
Violentos os dois encapuzados com os pés investem contra a porta que se escancarando, lhes permite a entrada.
Rápidos invadem a sala, adentram no corredor estreito e deste ao quarto ao lado.
O rapazinho sentado à frente do computador se volta perplexo e mal consegue indagar:
- O que... O que vocês querem?
O mais alto, forte dos encapuzados então inquire, gritando:
- Cadê o Marquinhos?
- Mas não é aqui não...
- Marquinhos o cagüeta não mora aqui?
As armas nas mãos. Ameaçadoras. O silêncio entre os três, que dura segundos e é quebrado pela voz grossa novamente:
- Tu não sabe onde mora o Marquinhos?
- Sei não. Vocês estão na casa errada.
Então a voz do comparsa, que é baixote, magrinho, se faz ouvir:
- Vamos embora mano. Tá tudo errado. Deve ser aí, na casa vizinha.
- Porra!
O adolescente trêmulo fita-os, sem acreditar no que presencia, vive e, já à porta de saída, os invasores se voltam e o que parece ser o chefe então ordena:
- Atira nele, Branquinho!
- Mas...
- Tu quer que ele sirva de testemunha, porra?
Os disparos. O corpo que se verga, caindo sobre o computador. Os passos que ferem o silêncio do corredor, a sala e ganham à rua, onde com brutalidade derrubam a porta da casa conjugada, em busca daquele que está “encomendado” à morte, no “queima-de-arquivo”. E se ouve novos disparos dentro da madrugada, enquanto nas residências circunvizinhas paira o silêncio cúmplice, que serve de proteção à sobrevivência dos moradores. Indiferente a tudo, a madrugada amadurece.

3
A adolescente salta do automóvel prateado-escuro, importado, último modelo.
- Tchau!
- Até, “gata!”.
Ela sorri e voltando-se, caminha, afastando-se, na calçada estreita, deserta.
O homem liga o carro e também se afasta, distanciando-se. Fugindo ao que presencia, ao que “curtiu” no motel em companhia da garota que agora solitária vai em sentido da casinha no alto, do morro defronte, subindo a escadaria de degraus encardidos pelo tempo e a sujeira do dia a dia dos moradores das laterais. Exausta inicia a subida. Na bolsa presa ao ombro esquerdo, a quantia gorda recebida pelo “barão”, que lhe pagou bem para que lhe satisfizesse em seus caprichos sexuais.
- Velho nojento!
Exclama, libertando a revolta, a humilhação de se saber usada, como um objeto de prazer.
- Um dia, estarei “noutra!”.
A esperança. Os dias diferentes. A vida que então lhe será outra. Diferente...
Galga os degraus, cumprindo a sina da cruel realidade.
A madrugada vai se dissipando ante a luz que desponta tímida, do novo dia.
- Mãe?
- Tou aqui no quarto.
A jovem empurra a porta encostada e adentra.
Na casa vizinha o galo canta, anunciando o dia que aos poucos desperta para agasalhar tudo.
Mãe e filha se defrontam e fogem o rosto de lado, na fingida indiferença ao que sabem, entendem e sofrem.
Batendo as asas o galo canta.
Pelo basculante da janelinha do quarto a luz se mostra como numa esperança.
A filha retira-se. Contida em sua própria realidade.
- Minha filhinha...
As lágrimas descem pelas faces envelhecidas prematuramente.
- Até quando terei de ver tudo isso?
Na cozinha os passos da outra de repente silenciam, como se também fossem impulsionados pela mesma dúvida.





Biografia:
Paulo Valença é autor paraibano premiado nacionalmente com seus livros de contos e romances; Pertence a várias Instituições Literárias; Consta de diversos sites; Vive em Recife/PE.
Número de vezes que este texto foi lido: 61677


Outros títulos do mesmo autor

Contos A INSINUAÇÃO DO JUSTO Paulo Valença
Contos O GRITO PERDIDO Paulo Valença
Contos O silêncio cúmplice Paulo Valença
Contos Mundo dos mortos Paulo Valença
Contos Vítimas noturnas Paulo Valença
Contos Mistérios da madrugada Paulo Valença
Contos CAMINHOS QUE NOS APROXIMA Paulo Valença
Contos NÃO ABRA A PORTA Paulo Valença
Contos O ABRAÇO DE ANA PAULA Paulo Valença
Contos A VEZ DA HUMILHAÇÃO Paulo Valença

Páginas: Primeira Anterior Próxima Última

Publicações de número 21 até 30 de um total de 50.


escrita@komedi.com.br © 2025
 
  Textos mais lidos
Hoje - Waly Salomão (in memorian) 62508 Visitas
MEDUSA - Lívia Santana 62502 Visitas
RODOVIA RÉGIS BITTENCOURT - BR 116 - Arnaldo Agria Huss 62492 Visitas
Entrega - Maria Julia pontes 62473 Visitas
Parada para Pensar - Nilton Salvador 62470 Visitas
O Velho - Luiz Paulo Santana 62460 Visitas
A Voz dos Poetas - R. Roldan-Roldan 62449 Visitas
Conta Que Estou Ouvindo - J. Miguel 62438 Visitas
PEQUENA LEOA - fernando barbosa 62431 Visitas
Mórbido - Maria Julia pontes 62427 Visitas

Páginas: Primeira Anterior Próxima Última