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Um trago sozinho à tarde
Fabiano Fernandes Garcez


     
     Ernest Fischer, em A necessidade da arte, afirma:
     Em todo poeta existe certa nostalgia de uma linguagem “mágica”, original.
Em O Bebedor de Auroras, mais novo trabalho do premiadíssimo poeta Tonho França nos brinda com magia, lírica íntima e sintaxe peculiar para resgatar do mundo contemporâneo, a cada dia repleto de surpresas, armadilhas e contradições, a humanidade perdida.
     A experiência individual do eu-poético, traz ao livro um tom de saudade e de desencanto, talvez contaminado pelo sentimento de desencaixe, como se pode notar em:
     aprendi a ver através das margaridas, mas não entendo mais o
                              [olhar dos homens
                                                  (...)
                                   (Tardes Artificiais)
ou:
                    A toda hora
                         A todo momento
                    Estou fora ou dentro?
                                   (Muros)
     A pena de Tonho corre sobre o fazer poético, em inúmeros poemas se encontram as palavras: versos, poesia e poeta, isto em consequência a reclusão no presente de eu-poético fragilizado pelas incertezas do futuro e as recordações do passado:
     Meus olhos, embora cansados,
     Pressentem o que não podem ver
     Aprenderam com o meu silêncio
     – rituais e rotinas de solidão –
     Meus instintos guardam a memória dos amores
     E de tudo o que me é caro e que meu coração...
     Já não suportaria.

     E de nada me adiantam, agora, lembranças,
     Penitências, alegrias ou arrependimentos
     ¬Estou recluso nos versos –
     E nas minhas dores, culpas
     Nos enfrentamentos em calmos e intermináveis silêncios
     Abertos, vulneráveis, extremamente íntimos
     E despidos de profecias, santos e defesas,

     Num encontro definitivo, conclusivo, coeso

     Do qual nem poeta, nem poesia, saem ilesos.
(Autorretrato (Diálogo do último dia))
     O sotaque poético de Tonho França permanece intacto, maneira singular de construção semântica, que aproveita fragmentos de versos anteriores para dar aos posteriores outras significações:
     As ladeiras de pedra
     Os homens a seguir o destino em procissão
     As ladeiras de pedra e os homens a segui
     As ladeiras de pedra tentam a remissão:
     Os homens de pedra a seguir vão,
     homens de pedra a seguir
     os homens, em vão.
                    (...)
                                   (Procissão)
     Na construção sintática, menos recorrente nesta obra é verdade, Tonho França também é mestre, trabalha duas orações coordenadas, porém com o segundo elemento do paralelismo inusitado:
     Meus olhos guardam o segredo da morte
     Suas mãos enrijecidas em pétalas de mármore-rosa
     Colhiam maças e notas musicais.
                                   (Canto III)
     Mares... destoa do resto do livro, o uso constante da mesma rima dá ao poema um ritmo arcaico, lembrando muito a poesia do século XIII e XIX:
     Os barcos deixam o cais,
     Aventuram-se e deixam o cais,
     Nas ondas inseguras, deixam o cais,
     Levando as desventuras, deixam o cais,
     Nas noites tão escuras, deixam o cais,
     Deslizam entre espumas e corais,
                    (...)
          Ainda na linguagem que o poeta utiliza para suas auroras o destaque fica por conta de Metrópole:
Pivete no semáforo
(vida?)
Vende balas
(perdidas)
          o uso dos parênteses dá ao poema outras possibilidades de interpretação, pode-se ler só os termos que estão fora deles, apenas os que estão dentro, ou ainda embaralhando-os.
     Em Vida vista pela janela (cenas de um tempo sem sentido), um dos melhores poemas do livro, Tonho nos ensina:
     É preciso nos lavar de nós mesmos (..)
     Em uma sociedade que é regida pelo olhar mercadológico, o olhar sensorial do eu-poético recai sobre os homens desumanizados, então resta, apenas, concordar com as palavras do poeta:
     Já aprendi a sobreviver nas esquinas definitivas
     E sinto como é pesada a franqueza
     Escrevo abaixo da “linha da pobreza”
     Dentro dos olhos e com muita dor
     Mas não me iludo, não me engano
     Meus versos são pelos seres humanos
     A poesia é para sermos humanos
                    (...)
                              (Dia a dia)

     A voz auscultada das páginas traz a entonação do entardecer, apesar do título constar como auroras, a palavra tarde é recorrente em muitos de seus versos, assim como ecos de um homem, em uma metrópole, solitário à espera de alguém para, quem sabe, um trago de poesia.
     O Bebedor de Auroras é um bálsamo contra a banalização do mundo contemporâneo que está cada vez mais e mais dezumano e alienante.



Biografia:
Fabiano Fernandes Garcez nasceu em 3 de abril de 1976, na cidade de São Paulo (SP). Formou-se em Letras, é professor de língua portuguesa, literatura e redação, participou das antologias: São Paulo Quatrocentona e Poemas que latem ao coração, é autor dos livros: Poesia se é que há e Diálogos que ainda restam.
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