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Mundo dos mortos
As recordações
Paulo Valença

Resumo:
A mulher abre os olhos e, liberta das recordações (tão repetidas!) do marido sorri. Coitado do José: preso ao passado, ao mundo dos mortos.

1
Colaço, o operador da máquina impressora desliga-a e calmo, dirige-se ao banheiro logo adiante, onde tomará o banho e trocará o macacão pela roupa com a qual chegou pela manhã. Em seguida, baterá o cartão e retornará a casa. Move-se pensativo. Ao lado, outros trabalhadores também cuidam de se trocar, para largarem.
Fora, a noite recém-nascida, agasalha as cessões conjugadas, o muro que limita os domínios da fábrica com a avenida, com veículos e pedestres cruzando-a. Saber que todos daqui entrarão de férias coletivas, que a situação da indústria não está bem, que...
- Melhor nem pensar.
Resume-se, em vez baixinha. Mas, como não pensar, se...
- Colaço!
Pára e se voltando reconhece o outro impressor, o negro Damião, que se avizinha.
- O boato por aí é de que com as férias coletivas, a gente vai ficar desempregada. Que é que você acha, colega?
Colaço então lhe é franco, realista:
- Também fico receoso. Tava até meditando sobre isso. O negócio anda feio, segundo o próprio Seu Giba, o chefe da produção.
- Pois é...
Silenciam e lado a lado devagar se encaminham ao banheiro, entregues às reflexões angustiantes, no temor à realidade, amarga realidade. E a sirene apita, anunciando o próximo turno, como se tudo corresse normalmente.
Adentram no banheiro, onde operários tomam banho e se vestem sem se fitarem, entregues ao mesmo silêncio.
A sirene prossegue o seu grito estridente, mais do que nunca irritante e prolongado.

2
O portão largo é aberto e o automóvel cinza passa, ganhando a avenida defronte.
O vigilante então fica vendo-o se distanciar e se perder ao subir e descer a inclinação adiante da avenida. O carro do doutor João, um dos acionistas da empresa. Um homem rico, cheio de prepotência. Mas se a firma fechar... A arrogância dele persistirá?
- Acho difícil.
O outro vigilante se avizinha:
- Como é vai ficar aí falando sozinho?
José desperta das reflexões e, irritado responde:
- Preto se fecha, porra!
Esse cai na risada, satisfeito em ter provocado a resposta do colega.
O portão é fechado e, apressados os dois retornam à portaria, onde se entregam à função de acompanhar a saída e entrada dos funcionários que chegam para o novo turno.
- Bate o cartão devagar!
Reclama José e, Preto, sorrindo:
- Esse pessoal não aprende. Terminam quebrando o relógio.
Homens e mulheres em silêncio passam, ganhando a avenida e encaminhando-se às seções nas quais exercem suas funções e, de repente, os dois guardas se vêm sozinhos e ficam ouvindo o som dos pneus e das buzinas dos veículos que transitam lá fora, no movimento normal de mais uma noite. Até quando ainda escutarão esse som?
- José tás com medo de perder o emprego? Com a “onda” dessas férias é um mau-sinal...
O vigilante não responde. O Preto quer irritá-lo. Provoca-o. Conhece bem o colega.
- Perdesse a língua?
Então se mais se conter, José explode, gritando:
- Te lasca, porra!
Outra risada e silenciam.
Do salão grande, o coração da fábrica, vem a zoada ritmada das máquinas que começam a funcionar.
- Boa noite.
- Boa noite, Seu Colaço. Largou agora?
Este repõe o cartão no quadro e cruzando a seção, enfrenta a noite de fora.
Cabisbaixo, José escreve no bloquinho sobre o birô: Seu Colaço, Seu Colaço, Seu Colaço... Tá na “lista negra” dos demitidos.
Curioso Preto se avizinha e, José, erguendo o rosto:
- Que é o que você quer?
- Nada, nada não irmão.
O sorriso de dentes perfeitos no rosto gordo, lustroso, mais negro com o suor.
José fecha o bloquinho e desvia o rosto de lado, fugindo, enquanto Preto se afasta, retornando à cadeira vizinha ao relógio.
- Esse José...

3
Com a nova mudança na economia do país, tudo se modificou e com a inflação subindo, as conseqüências surgem e...
- As indústrias fecham.
Diz doutor João, dando voz ao que pensa. As demissões infelizmente, ocorrerão após as férias coletivas, já anunciadas. Depois... Sempre há um depois. A esperança. A fé do otimismo.
- É, vamos ver.
Dirige.   O movimento dos carros, motos e pedestres, aos poucos, diminui, para na próxima noite, mais uma vez retornar, como sempre. Tudo obedecendo a uma ordem, sob o comando de uma Grande Força!
Ali está a residência. Murada. Dois andares. A varanda larga. As cadeiras em volta do centro, com o jarro, de flores artificiais. E, na cadeira de balanço próxima, a Marly, sua esposa, esperando-o, como nas vezes das noites anteriores.
Diminui a marcha, aproximando-se. Então o rosto pálido da mulher magra se volta, reconhecendo o carro e sorri, apaziguando o coração aflito, pois só sossega quando vê o João chegar!
O portão é aberto e o automóvel cinza adentra. Macio. Importado. Último modelo. A porta se abre e o homem salta. Devagar. Cabisbaixo. Entregue ao seu mundo de preocupações ante a incerteza dos próximos dias.

4
Por que Colaço está com a mania de falar do passado? Com os demais idosos isso também ocorre? Fecha os olhos, fingindo cochilar, e ouve o desabafo (tão repetitivo!).
- Pois é, Maria. Naquele tempo, a fábrica deu as férias coletivas e depois demitiu os operários. Está me ouvindo? Mas, você bem sabe disso, do quanto a gente passou. Fiquei desempregado, você grávida do Júnior... o doutor João (a arrogância personalizada), dizem que foi descansar e morreu dormindo... Coração! O Preto, você se lembra, aquele que também era vigilante, meu colega? Comentam também que ao perder o emprego, não tardou e entrou no mundo das drogas e terminou por ser executado, num ajuste de contas entre eles traficantes!
De repente silencia e fita o rosto pálido da mulher caído sobre o busto magro, de seios batidos, os braços secos, as pernas inchadas... Então com os olhos embaçados se ergue devagarzinho para não se desnudar no que sente, e arrastando os pés, no andar da velhice, retira-se do terraço. Ah, o que é a vida! Saber que viveu aquela época, sofreu, conheceu o lado cruel da realidade... Mas, tudo passa.
Na cozinha, abrindo o refrigerador, retira   a garrafa d’água e despejando o líquido no copo, toma-o.
No terraço a mulher abre os olhos e liberta das recordações (tão conhecidas!) sorri. Coitado do José: preso ao passado, ao mundo dos mortos...


Paulo Valença é autor paraibano, com livros de ficção premiados nacionalmente; Verbete do Dicionário Biobibliográfico de Escritores Contemporâneos; Verbete da Enciclopédia de Literatura Contemporânea; Membro de várias instituições literárias; Presente em diversos sites; Reside em Recife/PE.











Biografia:
Paulo Valença é autor paraibano premiado nacionalmente com seus livros de contos e romances; Pertence a várias Instituições Literárias; Consta de diversos sites; Vive em Recife/PE.
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